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17/12/2010

Elementos para a caracterização da crise capitalista

Pedro Carvalho

A incerteza parece ser a palavra que determina o nosso futuro colectivo, enquanto o sistema capitalista mundial mergulha numa crise sistémica profunda, para qual parece não encontrar saídas nem soluções, num contexto de declínio da hegemonia económica dos Estados Unidos. Da resposta keynesiana à ortodoxia (neo)liberal, que triunfou na reunião do G20 em Toronto (26 e 27 de Junho de 2010), ao impor um plano de austeridade mundial, a verdade é que o sistema não consegue retomar o processo de valorização do capital, não consegue restaurar as condições de rentabilidade - as taxas médias de lucro, de forma a encontrar oportunidades de investimento rentáveis que permitiam absorver a massa de mais-valias existente e pôr em marcha o «motor» da acumulação de capital.
E apesar da escolha tomada, as elites políticas do sistema hesitam no grau e ritmo da destruição de capital necessária para retomar o processo de valorização do capital. Hesitam entre uma destruição imediata do capital, utilizando os instrumentos de política orçamental e monetária, e uma destruição faseada, tendo por base uma reconversão industrial e energética, ou seja, uma modificação do actual paradigma produtivo. Mas independentemente das hesitações, a verdade é que a crise não é resolúvel no quadro do capitalismo, uma vez que a crise resulta das limitações e contradições do próprio sistema.
Por mais contra-tendências que vigorem num determinado período, a lei da queda tendencial da taxa de lucro acaba sempre por imperar, onde o próprio capital se torna o principal obstáculo à valorização do capital e à continuação da acumulação. O grau de socialização da produção actualmente existente está em clara contradição com a apropriação privada das condições de produção, ou seja, com a propriedade dos meios de produção, que é a pedra basilar do modo de produção capitalista. Esta contradição alia-se hoje a outra contradição latente e sistémica, entre a acumulação ilimitada de capital e a progressiva e irracional delapidação de recursos naturais, nomeadamente os que se relacionam com a energia (hidrocarbonetos e urânio) e com a alimentação (água, solos/agricultura).
O sistema enfrenta o esgotamento das suas respostas, pois em cada resposta a(s) crise(s) prepara-se o caminho para novos episódios de crise(s), com consequências mais gravosas. A questão do sistema hoje, na depressão que enfrenta face a outras do passado (a Grande Deflação de 1873-1896 e a Grande Depressão de 1929-1938), é de «grau». O grau de sobreprodução dos principais segmentos industriais do sistema capitalista mundial, nomeadamente o automóvel. O grau de sobre-acumulação de capital sobre todas as formas, começando desde logo pelo excesso de capacidade produtiva instalada. O grau de financeirização que o sistema atingiu, com a explosão dos meios monetários em circulação, do crédito e do capital fictício, sem «cobertura» ao nível da produção, o que limita a expansão do capital financeiro. O grau de concentração e centralização do capital atingido, com estabelecimento de mercados monopolistas ou oligopolistas nos principais sectores de actividade. O grau de sobre-extensão planetária do sistema e da mercantilização de todas as esferas da vida humana, que limitam a expansão dos mercados.
Alguns números para ilustração. Em 2008, a capitalização bolsista, a dívida titulada e os activos financeiros em posse dos bancos comerciais era equivalente a 4 vezes o produto mundial [1]. No mesmo ano, a dívida titulada emitida a nível internacional representava 37% do produto mundial e o valor nocional dos contratos a liquidar, no mercado de derivados, era equivalente a 10 vezes o produto mundial. Entre 1990 e 2008, o valor das operações de fusões&aquisições (F&A) transfronteiriças aumentou 8 vezes, representado 1,2% do produto mundial em 2008 [2]. No mesmo período, os fluxos mundiais de Investimento Directo Estrangeiro (IDE) aumentaram 9 vezes, representado mais de 3% do produto mundial em 2008 e o stock de IDE global mais de 26%. 90% dos fluxos de IDE realizaram-se entre países do centro do sistema capitalista mundial. O aumento do desemprego de década para década a nível mundial mostra o seu cariz sistémico. Só nos países do G7, o número médio de desempregados aumentou em cerca de 17 milhões dos anos 60 para a actual década (ver Gráfico 1) [3]. Nos Estados Unidos, entre 1980 e 2009, a capacidade produtiva da indústria transformadora duplicou, enquanto o grau de utilização da capacidade instalada reduziu-se em cerca de 12 pontos percentuais (ver Gráfico 2), fixando-se no valor mais baixo dos últimos 30 anos (67,2%) [4]. No final de 2009, a utilização da capacidade produtiva da indústria automóvel dos Estados Unidos era de 54,9%.
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Estagnação e os «balões de oxigénio»
O sistema capitalista teve uma fase claramente revolucionária, que permitiu o desenvolvimento das forças produtivas para um nível sem paralelo da história humana, quebrando a armadilha malthusiana. Mas há muito que o sistema entrou numa fase reaccionária, de definhamento, que tendo em conta o potencial destrutivo, bélico e ambiental, representa uma séria ameaça para toda a Humanidade. O sistema encontra-se assim a caminho de uma fase letárgica, com o motor de acumulação estagnado. O Japão é um exemplo perfeito desta «depressão de crescimento», há 20 anos (sobre)vivendo entre a estagnação e a deflação.
Vários indicadores apontam para o abrandamento das taxas de acumulação a nível mundial. As taxas médias de crescimento do produto mundial (PIB) têm vindo a desacelerar de década para década, sobretudo no centro do sistema capitalista mundial [5] (ver Gráfico 3). As taxas médias de crescimento do PIB nos países do centro são 3 vezes inferiores às que se verificavam nos anos 70. Apesar dos países da periferia apresentarem uma tendência inversa nos últimos 30 anos, nomeadamente com o surgimento de potências emergentes com elevados ritmos de crescimento, como a China, a verdade é que também estes estão a crescer a taxas médias inferiores às que se verificavam nos anos 70. Esta desaceleração tem sido pontuada por interrupções cíclicas da acumulação capitalista, que fazem que a retoma do processo de acumulação se faça num patamar mais baixo. Ao nível do investimento também se nota uma desaceleração das taxas médias de crescimento. Ao nível dos países do G7, as taxas médias de crescimento do investimento, medido pela fabricação bruta de capital fixo, passou de 4,3% nos anos 60 para -0,5% na actual década. Este recuo do investimento na actual década, é sinal da crise de rentabilidade, de encontrar oportunidades de investimento às taxas de lucro esperadas.
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Com o retorno visível da crise de rentabilidade nos anos 70, o sistema tem sobre(vivido) à conta de quatro «balões de oxigénio», que se alimentam mutuamente: o crédito, o capital fictício, o orçamento dos Estados e, desde os anos 80, o consumidor dos Estados Unidos. Consumidor que tem sido o principal garante da procura solvente no mundo, a conta da explosão do crédito ao consumo e seu progressivo endividamento (ver Gráfico 5). Para se ter uma ideia, o crédito ao consumo por liquidar nos Estados Unidos, entre 1970 e 2009 aumentou 19 vezes.
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O fim da convertibilidade do dólar em Agosto de 1971 e a política monetária seguida pelos Estados Unidos, no início dos anos 80, acabaram por marcar o desenvolvimento do sistema capitalista desde então e o grau de financeirização do capital. O dólar mantinha o seu papel de reserva mundial, sem limitações (ao ouro) para a sua «impressão», permitindo financiar os défices comerciais dos Estados Unidos, que passava de nação credora e exportadora de capitais, a uma nação devedora e importadora de capitais. Em 2009, os Estados Unidos importava quase 42% dos capitais mundiais, sendo os principais exportadores a China (23%), Alemanha (13%) e Japão (12%). Os Estados Unidos consumia à conta do financiamento externo. As principais nações exportadoras, a Alemanha e o Japão, juntando-se outros países emergentes (a China, os «tigres asiáticos», etc.), encontravam escoamento para os seus produtos, financiando as suas exportações, aceitando activos e dívida titulada denominada em dólares. Em cada novo episódio de crise, o défice comercial dos Estados Unidos sustentava a procura mundial. O défice da balança corrente aumentou assim, 155 vezes entre 1980 e 2006, ano que atingiu o seu pico máximo, antes do episódio de crise do subprime em 2007, atingindo então quase 638 mil milhões de euros.
Estes desequilíbrios, resultantes do desenvolvimento assimétrico do sistema capitalista mundial, estão bem patentes no Gráfico 6, o equilíbrio até aos anos 70, o desequilíbrio crescente após os anos 80. E são válidos para o sistema como um todo, a existência de países importadores líquidos e de países exportadores líquidos, respectivamente devedores (com crescente endividamento) e credores (detentores da dívida dos importadores). Esta situação cada vez mais insustentável, implicará um ajustamento, com repercussões económicas e geopolíticas fortíssimas em todo o sistema.
Mas este «balão de oxigénio», foi acompanhado de outros. A política monetária seguiu a resposta «deflacionária». O processo desinflacionário encetado nos anos 80, teve como duplo objectivo promover o crédito, contribuindo para a manutenção do valor real dos créditos concedidos, e, sobretudo, promover a contenção do crescimento dos salários, criando as condições para aumentar a taxa de exploração. A correlação de forças saída do pós-guerra entre capital e trabalho alterava-se, com a variável estratégica do aumento do desemprego e, mais tarde, da deslocalização produtiva, pondo em concorrência as forças de trabalho dos diferentes países. A ofensiva de classe então encetada, tinha como objectivo reduzir os custos unitários do trabalho e manter uma evolução dos salários (reais) inferior à evolução da produtividade do trabalho, de forma a garantir a transferência dos ganhos de produtividade do trabalho para o capital. Objectivo que foi conseguido. O peso dos salários no produto tem vindo a recuar de década para década. Em termos médios, nos países do G7, o peso dos salários no produto recuou 7 pontos percentuais entres os anos 70 e actual década. Como resultado, os custos unitários do trabalho reais tem vindo a reduzir-se, o que é um indicador do aumento da taxa de exploração. Apesar disso, a crise de rentabilidade continuou a aprofundar-se.
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Claro, que a desvalorização dos salários e do preço do crédito (juros), estimulou o crédito junto às camadas trabalhadoras, nomeadamente no estímulo a aquisição de bens duradouros (automóvel) e de activos imobiliários (crédito à habitação). A inflação do preços dos activos mobiliários e imobiliários tornou-se assim a questão chave para sustentar artificialmente o processo de acumulação e o consumo, tendo em conta as transferências ocorridas da esfera produtiva para a financeira. A inflação dos activos garantia a obtenção de mais crédito, alimentando-se mutuamente numa espiral, até ao ponto da sua desvalorização, encetando-se um processo de deflação de activos que punha em causa a capacidade de pagar os créditos anteriormente obtidos. Neste ponto, os Estados intervinham com dinheiros públicos em operações de «salvamento», transformando uma parte da dívida privada em dívida pública. Enquanto, os Bancos Centrais criavam as condições de política monetária para estimular o crédito, criando um novo ciclo de inflação de activos. Este é o retrato dos episódios de crise desde os anos 80, sempre precedidos por uma crise financeira, com a diferença que em cada novo episódio, o stock de dívida e capitalização bolsista encontravam-se sempre em patamares mais elevados que os verificados no anterior episódio de crise.
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A crise estrutural em que o sistema capitalista se encontra pode-se depreender das dificuldades crescentes do sistema em restaurar as condições de valorização do capital, ou seja, as taxas de lucro. A questão é se o sistema ainda consegue revolucionar as relações sociais de produção, modificando o seu paradigma produtivo, tecnológico e energético, para encetar um novo ciclo de expansão? Isto num quadro de sobre-acumulação de capital, de sobre-extensão do sistema a nível planetário e em que os limites da natureza se impõem, face ao libelo predatório da acumulação ilimitada de capital. No quadro do capitalismo, só a guerra poderá provocar o grau de destruição do capital necessário para a restauração das condições de valorização do capital. A depressão e a guerra têm sido as duas marcas constantes do desenvolvimento do sistema capitalista mundial nos últimos 200 anos.
A(s) crise(s) só serão resolvidas pela superação do sistema. E o sistema não caíra por si. O sistema só será superado pela luta dos trabalhadores e dos povos, pela criação das condições subjectivas de transformação das relações sociais de produção, na continuação da construção da alternativa que germina dos limites do sistema - o socialismo.
Notas:
[1] FMI; Global Finantial Stability Report, Abril 2010
[2] cnuced, World Investment Reports database.
[3] Comissão Europeia, AMECO.DG Assuntos Económicos e Monetários, Primavera 2010.
[4] Reserva Federal dos Estados Unidos, Quadro G.17
[5] Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, ERS/USDA - International Macroeconomic Data Set, Novembro 2009. 

http://www.odiario.info/?p=1904

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