António Firmino da Costa, Rosário Mauritti, Susana da Cruz Martins - Observatório das Desigualdades
Este projecto foi realizado no âmbito do CIES/ISCTE, coordenado por António Firmino da Costa, com as investigadoras Rosário Mauritti e Susana da Cruz Martins, com financiamento da FCT e colaboração do INE. OBJECTIVO E METODOLOGIA Pretendeu-se com este projecto dar conta do desenvolvimento teórico-analítico do conceito de padrões de vida e respectiva operacionalização através do recurso a bases de microdados estatísticos do Instituto Nacional de Estatística. Este conceito, tal como é aqui proposto, envolve a articulação de três grandes dimensões: trabalho, educação e as práticas de consumo dos indivíduos de forma associada às respectivas famílias. Com a utilização de microdados foi possível ensaiar análises multivariadas [1], conjugando um vasto leque de variáveis, enquadradas nas dimensões referidas, permitindo a identificação dos principais padrões de vida que caracterizam a sociedade portuguesa. RESULTADOS FUNDAMENTAIS Os resultados principais desta investigação são uma configuração do espaço social dos padrões de vida; uma tipologia de padrões de vida; e a localização de cada um destes padrões de vida naquele espaço social, realçando-se os conteúdos concretos de cada um desses padrões de vida, em termos dos valores que aí tomam os múltiplos indicadores utilizados. Chegou-se, assim, aos resultados sintetizados na figura 1. Para referir os cinco padrões de vida principais encontrados, utilizaram-se as designações de destituídos, restritivos, massificados, instalados e qualificados. Legenda: ab, alimentação básica (5 categorias: 1=elementares, 5=elevados); alp, alimentação preparada (6 categorias: 1=não consumo, 5=elevados); cas, habitação (5 categorias: 1=elementares, 5=elevados); vest, vestuário e imagem pessoal (6 categorias: 1=não consumo, 5=elevados); sau, saúde (6 categorias: 1=não consumos, 6=elevados); trpp, transportes próprios (6 categorias: 1=não consumos, 6=elevados); tpub, transportes públicos (5 categorias: 1=não consumo, 5=elevados); cul, práticas culturais (6 categorias: 1=não consumo, 6=elevados); ntl, novas tecnologias (7 categorias: 1=nenhum; 7=tem todos); tcor, tecnologias correntes (5 categorias: 1=até 3 equipamentos; 5=tem todos). EDL, Empresários, Dirigentes e Profissionais Liberais; PTE, Profissionais Técnicos e de Enquadramento; TI, Trabalhadores Independentes; AI, Agricultores Independentes; EE, Empregados Executantes; OI, Operários Industriais; AA, Assalariados Agrícolas. Outras variáveis socioprofissionais e de qualificação escolar são desdobradas em categorias facilmente identificáveis na figura. Os destituídos. A condição de destituição caracteriza, de maneira alargada e profunda, este padrão de vida. Cerca de 70% dos indivíduos não têm qualquer escolaridade e são sobretudo reformados. Em termos de categorias socioprofissionais, enquadram-se essencialmente na dos agricultores independentes e na dos operários industriais (37% e 25%, respectivamente). Em consonância com as inserções socioprofissionais e os recursos educacionais, estão as possibilidades de consumo. Assim, este padrão de vida evidencia-se por ser o que apresenta menos capacidade de realização de práticas de consumo. Exceptuam-se os gastos na saúde, em que revelam maiores índices de despesa do que os restritivos. Isto pode dever-se à concentração de população idosa nesta categoria. É também interessante realçar o acesso a algumas tecnologias massificadas (como a televisão, o frigorífico ou o telefone), cuja transversalidade aos vários segmentos da sociedade é reveladora de que os constrangimentos das desigualdades sociais não se contrapõem hoje linearmente às tendências de difusão alargada de instrumentos tecnológicos de uso quotidiano, tornados bens de primeira necessidade nas sociedades contemporâneas. Fonte: INE, Base de microdados do Inquérito aos Orçamentos Familiares, 1999-2000. É relevante, ainda, dar conta do volume de população abrangido por cada um desses padrões de vida. Tais configurações sociais contribuem para o reconhecimento de um cenário nacional, palco de grandes clivagens e assimetrias sociais. Se associarmos outras perspectivas de análise, como as demográficas ou territoriais, estes padrões manifestam, de forma diferenciada, algumas das tendências que dominaram os últimos 40 anos em Portugal. NOTA: Para mais desenvolvimentos consultar o seguinte texto: Martins, Susana da Cruz, Rosário Mauritti e António Firmino da Costa (2007) "Padrões de vida na sociedade portuguesa" em Maria das Dores, Anália Cardoso Torres e Luís Capucha (Orgs.), Quotidiano e Qualidade de Vida (Portugal no Contexto Europeu, vol. III), Lisboa, Celta Editora. [1] Através do recurso aos microdados do Inquérito aos Orçamentos familiares, procedeu-se à análise de componentes principais (ACP), análise da homogeneidade (HOMALS), e de clusters.
Fonte: INE, Base de microdados do Inquérito aos Orçamentos Familiares, 1999-2000.
Os restritivos. Os indivíduos que integram este padrão também são muito desprovidos de recursos escolares (25% não tem qualquer escolaridade), embora menos do que os anteriores, alargando-se o conjunto dos que dispõem do 1.º ciclo do ensino básico (cerca de 45%). No que diz respeito à condição perante o trabalho, a categoria com maior peso é a dos empregados (41%), embora se evidencie as condições de inactividade (28% são reformados e 15% domésticas). As inserções socioprofissionais apresentam uma forte predominância do assalariado desqualificado, tanto os empregados executantes: 32%, e operários industriais: 39%. Apesar de alguma presença de agricultores independentes (12%), este padrão revela uma tendência predominante para contextos de vida de (sub)urbanização empobrecida. Quanto aos consumos, encontrando-se em patamares de suficiência, as suas despesas alargam-se apenas num conjunto de bens essenciais, como a habitação, a alimentação e o vestuário.
Os massificados. Estes indivíduos protagonizam o padrão de vida mais generalizado na sociedade portuguesa. Apresentam níveis de escolaridade um pouco melhores do que o dos restritivos, ainda que se situem sobretudo no ensino básico. Do ponto de vista da condição perante o trabalho, a categoria de longe mais numerosa é a dos empregados (73%), atingindo aqui um peso só igualado pelos qualificados. Do ponto de vista das categorias socioprofissionais, é o padrão de vida que engloba, em maiores proporções, operários industriais (45%) e empregados executantes (35%). Os consumos que marcam este padrão de vida são mais alargados do que os referidos anteriormente, estando associados à emergência da sociedade de consumo contemporânea, que dispõe de uma gama relativamente variada de bens e serviços, acessível a vastas camadas sociais.
Os instalados. Estes correspondem a um padrão de vida com consumos genericamente alargados, nomeadamente no que diz respeito aos bens materiais de uso quotidiano, como a alimentação e as tecnologias domésticas. Mas essa relativa homogeneidade no plano dos consumos sobrepõe-se a uma acentuada clivagem interna nos planos educativo e socioprofissional. Uma parte tem apenas recursos escolares elementares e outra parte situa-se acima dos valores modais da sociedade portuguesa (nomeadamente os que possuem o ensino secundário ou superior). Esta segmentação tem repercussões na diversidade das inserções socioprofissionais destes indivíduos. Os mais escolarizados acedem à categoria dos profissionais técnicos e de enquadramento e dividem com outros perfis, com menores qualificações, a sua inserção na categoria dos empregados executantes. Os menos escolarizados são sobretudo operários industriais (neste casos com níveis de consumo melhorados face aos seus pares socioprofissionais com outros padrões de vida). O padrão de vida dos instalados é ainda aquele que, percentualmente, apresenta um valor mais elevado na categoria socioprofissional dos empresários, dirigentes e profissionais liberais (14%).
Os qualificados. Trata-se do padrão de vida melhor dotado de recursos educacionais e culturais. Cerca de 60% têm o ensino superior, muito acima dos níveis médios nacionais, o que em geral se traduz também em inserções socioprofissionais relativamente bem posicionadas na estrutura social, patente na proporção de profissionais técnicos de enquadramento (85%). Distinguem-se igualmente, em relação aos restantes padrões de vida, pelos consumos qualitativos que protagonizam, com todas as suas implicações e manifestações nas várias esferas da vida social, profissional e familiar. É neste conjunto que encontramos uma maior incidência de consumos lúdicos, culturais, estéticos, desportivos, tecnológicos e educativos, e, a nível patrimonial, de equipamentos supletivos, como a segunda casa e a posse de mais de um automóvel.
A par de um país rural e envelhecido, deu-se um crescimento acentuado de população urbana, sobretudo nas grandes áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Os destituídos são os mais marcados pelos processos de envelhecimento. Os qualificados são os que mais se evidenciam nos processos de concentração metropolitana. A suburbanização, tornou-se um contexto residencial importante dos outros padrões de vida, em primeiro lugar dos massificados.
Porém, no contexto europeu, a sociedade portuguesa apresenta níveis de desigualdades internas dos mais acentuados. Os padrões de vida dos destituídos e restritivos tendem a abranger maiores fracções da população do que a generalidade dos seus equivalentes europeus. O padrão de vida modal, o dos massificados, embora partilhe o acesso a formas de existência social actualmente generalizadas nas sociedades desenvolvidas, corresponde aqui a níveis menos capazes do que a média da UE, em termos de escolaridade, qualificação e consumos. Os padrões dos instalados e qualificados assumem, ainda, um carácter mais minoritário do que na generalidade das sociedades europeias.