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14/06/2009

O tempo foge e a fraude agarra-o

Carlos Pimenta

1. "O tempo escapa-se-me entre os dedos" é considerado pelo chefe de tribo de uma ilha Samoa, no século XIX quando de uma visita à Europa, como uma doença do homem branco, que ele nunca entendeu.

Estudos antropológicos posteriores revelaram inequivocamente a existência de diferentes concepções de tempo entre os povos, moldados pela sucessão de acontecimentos sociais, ora impostos por dinâmicas físicas e biológicas (dia e noite, estações do ano, sucessão de colheitas, etc.), ora por culturas e crenças (festividades, acontecimentos religiosos, etc.), ora por práticas sociais institucionalizadas (nascimentos, mortes, substituição de chefias, etc.). De tal modo diferentes que algumas línguas não têm palavras para designar o tempo enquanto outras as têm em abundância. Tempos diferentes entre culturas, entre povos, entre pessoas integradas no mesmo espaço social, mas com práticas quotidianas diferentes.

Ainda hoje é possível dizer com toda a propriedade que "um africano vive metade do tempo de um europeu; mas paradoxalmente, tem muito mais tempo" ("Vagamundos", Tabu, 29/05/2009).

O tempo é, em alguma medida, imposto ao homem, mas também é, em grande medida construído pelo Homem. É uma construção vital que marca a configuração do futuro e o usufruto do presente.

2. O tempo circular - repetitivo, que nos permite fazer amanhã ou que não fizemos hoje - articula-se com o tempo linear - único, que introduz o "atraso" no que devíamos ter feito hoje e não fizemos. No primeiro o presente é comandado pelo passado. No segundo o presente é comandado pelo futuro. O tempo linear é irreversível porque visa atingir um objectivo futuro, porque se molda pelo prazo das tarefas e o valor dos recursos do projecto a construir, porque se concretiza em práticas institucionais.

A correlação de forças entre o "tempo circular" e o "tempo linear" marca a forma de funcionamento das sociedades. A entrada das crianças no sistema educativo marca o início da aprendizagem da irreversibilidade e da importância de se construir o futuro.

A hegemonia do tempo linear nas sociedades coloca uma questão central nas estratégias colectivas e individuais: qual é o prazo do futuro que nos mobiliza no presente?

Na actividade económica esta é uma questão central: estou disponível a consumir hoje menos para poupar e viver melhor daqui a quantos anos? A quantos anos fixo as metas a serem atingidas pela empresa? Duas entre muitas outras questões.

A IBM das décadas de 60 e 70, multinacional, lidando com funcionários, concorrentes e Estados inseridos em diversas culturas sentiu a necessidade de compreender algumas variáveis de Psicologia Social para se organizar. Geert Hofstede esteve associado a esses estudos e nunca mais foi possível deixar de relacionar culturas nacionais, culturas organizacionais e organização da economia.

Inicialmente o tempo social não foi considerado uma variável relevante, mas o contacto com o ser e estar de diferentes povos acabou por impô-la. A orientação de longo prazo versus a orientação de curto prazo surge hoje como um indicador fundamental para compreender o mundo contemporâneo.

Cinquenta anos é um longo prazo mobilizador na cultura chinesa enquanto cinco anos é muito tempo para muitos americanos e europeus.

3. Nós, produtos da cultura greco-latina, judaico-cristã, sempre considerámos que a "paciência chinesa" não era para nós. O prazo de mobilização era mais curto. O que talvez não nos tenhamos apercebido é que o prazo de mobilização diminuía, a solidariedade intergeracional enfraquecia, os objectivos estratégicos das empresas passavam a ser, frequentemente, o amanhã.

Nos anos 50/60 alguns Estados capitalistas e europeus tinham planos a dez anos. John Galbraith constatava na década seguinte, que os conselhos de administração de grandes empresas substituíam a maximização do lucro pela estabilidade das quotas de mercado, como garantia da permanência dos seus empregos. O tempo necessário aos grandes investimentos exigia o longo prazo.

Nos anos 90 impôs-se o curto prazo. A importância crescente dos mercados financeiros anula os tempos de produção e impõe a instantaneidade dos tempos de troca de capital-dinheiro e títulos, da imaterialidade. A cotação das acções nas bolsas - volátil, ponto de encontro da produção, da troca e da especulação - determina o valor das empresas e, correspondentemente, os prémios dos conselhos de administração. A rotatividade do emprego dificulta ou impossibilita uma estratégia de organização familiar e impõe a definição e cumprimento de objectivos, obviamente de curto prazo, como suportes da avaliação.

Um livro de gestão para chamar a atenção tem de garantir, na capa em letras garrafais, o sucesso e o enriquecimento ao fim de sete dias.

4. O económico assume-se como valor primeiro das relações sociais, subvalorizando-se, quiçá esquecendo-se, todos os outros vectores das relações entre os homens e da construção da personalidade.

O curto prazo agrava as desigualdades sociais porque impõe a lei dos mais fortes. As estratégias de sobrevivência sobrepõem-se às lógicas de vida, para muitos. O enriquecimento de curto prazo - contra natura numa economia assente na produção e na melhoria das condições de vida, com respeito material pelos direitos humanos - é o objectivo a atingir, definido no poder, na manipulação de resultados, nos fogos fátuos da promoção social.

A partir dos anos 90 este encurtamento do tempo-projecto gerou uma degenerescências das relações éticas. Constituiu um factor permissivo da fraude. Simultaneamente alimentou vários factores impulsionadores desta, anteriormente referidos.

5. A crise actual constitui um virar de página?

É cedo para dizer. O "velho" e o "novo" ainda estão em confronto. O imprevisível pode mudar o rumo dos acontecimentos.

No meio das tendências e contra-tendências, a reposição das relações sociais que estiveram na base do despoletar da crise parecem dominar.

Que podemos fazer para inverter a situação, em nome da prevenção e combate à fraude?

Visão.pt - 04.06.09

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