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21/10/2009

Capitalismo, um parêntesis na História da Humanidade

Entrevista especial com Anselm Jappe - IHU On-Line

O capitalismo não é uma "realização necessária de toda a história", mas apenas um "parêntese" nela. A ideia é do ensaísta alemão Anselm Jappe, que, em entrevista especial, concedida à IHU On-Line, afirmou haver uma ontologização do capitalismo tanto por parte do pensamento burguês quanto por parte da dita esquerda. Esse valor "não tem um estatuto ontológico verdadeiro, mas pretende tê-lo", como se o capitalismo fosse uma metafísica realizada. Segundo ele, inclusive os críticos do capitalismo não o fazem verdadeiramente, pois "se limitam a criticar o liberalismo, propondo como alternativa um capitalismo mais mitigado". Jappe assegura que já observamos sinais de colapso desse sistema, e a crise econômico-financeira mundial é um deles: "O capitalismo vai terminar, e já estamos observando esse fim. Não é algo que irá acontecer de um dia para o outro, mas os sinais de esgotamento são visíveis". Isso só vem a confirmar "o que a crítica do valor já havia dito há 20 anos", acentua.

Jappe dá detalhes sobre a crítica que faz, junto com Robert Kurz, à teoria de multidão de Michael Hardt e Toni Negri. Em sua opinião, eles não pensam uma saída do capitalismo, e inclusive entendem o valor como algo positivo. O "negrismo", dispara, é um marxismo tradicional com verniz pop, e uma "impostura intelectual". Entretanto, a teoria faz sucesso porque tece "lisonjas a toda essa nova camada que trabalha no campo da informática". Outro equívoco, assinala, é a equiparação errônea que esses autores fazem entre o conceito de trabalho abstrato e trabalho imaterial.

Momentos antes de proferir a conferência Crise, Crítica Radical e Emancipação Humana, proferida no IHU Ideias de 01-10-2009, Jappe conversou com a IHU On-Line. O grupo Crítica Radical, de Fortaleza, apoiou o evento.

Filósofo e ensaísta nascido na Alemanha, realizou seus estudos na Itália e França, onde vive atualmente. Além de inúmeros artigos já publicados na revista alemã Krisis, é autor de Guy Debord (Petrópolis: Vozes, 1999) e As Aventuras da Mercadoria (Lisboa: Antígona, 2006). Leciona na Academia de Belas-Artes de Frosinone (Latium, Itália). Após a cisão interna do Grupo Krisis, posicionou-se ao lado dos autores que fundaram a revista Exit!, cujos principais integrantes são Robert Kurz, Roswtiha Scholz e Claus Peter Ortlieb. Participa do Grupo Crítica Radical e da Revista "EXIT - Crítica do Capitalismo para o Século XXI - com Marx para além de Marx".

IHU On-Line (IHU) - Por que afirma que o capitalismo é apenas um parêntese na história humana?
Anselm Jappe (AJ) - Trata-se de uma formulação polêmica, porque o capitalismo existe há, no mínimo, 200 anos nos países desenvolvidos como Inglaterra. Há antecedentes do capitalismo na época da Renascença, remontando ao século XIV. Disse que o capitalismo é um parêntese na história para fazer uma objeção à apologia atual que o vê como uma realização necessária de toda a história. Critico a ideia de que a humanidade e a evolução avançam para algo melhor, e que o capitalismo seria uma espécie de apogeu da humanidade, uma forma de sociedade e de economia que vai permanecer para sempre. Muitas vezes, as apologias do capitalismo são feitas apresentando a democracia como uma forma finalmente encontrada para o convívio dos seres humanos. Assistimos, então, a uma espécie de ontologização do capitalismo. Isso consiste em dizer que pode haver diferentes modelos de capitalismo, mas ele se mantém no mesmo enquadramento do valor, do dinheiro, da democracia e do Estado. Não é apenas o pensamento burguês, mas boa parte também do pensamento que se proclama ser de esquerda, que se converteu a essa ontologização do capitalismo, incapaz de imaginar algo diferente.

Com todas as mudanças propostas, pensam, mesmo assim, se permanecerá numa lógica capitalista ou se não volta a se cair na barbárie e no caos. Muitos daqueles que criticam o capitalismo hoje (como os altermundialistas e associações como a ATTAC e todas aquelas pessoas que se encontram na cúpula do Fórum de Porto Alegre) não o criticam verdadeiramente, porque se limitam a criticar o liberalismo, propondo, como alternativa, um capitalismo mais mitigado.

Em oposição a essa eternização do capitalismo é que falo de um parêntese, dizendo que esse sistema foi o rompimento absoluto com todas as sociedades pré-capitalistas. O capitalismo não é apenas uma sociedade entre outras, constitui-se a fratura mais fundamental da história da humanidade, principalmente porque introduziu um dinamismo e uma orientação que estavam ausentes nas sociedades precedentes, que eram mais estáticas.

O capitalismo não é um destino inevitável.


A partir disso, uma das principais características do capitalismo é a resistência ao fato de que a atividade social se entenda como trabalho, e o trabalho como valor, e o valor como dinheiro. Então, tudo isso não é natural, histórico e eterno. Tudo isso veio ao mundo com o capitalismo. Aliás, essa não é uma afirmação de Marx, somente. Há estudos de Marcel Mauss e Karl Polanyi que mostraram o caráter radicalmente diferente das sociedades antes do capitalismo. Não estou falando apenas em sociedade etnológica, como Polanyi demonstrou que, no século XVII, havia lógicas sociais bem diferentes, ou como Thompson demonstrou em sua obra clássica, A formação da classe trabalhadora na Inglaterra.

Tudo isso permite demonstrar os diferentes pontos de vista, não somente marxistas, de que o traço fundamental do capitalismo não é algo natural do ser humano, mas pertence apenas a uma fase determinada da história humana. Deste ponto de vista, podemos dizer que o capitalismo é apenas uma fase da humanidade, e assim como veio ao mundo, pode, também, desaparecer. É claro que não quero dizer que o capitalismo seja um simples "incidente" depois do qual se podem mudar muitas coisas. Essa expressão mostra, simplesmente, que o capitalismo não é, necessariamente, um destino inevitável.

E quando falo em parêntese, não significa que havia uma espécie de sociedade feliz, e o capitalismo chegou como uma "erupção do mal", e que esse parêntese vai se fechar para reencontrar uma espécie de felicidade. Isso seria muito bom, mas não é o que acontece. O capitalismo vai terminar, e já estamos observando esse fim. Não é algo que irá acontecer de um dia para o outro, mas os sinais de esgotamento são visíveis.

IHU - Quais são os principais impactos da crise econômico-financeira atual no capitalismo, na política, no trabalho? Esse sistema está ameaçado com tal cenário mundial?
AJ - De fato, a crise do ano passado confirmou o que a crítica do valor já havia dito há 20 anos. É claro que a crise financeira não é a causa da crise do capitalismo, mas, bem pelo contrário, a financeirização foi apenas uma maneira do capitalismo continuar vivendo, principalmente, através do endividamento contínuo. A crise financeira não era, simplesmente, devida à cupidez dos bancos ou especulação que roubava dos trabalhadores, mas se deu, essencialmente, a emergência da verdadeira realidade de hoje, ou seja, o esgotamento do valor, a sua saturação. Graças ao desenvolvimento tecnológico, se usa cada vez menos a força de trabalho para a produção de mercadorias. E menos força de trabalho significa, também, menos valor e mais dificuldade para acumular capital na produção do real. É por isso que o capital vai se refugiar na especulação para ficar no capital fictício.

Retorno da financeirização

Com a crise, há uma espécie de retorno na financeirização. Essa financeirização é uma remissão da crise, e não a sua causa. Ao contrário, é um modo de esconder e ocultar essa crise. Muitas empresas ou estados que já deveriam ter decretado falência há muito tempo, simplesmente continuam existindo, acrescentando, a cada ano, mais um zero a seus números.

Com a verdadeira crise que começa a emergir em plena luz do dia, há um grande aumento do desemprego na Europa. Agora se diz que ela passou, e que a economia está sendo retomada. Contudo, fora alguns ciclos que continuam possíveis, há uma "retomada" pelo fato de que são queimadas reservas de um modo nunca visto antes.

Para compreender isso, devemos prestar atenção em determinados fatos precisos. Na França, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, o patrimônio acumulado dos franceses diminuiu de forma significativa. Até mesmo as classes médias, que podiam cobrir suas despesas, começam a vender seus bens imobiliários não apenas para investir, mas para saldar compromissos. Cada família está endividada em, pelo menos, 15 mil euros. Praticamente toda a Itália tem de trabalhar quase que gratuitamente para poder reembolsar essa dívida.

Nos EUA, a situação é ainda mais extrema. Quando falamos em bancos e que o governo intervenha, permanecemos, ainda, numa esfera larga das finanças. Entretanto, o que pode acontecer é uma reação em cadeia, porque sabemos que todas as dívidas irão criar uma espécie de corrente. Há um verdadeiro risco de que todas essas correntes se rompam e haja um grande pânico.

Até aqui, as instituições conseguiram evitar esse pânico. Muitas vezes, elas se vangloriam em ter aprendido a lição com o que houve em 1929 e que agora sabem administrar a crise, mas, na verdade, não há nenhuma solução estrutural, nenhum novo modelo de acumulação e nenhuma indústria que utilize de forma maciça a força de trabalho. Evita-se a crise, simplesmente, oferecendo cada vez mais crédito. No final das contas, é o mesmo que acontece com quem bebeu e acorda de ressaca, e soluciona o problema bebendo ainda mais. Isso pode funcionar por um período imediato, mas não pode ser uma solução a longo prazo.

IHU - O valor alcançou uma ontologização em nossa sociedade? Em caso positivo, como podemos falar em fim da metafísica se o valor atingiu esse status ontológico?
AJ - O valor não tem um estatuto ontológico verdadeiro, mas pretende tê-lo. Pretende-se que toda estrutura tenha um valor que possa ser trocado no mercado, mas, na verdade, essa é uma ilusão coletiva. Ultimamente, existem análises do capitalismo não apenas como um sistema econômico, mas como uma espécie de metafísica realizada. A modernidade gosta muito de se apresentar como uma espécie de secularização, pensa ser muito superior às religiões antigas. A religião foi abandonada, e, em seu lugar, se adotou a "metafísica do real" ou, ainda, a "metafísica realizada". Marx chamou a mercadoria de ser sensível e suprassensível. A mercadoria, o seu fetichismo, é uma forma de religião, não no sentido banal, de se dar importância demais à mercadoria, mas no sentido que as mercadorias e seus movimentos, o que chamamos de mercado, podem ter estabelecido uma dominação impessoal em nossas sociedades, porque esquecemos que fomos nós que criamos essas mercadorias e suas leis. Foi por isso que Marx falou do fetichismo da mercadoria já a partir de 1842, e tomou esse termo já na Crítica à religião. Ele se referia aos modernos, que se achavam tão modernos, e que, na verdade, não são muito diferentes daquilo que chamamos de selvagens. Há a projeção de um poder coletivo sobre um ser que é considerado como sendo independente desse poder humano. Por isso que podemos estabelecer uma relação entre a teoria do fetichismo de Marx com a teoria antropológica do fetichismo como encontramos em Émile Durkheim.

IHU - Você e Kurz contestam a teoria do Império e Multidão, de Hardt e Negri. Quais são os principais aspectos dessa crítica?
AJ - A teoria da multidão, de Hardt e Negri nada mais é do que uma versão pós-moderna do marxismo mais tradicional, baseada na ideia de que a força de trabalho enquanto tal já está fora da relação capitalista, e que o capitalismo não é senão uma espécie de apropriação do que os operários criam. Na verdade, enquanto portadores de um metabolismo com a natureza, como diz Marx. Para o marxismo tradicional, foram os operários industriais que garantiram esse metabolismo. Negri simplesmente substituiu o operário industrial pelo operário imaterial, ou "informático", ou aquele que trabalha na cultura.

Na verdade, ele e Hardt não conseguem nem mesmo pensar uma saída do capitalismo. Pelo contrário. Falam de autovalorização da multidão. Inclusive entendem o valor como um valor positivo. Eles querem simplesmente liberar a produção em relação a essa espécie de parasitismo de uma classe que não trabalha e controla os meios de produção.

Esse é o marxismo mais tradicional que temos, pintado com outras cores ou com outro verniz, um verniz mais pop. Negri e Hardt utilizam o conceito de trabalho abstrato mas não entendem absolutamente nada desse conceito em Marx, considerando-o que é igual ao trabalho imaterial. Então, todo o "negrismo" pode ser qualificado como uma impostura intelectual. Mas tem sucesso porque lisonjeia a toda essa nova camada que trabalha no campo da informática, por exemplo. Há relações totalmente acríticas com o conteúdo da vida capitalista. Eles dão um tom positivo a tudo que tem a ver com a "cultura capitalista", com as formas de sujeito, da dissolução dos antigos vínculos.
ODiario.info - 21.10.09

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