Observatório das Desigualdades: Tal como vocês referem no livro Le système des inégalités, as desigualdades sociais constituem um sistema no seio do qual os seus diferentes elementos (os tipos de desigualdade) reforçam-se reciprocamente de uma forma mais ou menos intensa. O que fazer para atenuar a lógica cumulativa e reprodutiva desse sistema de desigualdades sociais?
Alain Bihr/Roland Pfefferkorn: O carácter sistémico das desigualdades sociais permite compreender os limites com que se confrontam as políticas sectoriais de luta contra as desigualdades, aquelas que se debruçam apenas sobre um tipo de desigualdade, e negligenciam ou ignoram precisamente o modo pelo qual os diferentes tipos de desigualdade se determinam reciprocamente e reforçam mutuamente. Para atenuar esta lógica cumulativa e reprodutiva, é no mínimo necessário coordenar-se essas diferentes políticas sectoriais, coisa que se tem feito muito pouco, por causa da separação e concorrência entre a acção dos diferentes ministérios ou serviços sociais. Quanto a uma acção radical contra esta lógica, ela passa necessariamente pela transformação das relação de produção capitalistas que constitutem a matriz do sistema de desigualdades, tal como nós também demonstrámos.
OD: Alguns indicadores de distribuição do rendimento demonstram que Portugal é, a esse nível, um país mais desigual do que a França e um dos mais desiguais da Europa e da OCDE. Os níveis de desigualdade podem ser entendidos como indicadores de (sub)desenvolvimento e obstáculos para o desenvolvimento económico dos países?
AB/RP: O nosso trabalho não foi guiado por uma perspectiva de comparações internacionais, por um lado lado devido às limitações editoriais que nos foram fixadas, por outro por causa das dificuldades inerentes a tais comparações (nomeadamente a falta de homogeneidade entre os instrumentos estatísticos nacionais). Importa referir que quando se realizam tais comparações, é necessário evitar cair nos mesmos tipo de erros que caracterizam muitas vezes os estudos sobre as desigualdades sociais no interior de um determinado Estado-nação, reduzindo-se o sistema de desigualdades apenas às desigualdades de rendimento. Assim a hierarquia dos Estados-nação em matéria de desigualdades sociais é ela própria sensivelmente diferente se se tomar como critério de classificação o tradicional rácio produto interno bruto (PIB)/Habitante ou, pelo contrário, o indicador de desenvolvimento humano (IDH) preconizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Por último – e isto complica ainda mais as comparações internacionais – o nível de desigualdades internas nos diferentes Estados-nação depende também do nível de desigualdade externa : da posição dos diferentes Estados na divisão internacional do trabalho, no mercado mundial e na hierarquia dos Estados-nação. Mas é verdade que a relação entre estas duas dimensões (nível de desigualdades internas e nível de desigualdade externa) assume sem dúvida um duplo sentido : se uma má posição de um Estado-nação na hierarquia mundial tende a conduzir a um alto nível de desigualdades internas, inversamente, um tal nível torna dificíl a mobilização nacional necessária à subida na hierarquia mundial. Mas, na medida em que a posição de um Estado-nação nessa hierarquia depende de muitos outros factores, não é certo que exista uma correlação perfeita entre o nível de desigualdades internas e o nível de desigualdade externa.
OD: As desigualdades sociais existem enquanto tal quando simbolicamente legitimadas. Parece-vos que existe na Europa um entendimento político e social relativamente comum acerca deste fenómeno?
AB/RP: Podemos, sem grande risco, conceber a hipótese da existência de uma comunidade de referências relativamente comum na Europa, nas quais se fundam os seus modos mais correntes de legimitação das desigualdades sociais. Isto porque essas referências fazem parte tanto das origens culturais comuns à Europa (a herança greco-latina e judaico-cristã) como dos sistemas ideológicos que nasceram com o desenvolvimento do capitalismo (liberalismo e neoliberalismo, moderados eventualmente pela tradição social-democrata). Este facto não exclui de forma alguma as variantes nacionais, dependentes das histórias específicas das diferentes nações europeias. Por exemplo as legitimações tomadas por empréstimo ao velho pensamento católico são sem dúvida menos férteis em França ou no mundo anglo-saxónico ou escandinavo do que na Europa mediterrânica. Mas, no conjunto, todas as justificações das desigualdades sociais reconduzem-se à tipologia que nós esboçámos na introdução à nossa obra.
OD: Até que ponto a actual crise internacional pode contribuir para se problematizar “as normas de legitimação da ordem social”, mais concretamente a apologia do naturalismo individualista (a ideologia do self-made man) e a crítica ao Estado providência?
AB/RP: É óbvio que o desencadear da recente crise financeira e a sua repercurssão na "economia real" constitui uma negação contundente do neoliberalismo, tanto sob o plano ideológico como das políticas económicas. Contudo, se os governos que levaram a cabo essas políticas e os seus idéologos de serviço tiveram de abandonar todo o seu triunfalismo, nem uns nem outros renunciaram ao essencial. Isto deve-se ao facto de o neoliberalismo ser, pura e simplesmente, a política e a ideologia que corresponde melhor aos interesses do capital na actual fase de transnacionalização. O nível de contestação ao crédito político e ideológico do neoliberalismo nos próximos anos vai depender essencialmente da duração e profundidade desta crise, das suas consequências, bem como da capacidade das forças populares imporem uma inflexão das orientações actualmente ainda dominantes na gestão do capitalismo em crise. Nesta matéria como em tantas outras, o futuro permanece em aberto.
OD: Por último, uma questão de ordem epistemológica. Em Le système des inégalités é referido que a conceptualização científica das desigualdades sociais subentende um olhar político sobre a realidade. A objectivação analítica das desigualdades sociais terá então, necessariamente, a ideia subjectiva de justiça como suporte?
AB/RP: Nós somos provenientes de uma tradição antipositivista que recusa separar a esfera dos juízos factuais dos juízos valorativos. Nós entendemos que a exigência da "neutralidade axiológica" é não só inalcançável mas também prejudicial. Pensamos que uma objectividade aprofundada tem como condição necessária uma atitude crítica face à realidade social, capaz de não se deixar enganar pelas aparências, por ilusões e discursos de legitimação destinados a mascarar as desigualdades sociais ou a minimizar a sua amplitude. É este tipo de atitude que nos permitiu, por exemplo, intuir o carácter sistemático das desigualdades e que nos encaminhou para a sua demonstração, enquanto uma imensa maioria dos estudos sociais, prisioneiros do positivismo académico, desconhecem não só essa característica mas muitas vezes também a simples existência das desigualdades sociais. Nesta área de investigação, a atitude crítica, potenciada pela ideia de justiça social, foi a condição que permitiu a existência de um progresso científico.
Link para recensão do livro Le système des inégalités
Outras obras publicadas pelos autores:
Alain Bihr publicou recentemente La préhistoire du capital, Le devenir-monde du capitalisme, Lausanne, Page Deux, 2006 et La novlangue néolibérale. La rhétorique du fétichisme capitaliste, Lausanne, Page Deux, 2007.
Roland Pfefferkorn publicou recentemente État/Travail/Famille: "conciliation" ou conflit?, Paris, L’Harmattan, Cahiers du Genre, n° 46, 2009 (en collaboration avec H. Hirata et J. Heinen) e Inégalité et rapports sociaux. Rapports de classes, rapports de sexes, Paris, La Dispute, 2007.
Publicaram juntos vários estudos sobre a temáticas das desigualdades, nomeadamente: Déchiffrer les inégalités, Paris, La Découverte, 1999 [1ª edição: 1995] e Hommes-Femmes, quelle égalité? Paris, L’Atelier, 2002.
Version en français
Alain Bihr est professeur de sociologie à l’université de Franche-Comté (Besançon) et Roland Pfefferkorn enseigne la même discipline à l’université de Strasbourg. Le deux ont publié des ouvrages dans le domaine des inégalités sociales, notamment Le système des inégalités, le livre qui a constitué la base de cet entretien.
Observatoire des Inégalités (portuguais): Comme vous le dites dans votre livre Le système des inégalités, les inégalités sociales constituent un système au sein duquel les différents éléments (types d'inégalités) se renforcent réciproquement d’une façon plus ou moins intense. Que faire pour atténuer la logique cumulative et reproductive de ce système des inégalités sociales?
Alain Bihr/Roland Pfefferkorn: Le caractère systémique des inégalités sociales permet de comprendre les limites auxquelles se heurtent les politiques sectorielles de lutte contre les inégalités, celles qui visent un seul type d’inégalités, en négligeant ou en ignorant précisément la manière dont les différents types d’inégalités se déterminent réciproquement en se renforçant mutuellement. Pour atténuer cette logique cumulative et reproductive, il faudrait au minimum coordonner ces différentes politiques sectorielles, ce qui ne se fait encore que très peu, du fait du cloisonnement et de la concurrence entre l’action des différents ministères ou services sociaux. Quant à une action radicale contre cette logique, elle passe nécessairement par la transformation des rapports capitalistes de production qui constituent la matrice du système des inégalités, comme nous l’avons également montré.
OI: Certains indicateurs de répartition des revenus montrent que le Portugal est, à ce niveau, un pays plus inégalitaire que la France et un des plus inégalitaires de l'Europe et de l'OCDE. Les niveaux d'inégalité peuvent-ils être considérés comme des indicateurs de (sous-) développement et des obstacles au développement économique des pays?
AB/RP: Notre travail ne s’est pas mené dans une perspective de comparaisons internationales, d’une part du fait des limites éditoriales qui lui étaient fixées, d’autre part du fait des difficultés inhérentes à de pareilles comparaisons (notamment le manque d’homogénéité entre les appareils statistiques nationaux). D’autre part, lorsque on procède à de telles comparaisons, il faut éviter de tomber dans le même type d’erreurs que celui qui caractérise fréquemment les études sur les inégalités à l’intérieur d’un Etat-nation déterminé, en réduisant le système des inégales aux seules inégalités de revenu. Ainsi la hiérarchie des Etats-nations en matière d’inégalités sociales est-elle sensiblement différente selon que l’on prend comme critère de classement le traditionnel produit intérieur brut (PIB)/habitant ou, au contraire l’indicateur de développement humain (IDH) préconisé par le Programme des Nations Unies pour le développement (PNUD). Enfin – et cela complique encore les comparaisons internationales – le niveau d’inégalités internes aux différents Etats-nations dépend aussi du niveau d’inégalité externe : de la position des différents Etats dans la division internationale du travail, sur le marché mondial et dans la hiérarchie des Etats-nations. Mais il est vrai que la relation entre les deux (niveau d’inégalités internes et niveau d’inégalité externe) est sans doute à double sens : si une mauvaise position d’un Etat-nation dans la hiérarchie mondiale tend à induire un fort niveau d’inégalités internes, inversement, un tel niveau rend difficile la mobilisation nationale nécessaire à la remontée dans la hiérarchie mondiale. Mais, dans la mesure où la position d’un Etat-nation dans cette hiérarchie dépend de multiples autres facteurs, il n’est pas certain qu’il y ait une parfaite corrélation entre niveau d’inégalités internes et niveau d’inégalité externe.
OI: Les inégalités sociales n’existent en tant que telles que lorsqu’elles sont symboliquement légitimées. Pensez-vous qu'il existe en Europe une compréhension politique et sociale relativement commune à ce sujet?
AB/RP: On peut sans grand risque former l’hypothèse d’une relative communauté de référentiels auxquels puisent les légitimations les plus courantes en Europe des inégalités sociales. Tout simplement parce que ces référentiels font partie soit du fonds culturel commun à l’Europe (l’héritage gréco-latin et judéo-chrétien) soit des systèmes idéologiques nés du développement du capitalisme (libéralisme et néolibéralisme, éventuellement tempérés par la tradition social-démocrate). Ce qui n’exclut sans doute pas des variantes nationales, fonction de l’histoire spécifiques des différentes nations européennes. Par exemple les légitimations empruntées au vieux fond catholique sont sans doute moins prégnantes en France ou dans le monde anglo-saxon ou scandinave que dans l’Europe méditerranéenne. Mais, dans l’ensemble, toutes les justifications des inégalités sociales ressortissent à la typologie que nous en avons esquissée dans l’introduction à notre ouvrage.
OI: Dans quelle mesure la crise internationale actuelle peut-elle contribuer à la problématisation des « normes de légitimation de l'ordre social », plus spécifiquement de la défense du naturalisme individualiste (de l’idéologie du self made man) et la critique de l'État providence?
AB/RP: Il est clair que le déclenchement de la récente crise financière et de sa répercussion sur « l’économie réelle » est un cinglant démenti infligé au néolibéralisme, tant sur le plan idéologique que sur celui des politiques économiques. Cependant, si les gouvernements qui ont conduit ces politiques et leurs idéologues attitrés ont dû abandonner tout triomphalisme, ils n’ont renoncé ni les uns ni les autres à l’essentiel. Tout simplement parce que le néolibéralisme est la politique et l’idéologie qui correspondent le mieux aux intérêts du capital dans sa phase actuelle de transnationalisation. La mesure dans laquelle le crédit politique et idéologique du néolibéralisme va se trouver remis en cause au cours des prochaines années va essentiellement dépendre de la durée et de la profondeur de cette crise, de son issue, ainsi que de la capacité des forces populaires d’imposer une inflexion aux orientations actuellement encore dominantes dans la gestion du capitalisme en crise. En cette matière comme en tout autre, l’avenir reste ouvert.
OI: Je finis avec une question d’ordre épistémologique. Dans Le système des inégalités, vous mentionnez que la conception scientifique des inégalités sociales implique un point de vue politique sur la réalité. L’objectivation analytique des inégalités sociales aurait-elle alors, nécessairement, comme fondement l'idée subjective de justice?
AB/RP: Nous procédons d’une tradition antipositiviste qui refuse de séparer la sphère des jugements de fait de celle des jugements de valeur. Nous tenons l’exigence de « neutralité axiologique » non seulement pour intenable mais aussi pour préjudiciable. Nous pensons qu’une objectivité approfondie a pour condition nécessaire une attitude critique face à la réalité sociale, seule capable précisément de ne pas être dupe des apparences, des illusions et des discours de légitimation destinés à masquer la réalité des inégalités sociales ou en minimiser l’ampleur. C’est une pareille attitude qui nous a donné par exemple l’intuition du caractère systématique des inégalités et qui nous a mis sur la voie de sa démonstration, alors que l’immense majorité des études sociales, prisonnières du positivisme académique, méconnaissaient non seulement ce caractère mais bien souvent tout simplement l’existence des inégalités sociales. Dans cette affaire, l’attitude critique, aiguillonnée par l’idée de justice sociale, a été la condition de possibilité d’un progrès scientifique.
D'autres œuvres publiés par les auteurs:
Alain Bihr a publié récemment La préhistoire du capital, Le devenir-monde du capitalisme, Lausanne, Page Deux, 2006 et La novlangue néolibérale. La rhétorique du fétichisme capitaliste, Lausanne, Page Deux, 2007.
Roland Pfefferkorn a publié récemment État / Travail / Famille: « conciliation » ou conflit?, Paris, L’Harmattan, Cahiers du Genre, n° 46, 2009 (en collaboration avec H. Hirata et J. Heinen) et Inégalité et rapports sociaux. Rapports de classes, rapports de sexes, Paris, La Dispute, 2007.
Ensemble ils ont publié plusieurs études sur les inégalités, notamment: Déchiffrer les inégalités, Paris, La Découverte, 1999 [1ere édition: 1995] et Hommes-Femmes, quelle égalité?, Paris, L’Atelier, 2002.
Observatório das Desigualdades - 15.06.09
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