À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

05/04/2010

A ignorância mata e o hip-hop também salva

João Bonifácio

No dia 14 de Março deste ano foi publicada no DN uma crónica que faria corar de inveja os mais prendados revisionistas históricos ao serviço do regime estalinista. No texto, intitulado "O hip-hop também mata", Alberto Gonçalves, sociólogo, parte da morte de um rapper, MC Snake, às mãos da polícia, em circunstâncias ainda por apurar, para defender a tese de que os responsáveis pelo estereótipo que a polícia tem sobre os rappers negros é da exclusiva responsabilidade dos próprios rappers negros.

Gonçalves afirma que o hip-hop, "no seu primarismo", "tem pouco a ver com música e muito a ver com uma atitude de confronto face a uma sociedade que [...]se imagina discriminatória", atitude verificável "no vestuário ridículo e nos gestos animalescos", bem como nas letras que "além de analfabetas", são "manifestações de rancor social" e "glorificações do crime e panfletos misóginos". Resumindo: "O hip hop nasceu na América enquanto braço "musical" e tardio do black power" e a "identidade negra" define-se "numa postura de desafio e fúria que a "inteligência" julga legitimada por uma suposta opressão".

Isto não é uma tese - é tentar ser politicamente incorrecto à força para irritar o povo. É uma manifestação de exibicionismo analfabeto. É, no fundo, um pedido de ajuda e merece a nossa pena.

Quando Gonçalves usa "primarismo" para qualificar o hip-hop não está certamente falar de música, já que o hip-hop é um género musical múltiplo e quase inqualificável, que usa os mais variados ritmos, tem técnicas difíceis de dominar e implica - para os MCs - um controlo da métrica assinalável.

É certo que no início era feito com dois pratos e um microfone e nesse sentido esse hip-hop específico é "primário" - tal como o rock'n'roll, a folk, o fado e o tango, a salsa e o blues o são. Nesse sentido, toda a música "popular" é "primária", o que não impediu Haydn, Sibelius, Brahms, Mendhelson, Bartók e Wagner de irem lá pilhar melodias. Aplicando o critério que Gonçalves usa para recusar o valor musical do hip-hop (o "primarismo") teríamos de atirar para o lixo toda a música popular que inspirou estes compositores e consequentemente a obra destes, por usarem melodias "primárias".

É igualmente sintomático que Gonçalves use o adjectivo "ridículo" para o vestuário das gentes do hip-hop e "animalesco" para os gestos. Ser sociólogo e despachar qualquer leitura que se possa fazer da indumentária e da dança de um grupo social com um comentário de porteirinha é o mesmo que ser antropólogo e perante um vaso do Neolítico homenageando a Deusa-Mãe dizer que aquilo é tudo cacos e a mulher pintada é gorda e parola.

Vamos ser claros: Gonçalves, com esta escolha de palavras, quer chamar símios analfabetos aos hip-hopers. Que, segundo o cronista, fazem "glorificações do crime e panfletos misóginos". Mesmo fazendo de conta que não existe hip-hop que fale de outros assuntos ou que advirta contra a violência e a misoginia, fico perplexo com a ignorância literária de Gonçalves: a Bíblia, por ter pragas, homens que subjugam mulheres, crimes e vinganças é uma glorificação do crime e um panfleto misógino? "O Teatro de Sabath", de Philip Roth, o "Psicopata Americano", de Bret Easton Ellis, são glorificações de crimes e panfletos misóginos? E a "Kalevala"? A "Medeia"? A "Odisseia"? Glorificações de crimes e panfletos misóginos.

A ignorância de Gonçalves chega ao cúmulo quando diz que o hip-hop é o braço "rapado" do black power. O "black power" era um "slogan" usado nos anos 60 por ideólogos negros, estando ligados a movimentos não-violentos. Nos anos 60 não havia hip-hop, que começou no Bronx, na década de 70, sem qualquer conotação política: tratava-se apenas de fazer festas que juntavam o maior número de pessoas possível (incluindo gangs rivais). Os primeiros temas de hip-hop politizado surgem já nos anos 80 e só com os Public Enemy é que o hip-hop devém um veículo de reflexão sobre a questão da identidade negra.

Façamos então um exercício à sr Gonçalves só para que se perceba a periculosidade destas brincadeiras irresponsáveis. Uma senhora entra num bairro de gandulos vestida com uma mini-saia vermelha, é perseguida por eles e violada. Segundo o sr Gonçalves, "é possível" que tenha sido violada por causa de um estereótipo, mas a responsabilidade do estereótipo é "inteirinha" dela. Um pensamento nada "primário", que daria origem a uma belíssima sociedade.

http://ipsilon.publico.pt/musica/texto.aspx?id=253868

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