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21/01/2010

A ciência segundo a CTNBio

Órgão responsável pela liberação em série de transgênicos no Brasil não esconde relações com transnacionais de biotecnologia e posição não-científica pró-OGMs.

Verena Glass

É possível que o Brasil conquiste no início de 2010 mais um (triste) título em termos de inovação: será o primeiro país do mundo a liberar o plantio comercial de uma variedade de arroz transgênico – o LL62 da Bayer S/A. Caso venha a ser aprovado pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) em reunião marcada para fevereiro, o grão da Bayer será o 20º organismo geneticamente modificado (OGM) a ser cultivado comercialmente no país – entre 2005 e 2009, a CTNBio deu carta branca ao plantio comercial de duas variedades de soja, onze de milho e seis de algodão. A liberação manterá inalterado o fluxo de aprovações consecutivas de todos os transgênicos apresentados à Comissão pelas transnacionais de biotecnologia.

A já manifesta intenção da CTNBio de permitir o cultivo de arroz transgênico não mereceria especial destaque neste cenário, não fosse uma peculiaridade: uma oposição generalizada à liberação reuniu no mesmo palanque, pela primeira vez, ambientalistas, pesquisadores pró-transgênicos e grandes produtores. Ou seja, além dos já tradicionais críticos aos OGMs, como organizações não-governamentais (ONGs) ambientalistas e dos direitos dos consumidores, se uniram contra a aprovação entidades como Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa, principal agência pública de pesquisa e apoio à transgenia no país), Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga) e Federação das Associações dos Arrozeiros do Rio Grande do Sul (Federarroz).

Para a Embrapa e os rizicultores gaúchos, a maior ameaça do grão da Bayer, cuja transgenia consiste na tolerância ao herbicida glufosinato de amônio, é a transferência da mutação genética ao arroz vermelho, considerado a principal planta invasora da cultura do arroz irrigado. Com a contaminação, a variedade, que já causa prejuízos à produtividade e à qualidade do arroz em áreas altamente infestadas, se tornará resistente ao controle químico. Ou seja, de acordo com a Embrapa, o arroz transgênico, se liberado, será uma ameaça à segurança alimentar do Brasil, podendo levar ainda a uma contaminação generalizada das variedades de arroz silvestre no país.

Ora, se pesquisadores (baseados em avaliações científicas), produtores (preocupados com questões econômicas) e consumidores (atentos ao que comem – a ONG Greenpeace recolheu mais de 20 mil assinaturas para uma petição contra a liberação) se opõem ao plantio do arroz geneticamente modificado, a pergunta que se coloca é: a que interesses a CTNBio pretende atender com a sua aprovação? (Seria leviano afirmar que o desempenho das vendas de grandes transnacionais de biotecnologia tenha relação com as liberações de OGMs no Brasil – na sua maioria, variedades resistentes a produtos destas empresas. Mas fato é que, segundo a revista Exame, a Monsanto, que teve nove cultivos transgênicos aprovados, arrecadou em vendas 783,9 milhões de dólares em 2006, 899,2 milhões em 2007 e 954,8 milhões em 2008).

A serviço de quem?

De acordo com a Lei de Biossegurança, a Comissão, criada em 2005, tem como função “prestar apoio técnico consultivo e assessoramento ao governo federal na formulação, atualização e implementação da Política Nacional de Biossegurança relativa aos OGMs, bem como no estabelecimento de normas técnicas de segurança e pareceres técnicos referentes à proteção da saúde humana, dos organismos vivos e do meio ambiente, para atividades que envolvam a construção, experimentação, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, armazenamento, liberação e descarte de OGM e derivado”.

Para a aprovação comercial de transgênicos, são necessários 14 votos favoráveis (a Comissão tem 27 membros e uma sessão deve ter um quorum mínimo de 14 conselheiros).

Responsáveis pela análise técnica e científica de pedidos de liberação de OGMs, os conselheiros da CTNBio têm de apresentar, obrigatoriamente, título de doutor em suas respectivas áreas, sendo que a grande maioria é ligada a universidades, como a USP, UFPE, UFRJ, UFMG, Unicamp, UnB, UFV, UFRGS, Ufes, PUC-RS, Ufal, Unifesp e UEL. Já a Embrapa “contribui”, no momento, com cinco membros.

De acordo com as entidades da sociedade civil que têm acompanhado o trabalho da CTNBio, como as ONGs Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), Terra de Direitos e Greenpeace, muitas das análises técnicas nos processos de liberação de transgênicos careceram de rigor científico e de adoção do princípio da precaução, previsto no Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança (construído no âmbito das Nações Unidas e adotado pelo Brasil), além de pesquisas em solo nacional que comprovem a segurança do plantio comercial das variedades aprovadas.

Por outro lado, afirmam as ONGs, uma característica marcante da maioria dos conselheiros da Comissão tem sido um posicionamento abertamente favorável às tecnologias transgênicas. Em 2003, oito dos atuais membros da CTNBio (Alexandre Lima Nepomuceno, Edilson Paiva, Flavio Finardi Filho, Francisco José Lima Aragão, Kenny Bonfim, Luiz Antonio Barreto de Castro, Maria Lucia Carneiro Vieira e Paulo Augusto Vianna Barroso) subscreveram a “Carta Aberta dos Cientistas Brasileiros”, em que afirmam que “o Brasil não pode abrir mão da tecnologia de organismos transgênicos”, uma vez que “é imprescindível para a sustentabilidade e competitividade do agronegócio brasileiro e agricultura familiar” e “acarretará em benefícios sociais e econômicos para o país”.

Entre os atuais conselheiros, vários também têm ou tiveram, pessoalmente, alguma relação com as empresas de biotecnologia (ou com entidades financiadas pelas transnacionais, como o Conselho de Informações sobre Biotecnologia–CIB e a Associação Nacional de Biossegurança–Anbio, entidades de lobby pró-transgênicos que têm entre seus associados Basf, Bayer, Cargill Agrícola, Dow Agrosciences, Du Pont do Brasil, Monsanto do Brasil, Pioneer Sementes Ltda, Syngenta Seeds, entre outros).

Contaminação

No tocante à observância de critérios científicos adequados nos processos de liberação de OGMs ou no estabelecimento de normas de segurança para prevenir a contaminação de lavouras não transgênicas por variedades geneticamente modificadas, a CTNBio tem sido repetidamente questionada por diversas instituições.

Em 2007, as liberações dos milhos transgênicos Liberty Link, da Bayer, e MON 810, da Monsanto (proibido na França, Áustria, Grécia, Luxemburgo, Hungria, Itália, Polônia e Alemanha), foram questionadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que apontaram erros nos pareceres técnicos que fundamentaram as aprovações. Para a Anvisa, entre as irregularidades no processo da Bayer constam a insuficiência ou inexistência de estudos toxicológicos ou de alergenicidade para comprovar a segurança do milho transgênico para o consumo humano. Já segundo o Ibama, a CTNBio ignorou a inexistência de estudo prévio de impacto ambiental realizado nas condições edafoclimáticas do país e a ausência de avaliação de risco, caso a caso, entre outros problemas. De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, também não constaram do processo “estudos ou literatura que comprovem a ausência de danos ambientais, razão pela qual a decisão técnica não poderia ter sido emitida”. Os recursos contra as liberações foram apresentados ao Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), que optou por ignorar as irregularidades.

Pouco tempo após estas denúncias, uma ação civil pública de entidades da sociedade civil levou a Justiça a exigir da CTNBio a criação de regras de coexistência por meio de uma resolução normativa que, em teoria, protegeria as lavouras não transgênicas de milho da contaminação dos OGMs. Ou seja, foram estabelecidas distâncias mínimas de isolamento entre cultivos transgênicos e não transgênicos que, para garantir total segurança contra a contaminação, seriam “igual ou superior a 100 metros ou, alternativamente, 20 metros, desde que acrescida de bordadura com, no mínimo, 10 fileiras de plantas de milho convencional de porte e ciclo vegetativo similar ao milho geneticamente modificado”.

Vários casos de contaminação de lavouras não transgênicas por OGMs foram denunciados ao longo dos últimos três anos por ONGs e pela imprensa, mas, em meados de 2009, a conclusão de um monitoramento do fluxo gênico do milho transgênico no Paraná, realizado pelo Departamento de Fiscalização e Defesa Agropecuária do Estado para verificar a eficácia da Resolução Normativa da CTNBio, comprovou oficialmente que as normas de segurança são ineficazes, uma vez que foi detectada contaminação em todas as áreas monitoradas. “Os resultados preliminares indicam que, mantida a atual norma, é impossível assegurar a coexistência segura entre os cultivos transgênicos, tradicionais e orgânicos, já que, até o presente momento, todas as áreas monitoradas apontaram para polinização por pólen transgênico à distância muito superior à regulamentada”, afirma documento da Secretaria de Agricultura do Estado.

Diante destes dados, no final de outubro, várias organizações da sociedade civil propuseram uma ação civil pública que pede a suspensão das liberações comerciais de milho transgênico até que seja editada uma norma coerente com o princípio da precaução. O processo tramita na Vara Federal Ambiental de Curitiba e aguarda decisão do juiz.

Repetindo erros

Sobre o tema, o representante do Ministério da Ciência e Tecnologia, Luiz Antônio Barreto de Castro, utilizando-se de uma lógica pouco ortodoxa, acabou reconhecendo a ocorrência de contaminação, mas ponderou que “as regras [de segurança da CTNBio] foram estabelecidas levando em conta que nem sempre a contaminação resulta em prejuízo para os agricultores que cultivam variedades ditas crioulas”; ou seja, “mesmo que tal [a contaminação] ocorra, será vantajosos para a agricultura familiar”.

Contrariando a tese de Castro, prejuízos em função da contaminação de lavouras por OGMs são recorrentes tanto no Brasil quanto em outros países do mundo. Em 2004, por exemplo, a empresa Eco Brazil Organics Ltda, no Paraná, cuja lavoura de soja orgânica foi contaminada, paralisou suas atividades e teve um prejuízo de 3 milhões de dólares. Em 2006, lavouras experimentais do arroz transgênico da Bayer nos EUA contaminaram plantios comerciais e causaram prejuízos de cerca de 1 bilhão de dólares em todo o mundo, de acordo com estudo divulgado pelo Greenpeace Internacional.

Por fim, a benevolência da CTNBio com a transgenia já apresenta seus efeitos colaterais. A despeito do argumento inicial das empresas de biotecnologia de que os OGMs diminuiriam o uso de agrotóxicos, a Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef) aponta um aumento significativo do consumo de herbicida na soja, por exemplo. De acordo com o órgão, foram aplicadas 129,6 mil toneladas em 2004, volume que subiu para 192 mil toneladas em 2008 (aumento de 67,5%. Aqui, é importante lembrar que em 2009 o Brasil se tornou o maior consumidor mundial de agrotóxicos, com cerca de 673.890 toneladas/ano). Um levantamento do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox), da Fundação Oswaldo Cruz, aponta que, apesar da altíssima subnotificação, entre agosto de 2007 e julho de 2008, 7,47% dos casos de intoxicação com agrotóxicos registrados se referem ao glifosato – no período, foram registrados mais de 6,3 mil casos de intoxicação e, em 2007, notificadas 162 mortes causadas por agrotóxicos em geral. (publicado originalmente na Revista Sem Terra)

http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/nacional/a-ciencia-segundo-a-ctnbio/view

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