Correia da Fonseca
1. Era a tarde do dia 29 de Maio. Mais de trezentos mil manifestantes desciam a Avenida da Liberdade em Lisboa. A RTP, operadora pública de televisão, distraía-se entretanto já não sei com que futilidade (embora a RTPN, só acessível por cabo, viesse a transmitir a intervenção de Carvalho da Silva). Mas a TVI24, também distribuída por cabo, fizera uma outra opção: ainda não se haviam iniciado as diversas alocuções feitas a partir do palco instalado na Praça dos Restauradores e já a TVI24 dava imagens e sons da enorme manifestação, nem se podendo dizer que as câmaras evitassem planos que nos mostrassem a dimensão do protesto. Junto dos manifestantes situados nas filas da frente, uma jornalista abordava este e aquele fazendo perguntas, colhendo opiniões, inquirindo dos motivos das presenças. As respostas vinham sempre tocadas pela indignação, uma ou outra vez por laivos de desespero, muitas vezes revelando motivações que ultrapassavam a escala individual para se situarem no plano fraterno de uma ampla solidariedade com todos os camaradas vítimas da minimização salarial, da precariedade do emprego, do desemprego sem subsídio e dos subsídios de desemprego que se extinguem abrindo caminho para a vinda da miséria. A reportagem tinha, porém, um complemento: no estúdio: acompanhado por uma jornalista, estava um comentador. Tinha um aspecto inteiramente diferente dos que desfilavam na Avenida da Liberdade: era um cavalheiro de aspecto muito distinto, fatinho escuro, gravata de um vermelho carregado que me pareceu aliás impertinentemente próximo da cor do vinho tinto, aspecto global impecável. Uma legenda informou-nos de que se chama Francisco Ferreira da Silva e é director-adjunto ou subdirector de um jornal especializado em Economia, mas a jornalista em estúdio tratava-o simplesmente por Francisco, desse modo conferindo à conversa um tom íntimo e quase carinhoso, o que era bonito. E o simplesmente Francisco ia-se aplicando a comentar algumas das palavras dos manifestantes, esses decerto simplesmente «populares» segundo um frequente jargão jornalístico, desvalorizando-as com sobranceria do alto da sua inevitável competência. Deste modo a TVI24 conciliava a extensa cobertura da manifestação com o simultâneo desmentido da sua justeza graças a uma espécie de contraponto: às razões intensamente sentidas pelas vítimas mas por vezes expressas toscamente adicionava os argumentos bem-falantes de um cavalheiro decerto «com estudos», como muitas vezes diz o povo com um toque de ingenuidade. Ou dizendo-o de outra maneira: adicionava os argumentos ou os comentários dos carrascos, mas em versão encadernada, envernizada, cromada. E resultava um efeito bonito e convincente, muito compatível com uma aparência de pluralismo.
O verniz estalado
Veio depois a intervenção de Carvalho da Silva. Foi o que se ouviu, o que se sabe: concreta, sólida, apoiada em factos ainda que naturalmente não esvaziada de comoção, porque as lutas justas emocionam quem as trava e quem a elas assiste. Terminada ela, a emissão regressou ao estúdio. E aí, então, estalou um pouco o verniz do Francisco: não apenas rotulou sumariamente de impossíveis e catastróficas todas as reivindicações e propostas a que Carvalho da Silva dera voz, como o dirigente da CGTP levou roda de demagogo. Compreende-se: o Francisco estava ali sem ninguém que o contradissesse, tendo diante de si apenas a tácita aprovação da jornalista, pois naquelas circunstâncias quem cala não apenas consente como tacitamente aprova. É claro que a democraticidade e o pluralismo da informação exigiriam que ali estivesse um economista que, com gravata ou sem ela, pudesse sustentar uma opinião diferente da do Francisco mas, pelos vistos, esse risco não o quis correr a TVI. Foi pena, é claro. Porém, foi pior que isso: o seu contraponto mostrava-se viciado. Ao colocar em estúdio um único comentador que previsivelmente iria hostilizar as razões dos manifestantes em geral e as palavras de Carvalho da Silva em especial a TVI24 desmascarou-se a si própria e colocou o seu convidado numa situação desagradável, aparentemente não muito longe da cobardia intelectual. Mas ensinou-nos ou lembrou-nos qualquer coisa: o verdadeiro rosto da democraticidade de alguns órgãos de comunicação social portugueses. E a aversão que muitos deles, não decerto apenas a TVI24, têm pelo contraditório, claro sinal de que lhes sobra em desenvoltura o que lhes falta em razão.
http://www.avante.pt/noticia.asp?id=33956&area=33
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