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22/01/2010

Intermitência da fraude

Carlos Pimenta

1. Segundo fontes bem informadas o concílio dos deuses decidiu, por maioria, decretar a intermitência da fraude durante o próximo ano de 2010. Para esta decisão histórica contribuíram os livros de José Saramago e a consciência divina dos profundos malefícios que as fraudes, e outros crimes financeiros, têm gerado neste milénio. Apesar desta decisão histórica o debate foi acalorado, não tendo sido possível conciliar todas as propostas apresentadas, cristalizadas em três grupos. Um primeiro defendia que em vez da intermitência da fraude deveriam decidir pela sua eliminação para toda a eternidade. Em total oposição encontravam-se os cépticos que duvidavam peremptoriamente da capacidade dos deuses decidirem sobre uma matéria tão complexa, onde se jogava a influência da riqueza, o poder do dinheiro e os mais vis sentimentos humanos. No meio destas posições extremadas, um terceiro grupo defendia a criação de um período de experimentação, um ano de interregno da prática da fraude, no fim do qual, após avaliação da experiência, decidiriam em relação ao futuro.

Para elucidar e ajudar todos a adaptarem-se a esta profunda mudança no mundo dos negócios e nas práticas sociais todos os canais de televisão e as mais conceituadas rádios convidaram painéis interdisciplinares de especialistas para debaterem este assunto. Essencialmente por ser novo, prestar-se a grandes divergências de interpretação, permitir aos jornalistas perguntas capciosas e argutos argumentos sofistas. Os jornais, revistas e blogs ecoaram iguais preocupações. Se alguns defenderam com sólida argumentação e juízos convincentes que uma tal decisão era um atentado à liberdade humana, ao livre funcionamento dos mercados, uma quebra irrecuperável do empreendedorismo, a grande maioria anuía á justeza de uma tal decisão, apesar de terem dúvidas, mesmo certezas, da impossibilidade olímpica de influenciar os homens e, sobretudo, as instituições.

Entretanto os políticos optaram por um quase silêncio: breves referências à nobreza da ética, reafirmação do princípio da separação entre Estado e religião, desvalorizando a importância da eventual decisão dos deuses, dada a inobservância de fraudes nos seus territórios. Os rumores de uma reunião de emergência dos diversos Gs (sobretudo do G8 e do G20) para acautelarem o emprego nos territórios offshore, não tiveram confirmação. O mesmo se poderá dizer da agendada reunião do Clube Bilderberg.

Grande parte da população seguia distraída esta eloquente problemática, entre o conseguir sobreviver com um salário insuficiente, o lutar contra a situação de desemprego e os resultados do campeonato de futebol. Não era desinteresse! Resultava da fraude não pertencer ao seu quotidiano.

2. O ano iniciou-se num clima de optimismo. Entre vigilância, dúvidas e alheamento proliferava um vago sentimento de que se estava num virar de página.

Os agricultores continuaram a plantar e a colher. As empresas continuaram todas as manhãs a abrir as portas, a pôr a funcionar as cadeias de produção e a comercializar a sua produção. Os transportes, de pessoas e mercadorias continuaram a cumprir os horários e a responder às solicitações. As lojas expõem as suas roupas, calçados e outras utilidades aguçando os apetites dos clientes. Nos ateliers combinam-se cores e formas e as orquestras obedecem à ginástica dos maestros. Os estudantes estudam, os operários trabalham, os investidores investem, os consumidores consomem, quando lhes sobeja dinheiro depois das prestações das dívidas, os administradores administram, os accionistas compram e vendem títulos, os jogadores jogam. Erguem-se andaimes e crescem prédios, rasgam-se estradas. Todos os dias os barcos chegam com o pescado de mais uma faina. Os centros comerciais juntam visitantes, os hospitais continuam com doentes em listas de espera, os jornais publicam-se, as televisões lutam por audiências, os reguladores produzem leis e normas com pouca aderência à realidade, a Assembleia da República continua a ser palco de debates e argumentos pouco dignos, o governo governa sempre que há evoluções positivas, e sofre os desvarios vindos do exterior, quando as dinâmicas são nefastas.

No quotidiano não parece notar-se qualquer alteração ao que sempre acontece. Nada de espantar sendo a fraude comportamento oculto e enganoso. Oculto para existir, oculto para desaparecer. Oculto para o bem e para o mal. Contudo um olhar mais atento do observador rapidamente detectaria comportamentos estóicos, alterações de vontade, mutações de práticas, adaptações de instituições. Até encontraria planos alternativos perante a dúvida da concretização da intermitência da fraude, análise do risco da suspensão da fraude.

3. Muitos - excluindo os que já se integravam em relações sociais mais inócuas à fraude - aperceberam-se que algo se passava com a sua personalidade. Jubilavam inopinadamente com emoções desprezadas até então, alterava-se a sua apregoada "racionalidade económica". Graduavam de forma inovadora as suas opções de vida: quase desprezavam prioridades a que estavam habituados e enalteciam novos olhares sobre a realidade. Sem que se apercebessem das causas primeiras de tais metamorfoses estavam a ser o terreno de aplicação da decisão dos deuses. Se é certo que eles não dispensam nos assuntos terrenos a presença de alguns conselheiros e polícias, a sua forma genuína de intervir socialmente é através de uma mudança de atitudes de cada um. Não se lhes podia exigir uma alteração dos condicionalismos sociais, do funcionamento do sistema económico, quer porque era para além da sua sapiência plena quer porque mesmo no Olimpo existiam opções político-sociais para todos os gostos. As pressões e oportunidades para se cometerem fraudes continuariam a existir. Haveria que alterar a vontade de cada um, a compreensão das suas funções sociais, as noções de honradez e de dever, os cenários da construção do futuro, a subvalorização do imediato. A ética ganhava terreno nas opções individuais, apesar de cada um optar por cardápios de princípios, direitos e deveres variegados. A vaidade encontrou um novo terreno para germinar: ter um comportamento ético.

A percepção dos conflitos de interesse tornou-se mais nítida para muitos e, sobretudo, passou a promover comportamentos individuais e organizacionais dissemelhantes em relação ao ano anterior, e ao anterior do anterior. O aproveitamento da situação, a utilização da "cunha", a justificação da opção feita através da ideia peregrina de que a relação de parentesco ou negócio nada tinha influenciado na decisão, deram lugar à declaração pública das suas "incompatibilidades". Surgiram, um pouco por toda a parte, situações anteriormente inimagináveis que os órgãos de informação empolaram entusiasticamente: funcionários superiores de uma multinacional vieram publicamente informar que tinham capital em empresas concorrentes e em empresas fornecedoras, com sede num offshore, apesar de nem a legislação do país nem os regulamentos da instituição em que trabalhavam exigisse tal declaração. Alguns deputados dum Parlamento abandonaram o hemiciclo no momento da votação de uma lei que interessava a clientes seus no exercício da profissão liberal. Um Presidente da República remodelou um órgão consultivo do seu gabinete de forma a excluir todos aqueles que lhe tinham fornecido no passado informações privilegiadas para a aquisição de acções.

Enfim, os funcionários, públicos e privados, cumpriram mais escrupulosamente as suas funções; os empresários concentraram a sua atenção na criação de valor e nos planos estratégicos, enaltecendo a formação dos recursos humanos e a inovação; os conselhos de administração retiraram todos os entraves às auditorias; os auditores sentiram-se, alguns pela primeira vez, independentes. Algumas indústrias melhoraram a qualidade dos seus produtos, adaptando as suas características à descrição e outras abandonaram a criação de bens contrafeitos. Os bancos alteraram radicalmente os produtos financeiros oferecidos, tornando as descrições perceptíveis para o comum dos mortais. As companhias de seguros deixaram de invocar sem análise o argumento da preexistência das doenças assim como os clientes não tentaram declarar falsos acidentes ou provocar incêndios fabris. As descrições nas alfândegas tornaram-se sempre fidedignas, as declarações fiscais limitaram-se ao negócio efectivo, a criação de empresas em paraísos fiscais atenuou, as receitas do Estado aumentaram significativamente, desde a data de apresentação da primeira declaração do IVA. A percepção da corrupção revelou que esta se reduzia abrupta e intensamente gerando um "efeito de bola de neve" no sentido da sua redução. O spam escasseou, os vírus informáticos atenuaram a sua actividade, os espiões de palavras-chave deixaram de ser produzidos, os roubos de dados pessoais caiu em mais de cinquenta por cento, o phishing não mais ultrapassou uma vítima diária por país.

Na sequência destas profundas alterações - apesar do crime organizado associado à fraude ter continuado a existir e a actuar, quer porque a fraude era apenas um dos seus "ramos de negócios", quer porque camuflaram a organização em empresas legais e promotoras da responsabilidade social -, surgiram algumas práticas novas: em algumas capitais passou-se a realizar uma feira semanal de obras de arte falsas, de antiguidades que eram modernas, de apostas com manipulação de resultados, de medicamentos e outros bens falsificados, de contadores de água e luz viciados e, obviamente, de dinheiro falso: feiras de escroquerias.

Levados pelo entusiasmo ("esquecendo" que a intermitência da fraude não é o seu fim e que nada estava garantido na futura decisão dos deuses, mas também aproveitando para acções de marketing), os Governos anunciaram a futura redução dos impostos. As margens de risco dos bancos tendem a descer, assim como os prémios dos seguros e os preços de muitos outros contratos e bens.

4. No início de Fevereiro a morte do pequeno Filipe chocou o mundo. Com uma doença congénita, filho de casal de parcos recursos, num país de fortes desigualdades sociais e sem um sistema de saúde universal, tinha conseguido sobreviver até aos quatro anos porque a mãe, caixa de uma grande superfície, periodicamente sonegava o suficiente para garantir a assistência médica ao seu filho. Sonegava numa empresa para entregar noutra empresa que pertencia ao mesmo grupo económico. Apesar de atormentada pelas consequências que poderia ter para o filho, com o dinheiro na mão e as lágrimas no rosto, cumpriu os desígnios dos deuses enquanto no seu leito caseiro a criança morria. Os dilemas morais saltaram para a praça pública.

Este acontecimento voltou a ser referido no início da segunda metade do ano de intermitência da fraude, sobretudo nas fastidiosas e enganosas análises dos prós e contras da fraude e da sua intermitência. Muitas empresas, consideradas sólidas, mesmo exemplos de empreendedorismo e de gestão adequada, apresentaram resultados negativos. A aparência de solidez era o resultado de manipulações contabilísticas durante anos, associadas frequentemente à fraude fiscal. A sua hegemonia em relação à concorrência era o fruto de esquemas de corrupção que lhes permitiam ganhar concursos públicos e privados, alguns deles com total desfasamento entre os preços e os respectivos custos. O desemprego aumentou nesses meses, conselhos de administração rolaram, produtos escassearam e colocou-se a possibilidade de uma intervenção do Estado. As bolsas de valores agravaram o seu comportamento caótico e exigiu dos analistas financeiros mais imaginação para explicarem o que nem sonhavam. Não eram apenas as surpresas resultantes da contabilidade criativa, e abusiva, mas também a falta de consistência e aderência à actividade económica produtiva de muitos títulos em circulação, do que se negociava em mercados de derivados. Os esquemas de Ponzi sofreram devastadoramente da interrupção do processo de entrada de capitais. Algumas instituições financeiras especializadas em "exportação" de capitais reformularam a sua actividade, os centros financeiros offshore reduziram drasticamente a sua actividade, apesar dos apoios velados decididos numa reunião de emergência do G8. O Reino Unido sentiu o impacto dessa situação.

Os investigadores criminais, na sábia gestão de recursos limitados para tantos crimes a investigar, deslocaram muitos dos seus quadros do crime económico-financeiro, da fraude e da corrupção para a investigação dos crimes tradicionais, crescentemente violentos. Esta decisão parecia a acertada nos primeiros meses, mas rapidamente revelou-se desajustada: os canais de denúncia de fraude foram explosivamente utilizados, começaram a rebentar escândalos de fraude nos sectores mais diversos da actividade económicas, nos interstícios mais inusitados da política, não poupando os organismos internacionais. As fraudes em curso há meses e anos deixaram no último dia de 2009 de ser "carinhosamente" mantidas longe da percepção alheia e eclodiram por todos os lados. Fraudes de todo o tipo, contra as instituições e delas próprias, algumas delas com uma tipologia desconhecida até então. Porque houve que reorientar recursos policiais, porque voltou a deixar-se a descoberto o crime tradicional, porque o crime organizado - única franja da sociedade que parece ter escapado aos desígnios dos deuses, como se disse anteriormente - aproveitou o desnorte temporário para intensificar a sua actividade em espaços estratégicos. A população sentiu um aumento de insegurança, aproveitado por muitos discursos políticos.

O Estado teve muitas solicitações para apoiar as grandes empresas que viram os seus processos de fraude interrompidos. Contudo manteve-se firmemente afastado dessas decisões. Diga-se, em abono da verdade, que não consubstanciaram tal decisão em sólida argumentação doutrinal. As receitas fiscais até tinham aumentado muitíssimo. O governo limitou-se a constatar que essas empresas serem geridas por colegas de estudo, golfo ou partido dos ministros em exercício não era razão suficiente para as apoiar. Limitou-se a constatar que apoiar defraudadores, em detrimento da ajuda a outros sectores, seria eticamente reprovável.

No fim do ano da intermitência da fraude, muitos outros efeitos perversos se revelaram: aumento dos divórcios, maus resultados de alguns clubes de futebol, mais reprovações de alunos em alguns países e certas instituições de ensino, etc. Contudo a sua constatação ultrapassa o âmbito desta crónica.

5. Relatada em poucas palavras a intermitência da fraude, há que encontrar resposta à seguinte pergunta: a intermitência da fraude é prejudicial?

A resposta é simples. Os acontecimentos nefastos registados em 2010 não resultaram da intermitência da fraude, mas da existência desta no período anterior. Também contribuiu para tal a expectativa de que estávamos numa fase anormal e que no ano seguinte a fraude retomaria o seu percurso "normal". Moral da história: é necessário o fim da fraude, não a sua suspensão durante um período.

Admitindo como verdadeira esta conclusão, a nossa mais sacrossanta racionalidade é assaltada por uma outra dúvida: apostar no fim da fraude não será uma utopia?

Também aqui a resposta é simples. A fraude, incluindo nesta designação genérica a corrupção, provavelmente nunca poderá ser eliminada. Há factores individuais e microsociais que a promovem e a sustentam que são impossíveis de eliminar, pelo menos no actual nível civilizacional. Contudo é possível reduzi-la significativamente modificando os contextos sociais de vivência de todos nós. É possível fazê-la recuar até aos níveis, bastante inferiores, dos anos 70 do século passado. Fica, no entanto, um alerta: para tal não basta prevenir, detectar e combater a fraude. É imperioso e urgente uma modificação sistémica e multi-referencial do sistema social em que vivemos.

Que irão os deuses decidir para o futuro? E os homens?

http://aeiou.visao.pt/intermitencia-da-fraude=f542769

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