Em entrevista, o sociólogo estadunidense James Petras afirma que "não existe um movimento político para os colonos sem terra, nem existe um movimento para os desempregados e para o número crescente de trabalhadores depauperados”
Mudanças de posicionamento são cruciais nesse momento, mas como propor algo diferente se a maioria das organizações de esquerda se tornaram sócias do capitalismo? E, ao mesmo tempo, movimentos sociais não apresentam o caráter revolucionário de décadas passadas? Ao se questionar sobre esses dilemas, o sociólogo estadunidense James Petras afirma que estamos diante de um grande paradoxo: “Aprofunda-se o questionamento dos fracassos do capitalismo e dos destruidores do meio ambiente, ao mesmo tempo em que não há o surgimento de uma esquerda alternativa claramente articulada”.
Ao comentar a relutância da esquerda frente aos problemas ambientais do Planeta, o sociólogo é incisivo e diz que a falta de integração da esquerda não se dá apenas com a questão ambiental. E exemplifica: “Não existe um movimento político para os colonos sem terra, nem existe um movimento para os desempregados e para o número crescente de trabalhadores depauperados”. Para ele, essas questões representam “um fracasso em conseguir livrar-se das parcerias entre capital e trabalho, vinculações entre cientistas e seminários”. A esquerda precisa adotar uma posição estratégia, aconselha. “Ela não deveria encarar se a si própria como mero salva-vidas do capitalismo, onde o governo não é apenas um parceiro de empresas capitalistas falidas, numa espécie de keynesianismo bastardo.” Precisamos, continua, “pensar sobre a reorganização da indústria com base justamente nas forças produtivas, que são trabalhadoras, engenheiros, cientistas, que projetam produtos para consumo doméstico e, caso necessário, para comércio regional, se é que isto é possível”.
Relembrando as teorias de Marx e Keynes, ele propõe uma nova discussão. O debate hoje não é mais sobre o Estado e o mercado, assegura, “mas sobre o papel que o Estado deveria desempenhar ao substituir ou restaurar o mercado, contra aqueles que encaram o Estado como um instrumento para o poder social dos trabalhadores e para reorganizar a economia”. E dispara: “Penso que voltamos à seguinte posição: não é uma questão de intervenção do Estado em si, mas de intervenção do Estado em favor de qual projeto econômico?”.
James Petras é professor emérito de Sociologia na Universidade Binghamton, em Nova York, e desenvolve um trabalho especial com o movimento dos Sem Terras. Cursou a graduação na Universidade de Boston e o doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley. É autor de mais de 62 livros publicados em 29 línguas, entre os quais citamos A mudança social na América Latina (2000), Globalização: O imperialismo do século XXI (2001), Sistema em crise (2003) e Multinacionais Trial (2006). Entre 1973 e 1976, foi membro do Tribunal Bertrand Russel sobre a repressão na América Latina. Atualmente, escreve uma coluna semanal do jornal mexicano, La Jornada.
IHU On-Line – Qual é a diferença entre a esquerda simbólica, à qual o senhor se refere, e a esquerda real?
James Petras – Esquerda simbólica é essencialmente uma imagem da política, em grande parte sustentada no exterior, que identifica o Partido Democrata, intelectuais e outras pessoas que são conhecidas como progressistas nos EUA. Mas, na verdade, historicamente ambos os partidos (o Democrata e o Republicano) não se distinguiram um do outro, ao menos em um número enorme de questões, referentes à guerra, à economia, propriedade, à primazia do capitalismo sobre o bem-estar social etc. A esquerda intelectual nos EUA, em grande parte, é mais acadêmica e não exerce papel relevante no tocante à política de massas. Acredito que uma das distinções a ser feita é entre intelectuais e acadêmicos. Nos EUA, o divórcio entre intelectuais e movimentos de massa é mais forte, porque em grande parte o movimento negro desapareceu enquanto movimento, tendo sido meio que encurralado pelos políticos do Partido Democrata.
Os sindicatos praticamente não podem ser distinguidos de organizações filiadas às empresas. A liderança nacional dos sindicatos tem rendimentos comparáveis a executivos empresariais, entre US$ 300 e 600 mil por ano; seus quadros ganham mais de US$100 mil por ano e só representam 7% do setor privado, sendo que 93% dos trabalhadores americanos não estão filiados a qualquer coisa comparável a um sindicato. Muitos sindicatos do setor público e do setor privado não têm o direito de entrar em greve, e muitos recentemente assinaram dois acordos entre os representantes dos sindicatos e o Estado.
Obama progressista?
Percebo nos EUA um vácuo social, onde há acadêmicos críticos operando, mas numa posição muito limitada para poder apresentar uma alternativa política real. Eles simbolizam o que poderia vir a ser uma corrente de opinião da esquerda, se tivesse conexão com alguma luta em andamento. Tudo isso, hoje, se traduz no fato de que temos o presidente Obama realmente com base no fato da cor da sua pele. Ele tem sido chamado de progressista meramente por causa da sua retórica, ou retórica aparente. Em se analisando detidamente a sua retórica, nada ali sugere que ele represente qualquer tipo de política redistributiva, qualquer rompimento com as organizações financeiras especulativas de peso. Tudo aponta para enormes destinações de verbas para bancos insolventes – estou falando de mais de US$ 750 bilhões, e daí para cima. Só uma instituição financeira, a seguradora AIG, que está totalmente insolvente, isto é, cujas dívidas ultrapassam seus ativos, recebeu US$ 170 bilhões! A mídia mundial descreve isso como um governo progressista. O fato de Obama ser negro foi celebrado nos EUA como grande avanço social. Quero sublinhar por que isto é algo puramente simbólico: as taxas de desemprego dos afroamericanos é o dobro daquela dos trabalhadores brancos, em todas as categorias. Particularmente entre jovens negros, a taxa de desemprego está entre 40 e 50%. Isto é o triplo da taxa de desemprego de trabalhadores brancos. Mesmo assim, não há preocupação alguma do governo de Obama em sequer mencionar esse problema, muito menos em intervir de alguma maneira positiva. Isso mostra que ele está ignorando completamente a questão. Por outro lado, ocorrem referências constantes sobre a fidelidade de Obama para com Israel, seus vínculos com o povo israelense. Em outras palavras: o que temos aí é um presidente mais judeu do que afroamericano.
Considerando a crise financeira internacional, como o senhor encara as ações dos diferentes grupos de esquerda na América Latina? Quais são as perspectivas da América Latina em vista dessa crise?
Esta é realmente uma pergunta de grande alcance. Claramente, o tremendo declínio no mercado de exportações afetará a América Latina, não como um todo. As limitações de créditos, financiamentos e a descapitalização das subsidiárias no continente trarão efeitos. Mas é necessário considerar que a recessão mundial, que está virando depressão, irá gerar impactos diferentes nos países latino-americanos. É importante observar as condições institucionais, econômicas e as lideranças políticas dos países, para notar como a crise irá afetar cada um deles. Obviamente, países menos diversificados, dependentes da exportação, sofrerão mais que países com mercado doméstico profundo, com economia diversificada e reservas acumuladas. Ao menos na primeira fase da crise, os países com grandes reservas podem começar com seus pacotes de estímulo, como está acontecendo no Brasil, Argentina e Chile. Porém, essas são vantagens passageiras, ou seja, medidas que podem desacelerar o início da crise econômica, mas que não mudam os aspectos fundamentais. Por aspectos fundamentais, entendo o fato de que o sistema de produção no Brasil, particularmente de automóveis, além dos bens primários e setor de transportes, será profundamente afetado.
A crise no Brasil
Vejo que o desemprego no Brasil aumentará para níveis recordes no próximo ano e meio a dois anos. Penso que as alegações de Lula de que esta crise não terá efeito maior sobre o país são falsas. Ele transformou o Brasil num gigantesco empório de exportação, devastou o setor agrícola de pequenos produtores, ignorou os sem-terra, que teriam criado uma economia interna mais dinâmica, para favorecer a soja, a Vale do Rio Doce e todos os setores de exportação que se transformaram no pivô da economia. Agora, ele e o Brasil pagarão um preço enorme por estarem tão integrados num mercado internacional vulnerável e instável.
O Brasil será profundamente afetado pela crise financeira. Sei que o país tem mais de US$ 250 bilhões em reservas dos superávits orçamentários dos anos de governo de Lula e Fernando Henrique Cardoso, mas elas acabarão sendo gastas. Seja como for, o financiamento da falta de liquidez não é uma solução a longo prazo, nem uma solução estrutural; é simplesmente ficar injetando dinheiro para protelar o colapso iminente da economia. O Brasil e a Argentina têm sido menos afetados porque tiveram crises anteriores, o que limitou sua integração financeira no sistema especulativo dos EUA. O Brasil tem enorme dívida interna, o que muitos ignoram, porque estão observando alguma redução na dívida externa em função da exportação. Boa parte da dívida interna brasileira foi criada em função de interesses financeiros fora do Brasil.
A crise do acúmulo
Uma coisa que deveríamos saber é que, como as matrizes nos países de origem estão em profunda crise, começaram a descapitalizar as suas subsidiárias nos outros países. A GM é um exemplo disso. A GM, a Ford, principalmente a Chrysler estão indo à falência. Elas não têm capacidade para superar suas perdas de 100 bilhões de dólares. Estão buscando mais ajuda do governo, e já receberam 14 bilhões. O colapso dessas multinacionais levantou a questão, em muitos países, se as economias nacionais e os governos estão dispostos a comprar essas fábricas e transformá-las em algum tipo de unidades de produção autônomas, ou se experimentarão os efeitos posteriores do colapso da indústria americana de transportes.
A economia americana desencadeou esta crise financeira, mas a crise mundial é uma crise de acúmulo excessivo de lucros mediante a exploração excessiva, das finanças, do crédito etc. Isto teve efeitos tremendos sobre o setor financeiro, na busca de lucros para manter as taxas originais do processo de acumulação. A crise financeira estourou primeiro nos EUA porque o colapso financeiro da América Latina, antes disso, tinha imposto certos controles sobre o sistema financeiro, o que limitou sua capacidade de se ligar aos ativos tóxicos, subprime, hipotecas e outros meios especulativos. Mesmo assim, na medida em que a crise se desloca das finanças para a produção e para o comércio, é inevitável a futura contração das economias na América Latina, mais tarde que nos EUA. Mas, em última análise, a depressão começará no final de 2009, senão antes, de forma igualmente profunda ou mais profunda.
A esquerda também está passando por uma crise? E, no seu entender, qual seria a razão para essa falta de direção ou mudança na esquerda mundial?
Temos um fenômeno que emergiu na América Latina no início desta década: movimentos de massa que iniciaram nos anos 90 e culminaram em numerosas insurreições e derrotas dos neoliberais, desacreditando o neoliberalismo diante de movimentos de massa, seja na forma de insurreições como na Argentina, Bolívia, Equador, seja na forma de derrotas eleitorais, ou como na Venezuela, que, além de eleitoral, também foi contragolpe. Mas o resultado final não foi uma transformação básica, porque esses movimentos foram incapazes de criar suas próprias alternativas.
Então, o que emerge é um híbrido, que adotou algumas características de massa dos movimentos sociais radicais, mas que se adaptou às estruturas econômicas existentes, inclusive provocando tremendo crescimento e ênfase sobre o crescimento do setor primário. Tivemos enormes investimentos em produtos agrominerais na Argentina, Brasil, Uruguai, Bolívia. Todos esses assim chamados governos de centro-esquerda tocaram esses booms de commodities, sem mudar a renda, mudar a propriedade, ou dinamizar as economias internas. Essencialmente, tomaram uma parte da riqueza acrescentada e criaram programas contra a pobreza, programas de compensação. Mas as estruturas básicas do passado não mudaram. Lula, em particular, tornou-se um dos maiores defensores do livre comércio na América do Norte, inclusive criticando Bush por não ser tão aberto, abrindo os mercados com comércio totalmente livre. Percebo que esses assim chamados governos de centro-esquerda agora estão enfrentando as consequências, na medida em que ganharam terreno com os booms de commodities e com o crescimento irrestrito do capitalismo. Agora, o outro lado da medalha, é que eles irão sentir o impacto em cheio do declínio dos mercados mundiais e dos preços, bem como do comércio; não demonstraram quaisquer inovações estruturais.
Nacionalização para quem ou para qual finalidade?
O que estamos vendo e vamos ver é o crescimento da estatização. Mas não se trata de uma estatização progressista. Haverá um crescimento vasto do papel do Estado, direcionado para canalizar recursos públicos para salvar o empreendimento privado em colapso. Veremos, inclusive, uma espécie de nacionalização de empresas falidas. Essa nacionalização será muito importante, porque não terá um caráter progressista. Essencialmente, é o dinheiro público que irá assumir as dívidas privadas de corporações, a restauração da sua saúde econômica ou daquilo que eles consideram ser saúde econômica. Então, elas voltam para o capital privado assim que possam ter certeza de ter uma taxa de retorno. Veremos, portanto, um vasto crescimento da intervenção econômica pelo Estado, inclusive com a nacionalização e enorme gasto de impostos. Tudo isto está no manual tradicional dos esquerdistas considerados progressistas. Mas, se não especificarmos “nacionalização para quem ou para qual finalidade?”, perderemos de vista o fato de que nacionalizações são tentativas do Estado, no sentido de colocar um piso no colapso do capitalismo para que, em algum ponto no futuro, se restaurem as classes dominantes em sua posição hegemônica.
Precisamos encarar isto: esta é a maior depressão mundial desde a década de 30. Recém está começando. De cada seis americanos, um está desempregado ou com redução de carga horária. Esse número irá aumentar para 25% até o final do ano. Portanto, estamos numa situação em que o capitalismo, em resultado de suas próprias operações de mercado, está experimentando o seu pior colapso e sua maior taxa de falências em 70 anos. É aí que o Estado precisa desempenhar um papel essencial. Mas o papel do Estado (que estamos assistindo) não é o de canalizar dinheiro para empresas de propriedade pública visando empregos e salários para os trabalhadores, mas direcioná-lo para capitalistas que fracassaram no mercado competitivo.
Quais são as propostas da esquerda em vista deste cenário de catástrofe econômica, social e ecológica? Quais parâmetros deveriam orientar as ações de uma nova esquerda?
Uma das propostas é frear o desemprego. A esquerda não pode permitir que empresa alguma demita trabalhadores, transforme programas de estímulo de gastos de renda em investimentos sociais de grande porte, grandes investimentos produtivos, grandes projetos de emprego, grandes obras públicas pagando salários ao nível de sindicalizados. A meu ver, a finalidade principal não é colocar recursos nas mãos de capitalistas na esperança de que eles vão investir o dinheiro e gerar empregos. É o inverso: colocar dinheiro na renda e no emprego dos trabalhadores, independentemente dos fracassos do capitalismo. Devemos concentrar os programas no sentido de que governo seja proprietário, em grande escala e a longo prazo, do sistema produtivo e financeiro. Eles fracassaram, destruindo a produção e as finanças. Não podemos sustentar perdedores, fracassos. Precisamos começar da frente. Não podemos construir em cima de sistemas quebrados. A noção de botar um remendo aqui, estimular ali, está errada. Os trabalhadores não podem permitir desemprego maciço que irá derrubar os salários ainda mais, e levar à concentração de algumas poucas empresas que conseguem resistir à tempestade.
Esquerda brasileira
Temos um lugar para grandes gastos do governo, mas não subsidiando as perdas do capitalismo; trata-se de levantar o padrão de vida e a demanda dentro do país. Num lugar como o Brasil, isto significa investimentos em grande escala no desenvolvimento da agricultura familiar no interior, para criar demanda doméstica por suprimentos. Significa, ao mesmo tempo, assumir as indústrias falidas no setor industrial e não simplesmente proporcionar-lhes bilhões de dólares de subsídios e subsidiar empréstimos. O governo declara que a finalidade é criar empregos e abrir o crédito; isto canaliza para empresas que não irão investir, se não enxergarem um mercado, porque a demanda está baixa. Para gerar demanda, é preciso focalizar a renda diretamente nas mãos dos consumidores. Se você quiser gerar produção, você não irá subsidiar empresas capitalistas improdutivas e inviáveis.
Esta é uma posição estratégica que a esquerda necessita adotar. Ela não deveria encarar-se a si própria como mero salva-vidas do capitalismo, onde o governo não é apenas um parceiro de empresas capitalistas falidas, numa espécie de keynesianismo bastardo. O que precisamos fazer agora é pensar sobre a reorganização da indústria com base justamente nas forças produtivas, que são trabalhadores, engenheiros, cientistas, que projetam produtos para consumo doméstico e, caso necessário, para comércio regional, se é que isto é possível.
Subordinação ao mercado externo
Mas a orientação do Brasil nos últimos 40 anos, principalmente com FHC e Lula, tem sido totalmente subordinada ao mercado externo. O crédito tem sido usado para facilitar gigantescas emissões de títulos [bond floats] que beneficiam coupon clippers. É necessário demolir toda essa concepção e conceber uma nova estratégia, principalmente num país como o Brasil e seus vizinhos. O Brasil é um continente, não há absolutamente razão alguma para seu mercado interno ser tremendamente subdesenvolvido e inexplorado. Há um excedente gigantesco de mão-de-obra improdutiva, tanto na área rural quanto nas cidades. O país tem os recursos humanos, o mercado, os recursos naturais e complementaridades com países vizinhos, como a Bolívia. Não há absolutamente razão objetiva alguma para continuar com um modelo fracassado de capitalismo baseado na exportação, que demonstrou sua incapacidade de desempenhar as funções básicas de uma economia, que é emprestar, produzir empregos – ele fracassou, e a esquerda precisa dizer isso e fazer um novo começo com uma nova concepção estratégica de mercados.
De que maneira o colapso do capitalismo alterou as relações de trabalho e aumentou as disparidades entre as classes sociais? Até que ponto a exclusão social tende a aumentar?
O Brasil é marcado por uma longa guerra de classes durante os últimos vinte anos, a qual tomou diferentes formas. Nos últimos anos, se acentuou o uso de mecanismos corporativos da colaboração entre capital, Estado e sindicato, que basicamente neutralizou os sindicatos como mecanismos para engendrar alternativas políticas e econômicas de grande escala, reduzindo-os mais ou menos à função de fazer a barganha coletiva de salários e outras questões. Na minha opinião, isto restringiu seriamente a capacidade de o trabalho desafiar o capital em todas as suas manifestações. Ao mesmo tempo, ocorre um desgaste dos sindicatos pela transferência de fábricas para regiões que não têm sindicatos, explorando o gigantesco excedente populacional em áreas não-industriais, não-tradicionais. E isto levou ao declínio do número absoluto de trabalhadores organizados ou ligados a qualquer tipo de luta social.
Reflexos no mundo do trabalho
Esta crise econômica, ao menos no primeiro momento, irá criar enorme excedente de mão-de-obra, e, caso não se encontre um mecanismo para integrar trabalhadores desempregados num movimento social, estes vão servir como meio de pressão para reduzir ainda mais os salários. Trabalhadores nunca são marginalizados. Eles são reduzidos em sua capacidade de barganha, têm perdas absolutas de renda, mas, do ponto de vista de reprodução do lucro, o tamanho do excedente de mão-de-obra está relacionado com o declínio de renda e de serviços sociais para os trabalhadores. Isso tem um papel decisivo. A marginalização da renda não significa a dissociação sistêmica dos trabalhadores em relação às operações do sistema capitalista. Acredito que o termo “exclusão social”, de certa forma, dá a entender que eles deixam de ser funcionais ou operacionais no sistema capitalista. Quanto maior for o excedente de mão-de-obra, maior será a competição por empregos entre trabalhadores; quanto maior a competição, mais baixos ficam os salários, mais opções terá o capital para negociar contratos.
Percebo que a acumulação de trabalhadores desempregados, sub-empregados e com emprego parcial, ao menos até se organizarem como classe ou subclasse reconhecível, é encorajada pelos empregadores, que buscam o emprego rotativo, contratos de seis meses que inibem qualquer tipo de solidariedade. Este tipo de exclusão social eu chamaria de rompimento de solidariedade. É um elemento crucial particularmente nesta época de depressão econômica, até que aconteça algo como na Argentina entre 1999 e 2002, quando grupos maciços de trabalhadores desempregados paralisaram os sistemas de transporte e as estradas de rodagem, comprometendo seriamente a realização de lucros pelo bloqueio do transporte de mercadorias entre mercados. A não ser que aconteça algo assim, os trabalhadores desempregados serão instrumento perfeito para se tentar impor a recuperação do capitalismo nas costas dos trabalhadores. É preciso aumentar a mão-de-obra excedente, a massa de desempregados, os sub-empregados, aqueles que enfrentam concorrência no portão das fábricas e escritórios. Cada vez mais, veremos o desenvolvimento do trabalho temporário, isto é, trabalhadores sem contratos fixos; isto será colocado como flexibilidade da mão-de-obra para facilitar o emprego. Mas em aspecto algum este será um resultado progressista, porque reverte décadas de organização social.
Que mudança o senhor visualiza no capitalismo?
O que está acontecendo são gigantescos gastos do governo para dívidas, os quais vão ser sustentados mediante aumento de impostos e cortes de programas sociais nos orçamentos para subsidiar a recuperação capitalista. Vejo um enorme retrocesso nas receitas e nos gastos do governo, ou colocando em outros termos, entre os ganhos corporativos e os salários corporativos. Veremos imenso crescimento do abismo à medida que avança a crise. Não tenho absolutamente dúvida alguma em relação ao fato de que um governo que assume dívidas enormes, nas quais o pagamento dos juros soma um quinto ou um sexto do orçamento federal, não terá espaço algum para encarar despesas sociais, para aumentar ou mesmo manter programas sociais. Penso que a recuperação capitalista significa que os trabalhadores pagam pelo prejuízo e desaparecimento do capitalismo, a não ser que você tenha um governo diferente, com compromissos sociais diferentes e compromissos de classe diferentes, que procure financiar a recuperação dos padrões de vida dos trabalhadores, que garanta o emprego dos trabalhadores e que intervenha nas fábricas que vão contra essa política – intervir no sentido de assumir, assumir o gerenciamento, a direção, o investimento e a política salarial. Não há dúvida alguma de que irão falar sobre “sacrifício igual” dos capitalistas e dos trabalhadores. Mas os capitalistas irão continuar donos das fábricas, sem quaisquer perdas, e os trabalhadores perderão seu salário. Então, qual é o sacrifício igual, quando um mantém os instrumentos básicos de produção e distribuição, e o outro sofre as consequências de redução de salário e dos benefícios sociais?
Em que sentido as transformações com a crise financeira, econômica e ecológica implicam inovação política?
Existe uma tremenda lacuna nessas questões. Existem dois fatores que precisamos reconhecer: as condições objetivas para mudança estão em seu momento mais favorável. Ou seja, nunca antes na história tanta gente reconheceu a questão do aquecimento global, da mudança climática. De modo semelhante ocorre o mesmo com o capitalismo: nunca antes vimos um colapso tão profundo dos sistemas financeiro e produtivo ao mesmo tempo no palco mundial, indo da Rússia à Patagônia, da Patagônia ao declínio do comércio na Ásia, ao desmoronamento das principais indústrias nos EUA. Falando objetivamente, o questionamento em relação ao capitalismo e ao meio ambiente está mais forte do que nunca. Os capitalistas nunca estiveram tão na defensiva e os defensores da poluição e do aquecimento global nunca estiveram tão fracos. Mesmo assim, não estamos enxergando mudança alguma, porque objetivamente também estamos num dos pontos mais fracos: os social-democratas se tornaram sócios do capitalismo na Europa; nos EUA, não há movimento algum, pois o movimento contra a guerra virtualmente desapareceu, assim como os movimentos pelos direitos civis e dos imigrantes desapareceram. Também não existe sindicato organizado nem partido algum que represente alternativas valiosas. Na Europa, talvez na França e na Itália ainda existam movimentos de sindicatos, mas eles não estão numa posição de exercer poder governamental. Há protestos maciços por toda a China, os quais podem se aprofundar. Por sua vez, na América Latina, há um histórico de lutas, um reavivamento em potencial, mas a Central Única dos Trabalhadores (CUT) é muito restringida e os outros sindicatos têm sido muito submissos, em vários casos incorporados no sistema, ao menos no regime de Lula. Com exceção da Venezuela e em grau mais reduzido Equador e Bolívia, não há sequer governos nacionalistas; só há nacionalismo setorial na Bolívia e no Equador, onde muitas multinacionais ainda ocupam posições estratégicas. Assim sendo, afirmo que, na América Latina, não estamos na mesma posição que ocupávamos no final dos anos 90, com os movimentos sociais em ascensão e governos neoliberais em declínio. Não vejo a centro-esquerda virando para a esquerda. Também não percebo a direita desaparecer. Ela, na verdade, está retornando na Argentina, e na Bolívia estão fazendo esforço para influenciar um terço do país.
Um grande paradoxo
Digamos o seguinte: temos um grande paradoxo – aprofunda-se o questionamento dos fracassos do capitalismo e dos destruidores do meio ambiente, ao mesmo tempo em que não há o surgimento de uma esquerda alternativa claramente articulada. Isto pode mudar. Não se pode especificar o ponto em que algo novo poderia aparecer, algum movimento social revitalizado e dinâmico: quando o desemprego for de 15% no Brasil, ou 18% ou 20% na Argentina, ou quando a pobreza aumentar ainda mais no México. Não estou excluindo isto, nem sou um pessimista estratégico, mas tento ser realista a este respeito: temos essa realidade dupla de grandes oportunidades e grandes fraquezas subjetivas.
Alguns críticos dizem que a esquerda está ultrapassada, superada, porque não percebeu a importância de construir um novo modelo energético e ecológico. O que o senhor pensa sobre essa crítica?
A esquerda não só deixou de conceber alternativas energéticas e ecológicas, mas que existem muitas alternativas energéticas disponíveis. Talvez a esquerda esteja desconectada de um movimento bem amadurecido. Mas essa falta de integração acontece também com outros segmentos da sociedade. Por exemplo, não existe um movimento político para os colonos sem terra, nem um movimento para os desempregados e para o número crescente de trabalhadores depauperados. Portanto, não se trata exclusivamente de não se conseguir construir algum modelo em torno da questão energética. Trata-se do fracasso em conseguir livrar-se das parcerias entre capital e trabalho, vinculações entre cientistas e seminários - cientistas e teóricos do clima vão para fóruns sociais no Pará, aplaudem-se mutuamente, vão para casa e celebram o fato de que ganharam a atenção das pessoas. É uma falta de coerência total: nenhuma dessas conferências ecológicas resultou em alguma coalizão ao redor das questões econômicas, ecológicas e afins. Percebo que o grande fracasso está com os movimentos ecológicos. Na Alemanha, eles se tornaram anexos dos partidos mais importantes. Na França, deixaram de fazer conexões com os principais movimentos de greve, e na Itália eles têm sido uma força muito limitada e marginal, com exceção de ocasionais demonstrações. Nos Estados Unidos, há 110 grupos ecológicos diferentes, cada qual tentando pressionar o governo existente, em vez de montar uma força política independente; consideram-se mais como lobbies a fazer pressões, e grupos locais com identidades muito específicas: centrados em árvores, em energia, vento etc. Alguns começam como movimento social e depois acabam como capitalistas de risco.
O pensamento marxista ainda é pertinente na América Latina?
Esta pergunta foi respondida pelos próprios capitalistas. Vemos, na imprensa, que o interesse pelo marxismo levou a compras maciças dos livros de Karl Marx. Os jornais financeiros de maior circulação estão usando a mesma linguagem, falando de “colapso do capitalismo”, “fracassos do capitalismo”, da incapacidade operacional do sistema financeiro, em outras palavras: mesmo as publicações financeiras hoje reconhecem seu diagnóstico fracassado, seus erros de receita até agora, de modo que abriram espaço para um debate. O debate hoje não é mais sobre o Estado e o mercado, mas sobre o papel que o Estado deveria desempenhar ao substituir ou restaurar o mercado, contra aqueles que encaram o Estado como um instrumento para o poder social dos trabalhadores e para reorganizar a economia. Acredito que o liberalismo está morto. Todo escritor capitalista afirma isso. Agora a questão é: quais são as alternativas para o liberalismo? E aqui dois teóricos de projeção estão em confronto, Keynes e Marx. Voltamos à seguinte posição: não é uma questão de intervenção do Estado em si, mas de intervenção do Estado em favor de qual projeto econômico?
brasildefato.com - 01.04.09
À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.
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