Henrique Custódio
As denúncias, fundamentadas há dias pelo Público sobre os projectos de moradias assinados indevidamente por José Sócrates na câmara da Guarda, nos finais dos anos 80, originaram da parte do primeiro-ministro um desmentido revelador.
Após admitir a sua «responsabilidade» na elaboração dos 21 projectos escrutinados pelo jornal – e alegadamente realizados ao arrepio do Estatuto de Exclusividade da AR, que determina aos deputados em exercício «a impossibilidade legal de desempenho de qualquer actividade profissional, pública ou privada» -, Sócrates argumenta que tais projectos «foram elaborados a pedido de amigos e sem que eu tenha auferido qualquer tipo de remuneração», o que, segundo ele, «está portanto em conformidade com as normas legais de exclusividade em vigor».
Deixando de lado as contradições destes argumentos - aliás também denunciadas pelo jornal (por exemplo, Sócrates em 2007 declarava que estes projectos eram uma «actividade residual» e agora transforma-os num «favor a amigos») - e ignorando os despiques hermenêuticos que o primeiro-ministro e serviçais atiçam sobre a legislação em causa, esforçando-se por demonstrar que ela permite o que efectivamente proíbe (por exemplo, a invocação da gratuitidade como uma «conformidade com as normas legais» configura uma falácia, pois a norma é taxativa na proibição de qualquer actividade profissional, pública ou privada), o que importa reter e observar é a actuação, ela própria, do primeiro-ministro.
Invocar a gratuitidade de 21 projectos de moradias feitos num quadro de «favor a amigos» provoca, de imediato, uma irreprimível estranheza – a de haver alguém a trabalhar tanto nas «horas vagas» (Sócrates era deputado «em exclusividade» e até pedira, nesse período, o pagamento com retroactivos do subsídio dessa exclusividade) e para tantos «amigos» (21 projectos, em cerca de dois anos de «horas vagas», é de facto obra).
Acontece que esta invocação de «favor a amigos» introduz uma displicência, nesta empreitada dos 21 projectos, que os factos apurados pelo Público nos arquivos da câmara da Guarda desmentem flagrantemente: ao contrário de um «engenheiro nas horas vagas» que desenhava casas «para amigos», como afirma o próprio, nesse período Sócrates era um projectista de edifícios na Guarda com ligações orgânicas à câmara tão concretas, que esta acabaria por o afastar da direcção de obras nos anos 90, após lhe aplicar duas repreensões por unanimidade, ameaças de sanções legais e severas críticas por incompetências várias nesse métier de projectista.
Todavia, o mais revelador do quadro mental em que se move José Sócrates é a facilidade com que ele invoca o «trabalho para amigos» como uma coisa natural, ainda por cima numa actividade técnica conhecida pela voracidade (um projectista a desenhar uma casa grátis parece uma lotaria, projectar 21 à borla configura um milagre bíblico). É um retrato de corpo inteiro e é o próprio José Sócrates que o tira a si próprio: a filosofia deste homem assenta no amiguismo, a sua visão do mundo afunila-se numa teia de favores onde todo o poder se mercadeja.
A esta luz, ficam cruamente expostas as embrulhadas de Sócrates nas licenciaturas, nos Freeports, nas nomeações de Varas e Penedos, nas PêTês e TêVêís. E nem uma legião de assessores consegue escondê-lo.
http://www.avante.pt/noticia.asp?id=33177&area=29
À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.
09/04/2010
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