Carlos Lopes
Os últimos incidentes referentes à luta entre policiais-militares e o tráfico, ocorridos na cidade do Rio de Janeiro ganharam espaço nas grandes mídias do Brasil e de inúmeros países do chamado Primeiro Mundo. Como se sabe, o Brasil não está em guerra interna ou externa. Por aqui, não há motivo aparente, no atual contexto, para espetáculos de ações diretas, registrados e reproduzidos fartamente pelas mídias.
É estranho que um helicóptero tripulado por soldados da PM tenha sido abatido em pleno vôo, com duas mortes e dois feridos. A tragédia não foi maior porque foi possível o pouso forçado da aeronave em chamas, em campo aberto. As imagens de sua completa destruição física parecem cenas da Guerra do Iraque, da Colômbia ou do Afeganistão. Mas, não são. Tudo ocorreu em um outrora pacato bairro da Zona Norte – Vila Isabel. Este é ocupado por parcelas das classes médias da cidade, que são vizinhos de muitas comunidades faveladas e foi um dos berços do samba moderno brasileiro.
Jamais isto tinha ocorrido antes. Parece, que existiram tentativas, mas esta foi a primeira vez que se conseguiu concretizar a façanha. Acendeu-se uma lâmpada de alerta. O Rio de Janeiro é uma cidade conflagrada. Talvez, se isto tivesse acontecido antes de sua escolha para sediar as Olimpíadas de 2016, o resultado tivesse sido outro ou a vitória bem mais difícil.
A política de segurança adotada por sucessivos governos da cidade e do Estado comete equívocos e dialoga com público, através das mídias, de modo ainda mais equivocado. Ao não aceitar ajuda federal, o atual governador situou o problema na esfera local, dizendo que, por ora, tinha como resolvê-lo. As questões de fundo que são as verdadeiras causas de tudo isto foram, mais uma vez, para debaixo do tapete da política e da história.
Os problemas sócio-urbanos do Rio de Janeiro são muito graves e se arrastam desde o fim da escravidão, ou mesmo de antes. Tem-se uma cidade dividida entre uma parcela mais rica que mora no ‘asfalto’ e cerca de 600 ou mais comunidades faveladas construídas, em sua maioria, em morros, muitos deles de difícil acesso. Estas comunidades são, de há muito, usadas pelo crime como local de recrutamento e homiziamento. Obviamente, que nada disto é exclusivo à esta cidade, mas nela, esta situação ganha características especiais.
Mais do que um, em cada três cariocas, mora em uma das favelas da cidade. Diferentemente de outras, a geografia do Rio levou e continua levando os excluídos e os imigrantes para os morros e algumas regiões planas de baixo interesse imobiliário. Estas são, por vezes, distantes e periféricas. A origem destas comunidades remonta à época da escravidão. Nesta, negros fugidos – quilombolas – ou abandonados pelos seus senhores usavam os morros para morar e muitas vezes plantar e criar animais.
Quando do fim da Guerra de Canudos (1897), o Morro da Favela, nas proximidades da Central do Brasil, abrigou muitos retirantes do conflito, que vieram para a velha capital. Daí, a origem e a popularização do nome. No local, ainda existe uma impressionante favela, que parece debruçada sobre uma pedreira – o Morro da Providência – que é um dos locais de conflito na cidade. Sua antiguidade e pobreza testemunham anos e anos de descaso público.
Estas comunidades cresceram todas as vezes que houve ciclos de prosperidade no país. Parece paradoxal, mas o que ocorria e ainda ocorre é que imigrantes, vindos para trabalhar na construção civil e outras atividades urbanas, não tinham como morar nos prédios que levantavam e nos bairros onde trabalhavam. A opção era a de construir barracos, se possível, no morro mais próximo de onde labutavam.
Hoje, quase não existem mais barracos. A madeira ficou cara. O tijolo e o cimento são abundantes e relativamente mais baratos do que no passado. As habitações são, quase sempre, construídas em tijolos. Como nem sempre há dinheiro para o reboco externo, muitas favelas, vistas de longe, parecem jogos infantis avermelhados e amontoados. A alvenaria externa é mais facilmente encontrável nas favelas mais antigas e nas mais “ricas”, onde se concentram trabalhadores empregados com carteira assinada ou biscateiros bem-sucedidos. É lógico, que numa mesma favela é possível encontrar as duas situações, bem como se podem ver ainda barracos, agora, construídos com resto do lixo urbano.
O mundo favelado é altamente complexo e não cabe neste pequeno artigo. Nele existe uma estrutura social com imensas diferenças internas. A maioria dos seus habitantes são trabalhadores ou desempregados. Um pequeno percentual dedica-se às atividades criminosas. O preconceito do “asfalto” é antigo, até porque grande parte dos seus moradores e negra, quase negra, de origem nordestina, mineira e vindos de outros bolsões da miséria brasileira. Para as classes médias mais reacionárias, favela é lugar de marginal, de gente que não presta. Esta mesma gente não tem qualquer cerimônia em explorar o trabalho dos que lá vivem.
Entre os governos de Carlos Lacerda e de Chagas Freitas prevaleceu a idéia de que a solução para a questão favelada era a remoção para conjuntos habitacionais construídos pelo governo na periferia do Rio de Janeiro. Pouco a pouco, a proposta de remover perdeu terreno pela a da urbanizar. Aliás, o atual prefeito levantou a mesma questão da remoção, sem nada ainda ter feito de concreto nesta direção. Também, junto com o atual governador do Estado foi feita a polêmica proposta de algumas favelas serem ‘separadas’ por muros do resto da cidade. Os atuais PACs têm projetos engajados em algumas obras de urbanização básica dos mesmos locais.
Os casos de remoção conhecidos nada mudaram para os favelados, liberando terrenos valiosos para a especulação. Os mesmo problemas que existiam na origem foram remontados nos conjuntos habitacionais, rapidamente favelizados. Os projetos municipais urbanizadores, tal como o chamado Favela-Bairro, mudaram muito pouco a realidade destas comunidades. A questão central é que em nenhum destes projetos desenvolvidos ou propostos até hoje houve a preocupação com a distribuição de renda entre os habitantes. O problema do desemprego continuou a ser gravíssimo, afetando, com muita força, os jovens.
Existem milhares e milhares de jovens favelados sem emprego, escolas decentes, comida em casa, saneamento básico, tratamento médico necessário. Os que conseguem trabalho ganham mal e não raro não têm seus direitos respeitados. Neste quadro, fica fácil ao tráfico e a outras atividades criminosas fazer o recrutamento constante. A cada preso ou morto há uma fila de substitutos, de gente capaz e disposta a arriscar a vida para alguns momentos fugidios de glória e de ascensão. A política de matar, torturar e prender em massa nada muda. Ao contrário, cria heróis e mártires, estimulando novas adesões. Por isto, é difícil crer que se deseje, de fato, acabar com o problema.
De todas as favelas cariocas, em torno de dezoito, teriam bolsões mais nítidos do tráfico. O Rio não é Mendellin, na Colômbia. Por aqui, não existem cartéis e nem máfias muito organizadas. A droga vendida no Rio, como se sabe, ou vem do Nordeste (maconha), do Paraguai, da Bolívia, da Colômbia e do Peru. Logo, ela atravessa, certamente por terra, alguns milhares de quilômetros, até estar disponível em um ponto de revenda local. Como passa desapercebida, é um ‘mistério’ a resolver. Parte destes carregamentos sai do Rio para a Europa e EUA. Logo, a cidade é também um entreposto.
Em parte das favelas, onde não existe tráfico ou ele foi banido, funcionam as famosas milícias – nova versão do crime social local, com a clara participação de pessoas de algum modo ligadas às forças repressivas. Quase em todas comunidades existem pequenos grupos de pessoas que se dedicam a vários tipos de atividades criminosas. É difícil que o número de criminosos em uma favela seja superior a um por cento de seus moradores. O número de desempregados ou de subempregados pode chegar a mais da metade do conjunto da comunidade.
Os grupos de traficantes mais comuns são pequenos bandos de, em torno, vinte pessoas, desarticulados e por vezes inimigos entre si que adotam siglas de organizações que só existem atualmente no universo nebuloso das mídias, sem muito respaldo no real. No Rio, felizmente, não há nada como o PCC paulista. É verdade, que uns atiram nos outros e/ou tentam tomar o território dos rivais. O capo, normalmente é alguém mais velho, com várias passagens policiais e com ligações com o crime mais ou menos organizado existente dentro dos presídios. Os soldados do tráfico são jovens, por vezes bem jovens, que têm uma esperança de vida média de dois anos nesta atividade para lá de perigosa.
As armas de guerra que conseguem por efeito da corrupção e do dinheiro acumulado pela venda de drogas, são as mais usadas nas lutas entre as facções. Muitas delas foram produzidas nos EUA, na Inglaterra, em Israel e em países do Leste europeu. Outras, sobretudo munições, se originam também em aquisições feitas no contrabando e as que são oficialmente compradas pelas forças armadas e policiais brasileiras. Sabe-se, que com dinheiro e contatos, não é difícil comprar um fuzil-metralhadora moderno, bem como a munição necessária. O problema está em se imaginar como circulam estes artefatos no mundo contemporâneo. Certamente, há muitos interesses em jogo.
O episódio do helicóptero chama a atenção, porque jamais algo similar havia acontecido. Normalmente, os traficantes atiram na polícia somente quando estão encurralados, que é o que deve ter acontecido. Eles preferem guardar suas balas para seus iguais e para garantir seus reinados nas comunidades onde atuam. Eles evitam um confronto maior com as polícias, porque sabem que serão, no passo seguinte, perseguidos até o destino final.
A atual política de ocupações policiais permanentes de algumas favelas, três até o momento, funciona bem nos locais tomados pela polícia. Mas, tem como efeito colateral estimular os bandos a buscar a quem invadir outras criando guerras, como a que se viu no Morro dos Macacos em Vila Isabel.
Trata-se de uma situação complexa que precisa ser analisada a fundo e que sejam tomadas medidas que tenham efetivo poder de desmontar as bombas relógio sociais da atual fase da modernidade. Uma política de emprego, de divisão de renda, de escolarização real e não formal para todos, de respeito aos direitos humanos e, sobretudo, o exemplo de honestidade pública do poder poderiam fazer a diferença. A exclusão semeia a violência e o caos, levando à uma realidade sem saída.
Agência Carta Maior - 18.10.09
À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.
19/10/2009
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