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01/08/2009

85% dos nossos idosos têm uma reforma igual ou inferior a 409 euros e a média mensal é de 387€

Mil euros mensais não chegam para se ter uma velhice digna, o que também depende, e muito, do custo da habitação e da dependência física e mental de cada um. Mas 85% dos nossos idosos têm uma reforma igual ou inferior a 409 euros e a média mensal é de 387€, dados de Maio. Se não fossem os apoios da Segurança Social, das instituições de solidariedade social e das famílias, a maioria não conseguiria sobreviver com o que recebe ao fim do mês. É o que se conclui das conversas com os portugueses reformados e com os técnicos que os assistem, dos dados estatísticos das pensões e do custo de vida.

"Deitamo-nos sempre no dia seguinte, brinca Judite Gravelho ao descrever o seu dia-a-dia. O que significa que ela e o marido, António Gravelho, de 86, nunca se deitam antes da meia-noite. E levantam-se com a aurora, numa rotina diária iniciada pelas compras. A ida à padaria é sagrada, mais os dois dedos de conversa com a Carminda, a padeira. E todos os dias paga 1,20 euros pelo pão, uma parcela "pequenina", mas que ao fim do mês representa 12,8% da pensão, a mínima do regime rural, "Chama-se a isto reforma?"

A pensão de dona Judite é a mínima do regime rural (224,60€) e, segundo dados de Maio do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, é a que recebem 191 800 pensionistas. Mas existem 33 031 com uma pensão social (187,18€). E 85% dos idosos portugueses têm um rendimento mensal igual ou inferior a 409,50, a reforma mínima do regime geral. Perante estes valores, percebe-se a ironia na pergunta de dona Judite, acompanhada de uma gargalhada. É assim que leva a vida. "Lamentações! Para quê? Temos de ter espírito alegre, é isso que nos faz viver", justifica. Vive no Gavião, Alentejo, uma cidade tranquila. Os dias são repartidos entre as manhãs nas compras e na cozinha; as tardes com "a arrumação da casa, comida, os bordados, as malhas e mais qualquer coisinha que apareça para fazer; as noites em frente à televisão (não gosta de telenovelas), a leitura de um livro ou com "as palavras escusadas".

A rotina de Elzira Sousa Aguiar é bem diferente. Uma rotina marcada pelas actividades das residências assistidas Domus onde vive, na Parede, um dos três empreendimentos do Grupo Mello. Acabou uma "aula de movimento", num dia em que tiveram a visita dos meninos do jardim-de-infância que fica mesmo ao lado, o Botãozinho. Elzira encontrou uma amiga, a Sofia, dançam e divertem-se.

Coquete, cabelo arranjado, lábios e unhas pintadas, anéis, fios, brincos e pulseiras. Noventa e nove anos de alegria que contagia todos. Natural de Lisboa, viveu dois anos num hotel da Ericeira, antes de a filha optar por a colocar nas chamadas residências assistidas, habitações de luxo e que prestam um serviço hoteleiro e de enfermagem. "A minha filha teve de se mudar para uma casa mais pequena e acabei por ir para um hotel na Ericeira [onde costumava passar férias]. Éramos uma família, mas o senhor vendeu o hotel e o ambiente modificou-se", conta a dona Elzira. E divaga sobre como foi divertida a sua vida e as viagens que fez devido à profissão do pai, "deputado da Nação".

Oriunda de uma família de grande longevidade - a mãe morreu com 104 anos -, casou--se tarde e enviuvou cedo, há 50 anos. Passou a depender da filha e sem preocupações monetárias, já que há muito que não paga as contas. "Nem sei qual é a minha pensão. A minha filha trata de tudo. Gosto é de me divertir", ri-se.

Heloísa Silva, a filha, tem 63 anos, e é economista, com funções que a impedem de poder dar uma maior assistência à mãe. A solução foi encontrar apoios extrafamiliares, o que representa um grande encargo financeiro, já que é filha única. "É muito complicado conciliar a vida profissional com a familiar e a minha mãe recebe a pensão mínima. Mas ela gosta de convívio e é muito importante que essa vivência lhe seja garantida", justifica. Algo que encontrou na residência Domus, na Parede, por 1950 euros mensais, além da jóia (17 500 euros), dos remédios, consumíveis, actividades e serviços extras (ver caixa).

A pergunta que se coloca a Heloísa é: "Porque não optou por um lar mais económico?" "Tendo em conta a pessoa que ela é seria muito mau se a colocasse num espaço cheio de idosos e num ambiente depressivo. E vi lares que não eram muito mais económicos e tinham menos condições", conta. Quanto à situação de carência dos portugueses com 65 ou mais anos, não tem dúvidas em afirmar: "É impossível diminuir as prestações sociais. Se não fossem esses apoios, a maioria dos idosos não sobreviveria. E a classe média é sempre a que acaba por ter maiores dificuldades. O meu filho é autónomo e não tenho dívidas. Caso contrário, não conseguiria garantir à minha mãe as condições ideais."

As condições podem não ser as ideais. E não há quartos com janelas para o mar, como acontece com a residência Domus, na Parede. Também tem plantas, mas não há um funcionário para acompanhar cada utente nas actividades ou nos tratamentos. Os utentes não trazem pulseiras e fios, algumas nem sequer têm dinheiro para comprar a placa dentária. E há quem adie a ida ao oftalmologista, com medo que os façam comprar outros óculos. Estamos a falar do Centro Social da Paróquia de S. Vicente de Paulo, no Bairro da Serafina, em Lisboa, e que serve uma população bastante carenciada. "O primeiro objectivo foi dar vida ao que estava morto. Comecei do zero", conta o padre Crespo, mentor do projecto e que chegou ao bairro há 32 anos.

O projecto engloba um lar para 120 pessoas, todos com alguma dependência, um centro de dia que recebe 70 idosos diariamente e o apoio domiciliário a mais 80. Tem ainda um atelier de tempos livres para 120 crianças, além do acompanhamento a 120 adolescentes. Uma obra que teve de parar de crescer, por falta de espaço físico, já que não têm pejo em pedir apoios financeiros. Os pedidos é que não param. Tantos que nem vale a pena fazer lista de espera para as entradas no lar. Já o centro de dia e o apoio domiciliário vai-se esticando conforme as necessidades. Os gastos com as habitações, as refeições, os consumíveis e com os 160 funcionários fazem com que cada idoso internado custe 1300 euros, 700 no apoio em casa e 600 no centro de dia.

Ramiro Pereira é um dos utentes do centro de dia. Recebe uma reforma que é pouco mais de metade do salário mínimo nacional e paga 162 euros para estar no centro social. A casa onde vivia foi demolida. Morava na Vila Ferro, e é a Santa Casa da Misericórdia que lhe paga a renda de casa. "Sempre trabalhei na construção civil, era carpinteiro e fazia biscates mesmo depois de reformado. Agora já não posso e venho para aqui. Almoço, convivo e, às vezes, levo uma sopa para o jantar. E, também, vou a algumas excursões", conta. Um dos seus passatempos é meter-se com o papagaio Serafim. "Conhece-me bem, mas fala pouco!"

Numa mesa ao lado estão várias mulheres. Elas têm uma maior esperança de vida e estão em maioria sempre que o tema é a velhice. A conversa gira em torno de preferir ficar em casa ou ir para um lar, optam pela "casinha" enquanto não estão totalmente dependentes dos outros, até porque já notam alguma dependência, sobretudo para fazer as tarefas domésticas. E não há dinheiro para pagar a quem as faça, já que as pensões não vão além dos 226 euros.

"Tomara eu poder trabalhar. Agora é que se ganha dinheiro. Fui mulher-a-dias e no meu tempo era uma miséria. Agora são 7,50 euros à hora", lamenta Maria da Conceição Henriques, 87 anos. Estará no centro de dia enquanto "tiver pernas", o que não acontece com o marido que sofreu um AVC e "não se mexe, coitadinho". Tem duas filhas, que "também têm as suas vidas e fazem o que podem. Coitadinhas!"

Maria da Conceição é o retrato da população idosa do bairro. "Têm uma média de idades de 85 anos e uma baixa escolaridade associada a fracos rendimentos provenientes das pensões, entre os 200 e os 300 euros. As famílias têm histórias de vida complicadas, são pessoas que vieram do campo e que sofreram muito", caracteriza Mafalda Gomes, assistente social responsável pelo centro de dia e pelo apoio domiciliário.

A forma como se vive a velhice depende de múltiplos factores, nomeadamente do sítio onde se vive, no meio rural ou citadino, rodeado por prédios ou por árvores.

Judite e António não imaginam viver na "confusão" de uma cidade. Habitam a casa dos pais de António, no Gavião, Alto Alentejo. Cidade pacata, onde parece que o dinheiro e a vida rendem mais. Vivem em casas próprias, compradas ou herdadas e, quando pagam renda, a mensalidade é pequena. E muitos têm "uma hortinha, onde vão semeando alguma coisinha para comer". Adiam a entrada para um lar, tanto como as idas ao médico e a toma de medicação.

"Tomo um Vastorell de manhã e à noite (3,95 euros a embalagem, arteriosclerose) e uma aspirina ao almoço. O meu marido sofre de reumatismo e tem de tomar mais remédios para as dores. O dinheiro vai dando, minha querida. Conseguimos equilibrar as contas. Com esta idade, já temos o que nos faz falta, o resto é para a comida, água, luz, a botija de gás e os medicamentos", desfila dona Judite.

O marido, António, que era viúvo antes de casar com Judite, tinha ela 37 anos, trabalhou desde os 9 até aos 80 anos numa "casa agrícola", a maioria dos quais como escriturário. Também ele ganha a pensão mínima do regime geral, o que faz com que os rendimentos mensais do casal não chegue aos 500 euros. "Vai chegando, ainda estamos por nossa conta", diz Judite.

Estar por "nossa conta" significa que não dependem da filha de ambos e do filho dele, tanto para as despesas como para a organização doméstica. "Enquanto pudermos, ficamos na nossa casinha. Não estamos encafuados num lar." Além das alegrias da vida, e também algumas vicissitudes, a felicidade de Judite tem uma outra explicação. O pai era ferroviário e andaram sempre com a casa às costas. Ela não conseguiu prosseguir os estudos como queria, ficou-se pela escola primária. Aos 25 anos quis voltar a estudar e ainda escreveu "ao ministro para se inscrever na escola normal, para ser professora", mas a "carta deve ter caído num dos corredores", ri-se. E o sonho de ser professora foi substituído pelas explicações. Até aos 70 anos, quando foi convidada para ensinar adultos. "Fui quatro anos professora. Cumpri o meu sonho!"

Fernando Gomes, 80 anos, foi caixeiro viajante, repete que conhece "Portugal inteiro", enquanto vai enumerando as terras por onde passou. Do estrangeiro só conhece Badajoz, "levaram-me lá para ver um jogo de futebol". Chegou ao final da vida profissional como sócio-gerente de uma loja, que deixou logo que completou os 65 anos.

Vive com a mulher, que tem 73 anos e que sofre de problemas mentais, mas que não a impedem de fazer a "lida da casa". Tem uma casa de dois andares no centro do Gavião, cujo primeiro andar é ocupado pela filha. Sempre é um apoio, à distância.

"Recebo 420 euros de reforma e a minha mulher 225. Tomo poucos medicamentos. Ela é que toma muitos. É a vida", conta Fernando. Queixa-se de dores no joelho, que não desapareceram com a operação que fez há quatro anos. E tem de andar de canadianas, nada que o impeça de ir ao café, todos os dias depois do almoço, com a esperança que apareça "um companheiro" para conversarem.

O Gavião é um dos concelhos mais envelhecido do País. Com uma população de 4027 pessoas, praticamente dois em cada cinco residentes têm 65 anos ou mais (1509). E há 4,4 idosos por cada jovem, 341 habitantes com idades entre os 0 e 14 anos. É frequente cruzarmo-nos com alguém que já ultrapassou os 70 aos, ao contrário do que acontece com crianças que ainda não estão na escola.

Com mais população, o que também significa crianças, a cidade de Lisboa tem bairros bastante envelhecidos, como é o caso do Alto de São João. O jardim está povoado de pessoas com mais de 65 anos, a maioria homens. Eles vão jogar às cartas e ver quem passa, elas ficam em casa na lida doméstica.

Joaquim Bernardo, ex-taxista, viúvo há dois meses, foge à regra. Não lhe interessa o jogo de cartas e acaba por se sentar num banco, onde estão quatro mulheres. Há quem não ache graça, mas ele não se importa. "O lugar estava livre", diz, antes de começar a contar a sua história. Nasceu em Ferreira do Zêzere e veio para Lisboa aos 18 anos, para uma oficina de automóveis. Acabou com um táxi nas mãos. As lágrimas correm-lhe quando fala da mulher. "Custa muito, vou indo. Estive em casa dos meus filhos, que me dão muito apoio, mas vim para a minha. Não quero ser um peso!"

D.N. - 01.08.09

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