No dia 15 de Junho p.p. realizou-se na Assembleia da República, por iniciativa da Comissão de Obras Públicas, um colóquio parlamentar sobre a "A Alta Velocidade em Portugal". Um dos painéis deste colóquio, para o qual fomos convidados a fazer uma intervenção, era sobre a "Sustentabilidade Económica e Financeira da Alta Velocidade em Portugal". Por essa razão, tivemos de analisar os estudos mandados fazer pelo governo, nomeadamente os estudos de viabilidade, os da procura, e os sobre os benefícios económicos indirectos do projecto. E fica-se surpreendido não só com a fragilidade técnica de alguns deles, mas também porque eles levavam a conclusões precisamente opostas àquelas que o governo, e os defensores da introdução da Alta Velocidade em Portugal, não se cansam de apregoar. É precisamente as conclusões mais importantes desse trabalho de análise, que se pretendeu sempre que fosse objectiva, que se apresenta ao leitor para ele próprio tirar as suas próprias conclusões. É evidente que o leitor tem a possibilidade de cotejar as nossas conclusões com os estudos originais que estão disponíveis no site da RAVE, www.rave.pt .
O CENÁRIO MACROECONOMICO QUE SERVIU DE BASE AOS ESTUDOS NÃO CORRESPONDE À REALIDADE
O primeiro aspecto importante que surpreende nos estudos mandados fazer pelo governo é o cenário macroeconómico base utilizado que não tem nada a ver com a realidade. No quadro seguinte está precisamente o cenário utilizado num dos estudos de viabilidade.
DESIGNAÇÃO | PREVISTO NO ESTUDO | |
Período 2003-2010 – PIB | | |
Período 2010-2020 – PIB | | |
Período 2020-2030 – PIB | | |
Preço gasóleo | | |
Aumento preços BUS | | |
1º Trimestre 2008 - 1ºTrimestre 2009 - PIB - Ferroviário passageiros - Ferroviário mercadorias | -3,7% -2,4% -26,4% |
No estudo realizado pela empresa "tHR", o cenário macroeconómico base é um crescimento do PIB de 2% no período 2003-2010; de 2,3% no período 2010-2020; e de 2% no período de 2020-2030. É evidente que é muito difícil fazer previsões consistentes para o período de tempo 2010-2030. A prová-lo está o total falhanço de previsão para o período mais recente: 2003-2010. A empresa "tHR" tinha previsto em 2006, quando realizou o estudo, que a taxa de crescimento do PIB seria de 2% no período entre 2003-2010, quando é de prever, com base no verificado no período 2003-2008, e no previsto pelo Eurostat para 2009 e 2010, que o crescimento económico neste período (2003-2010) seja apenas de 0,8%. O mesmo se poderá dizer para as previsões da "tHR" relativas ao aumento do preço do gasóleo e dos preços dos bilhetes dos autocarros.
O crescimento económico tem grande impacto na procura de transportes. A prová-lo estão os dados divulgados recentemente pelo INE relativos à variação do PIB e do transporte ferroviário de passageiros e de mercadorias no período compreendido entre o 1º Trimestre de 2008 e o 1º Trimestre de 2009. No 1º Trimestre de 2009, relativamente ao período homólogo de 2008, o PIB em Portugal diminuiu em -3,7%. Como consequência o tráfego no transporte ferroviário, no mesmo período, reduziu-se a nível de passageiros em -2,4% e a nível de mercadorias em -26,4%. Se não existissem outras razões, a falta de realismo do cenário macroeconómico utilizado nos estudos seria suficiente para mostrar a necessidade de os refazer
UMA PREVISÃO DE PROCURA PARA A LINHA DE ALTA VELOCIDADE LISBOA-PORTO POUCO CONSISTENTE E MUITO DIFERENTE NOS DIFERENTES ESTUDOS DE VIABILIDADE
Em qualquer estudo de viabilidade o problema mais importante e difícil de resolver, é fazer uma previsão da procura correcta e consistente. E isto porque é a procura efectiva que vai gerar as receitas necessárias para cobrir os custos quer do investimento realizado quer do funcionamento anual do projecto (neste caso, alta velocidade). E se a previsão de procura falhar, não se geram as receitas necessárias para cobrir os custos e, consequentemente, a falência e o colapso do empreendimento é certo. A não ser que o Estado, com o dinheiro dos contribuintes, suporte os custos não cobertos. E é neste ponto que os estudos de viabilidade mandados fazer pelo governo não dar qualquer segurança. O quadro seguinte, construído com os dados que os estudos realizados, mostra bem isso.
| | ao cenário de referência | | | |
Cenário de referência se não existisse Alta Velocidade | | | | | |
Alta Velocidade – RAVE | | | |||
Alta Velocidade – tHR | | | | | |
Variação % de passageiros de acordo com a previsão da empresa "tHR" | | | | | +217,6% |
Alta velocidade - TiS - Taxa desconto 5,5% (*) | | | |||
Alta Velocidade - TIS - Taxa desconto 4% (*) | | | |||
Alta Velocidade - TiS-S/ externalidades | | |
O quadro anterior contém as previsões da procura (aumento de passageiros) em Alta Velocidade das três empresas – a RAVE controlada pelo governo; e duas empresas estrangeiras contratadas — Tyco Holland Railconsult (tHR) e a TiS —, que apresentam valores todos eles diferentes, e com grandes disparidades. Para além disso, uma análise mais atenta dos estudos revela que utilizam diferentes metodologias. Assim, no da RAVE, tutelada pelo governo, os valores apurados têm como base "inquéritos" cuja metodologia, conteúdo e resultados se desconhece. A "tHR" afirma que os dados que utilizou foram fornecidos pelo RAVE que são diferentes daqueles que a RAVE disponibiliza. A empresa de consultoria "TiS" utiliza um método diferente que é o seguinte: ignora os dados da RAVE, talvez porque não tenha confiança neles, e a partir dos custos de investimento e de funcionamento da Alta Velocidade que estimou, calculou o tráfego de passageiros que seria necessário para tornar a linha de Alta Velocidade Lisboa-Porto viável sob o ponto de vista económico e financeiro.
As conclusões a que chegam estas três empresas são as seguintes: a RAVE prevê 4,1 milhões de passageiros logo em 2016, ou seja, mais 66% do que se não funcionasse a Alta Velocidade; a previsão da empresa "tHR" é de 3,92 milhões de passageiros no ano de arranque do projecto, ou seja, mais 58,7% do que se não existisse Alta Velocidade; em 2025, seria mais 180,9%; e, em 2035, mais 231,7% passageiros do que existiria sem Alta Velocidade. A empresa "TiS" já apresenta previsões bastante diferentes. Assim, para viabilizar o projecto seriam necessários 4,12 milhões de passageiros, logo no 1º ano (2016), se a taxa de desconto utilizada para actualizar os custos para o ano de 2006 fosse de 5,5%; 2,6 milhões de passageiros se a taxa de desconto fosse apenas de 4%, que é uma taxa insuficiente para garantir a cobertura da totalidade dos custos; 5,49 milhões de passageiros, já em 2016, se não forem consideradas as chamadas externalidades, ou seja, os benefícios resultantes da redução de acidentes, da redução dos gases produzidos, etc. Portanto, previsões para todos os gostos, o que significa pouco rigorosas.
UM AUMENTO MUITO SIGNIFICATIVO NOS PREÇOS DOS BILHETES RELATIVAMENTE AO ALFA
Um aspecto importante que não foi estudado, e que devia ter sido, porque condiciona também a procura, era o aumento de preços que a introdução da Alta Velocidade determinará.
O quadro seguinte construído com dados constantes do estudo da empresa "tHR" mostra o significativo aumento de preços que resultaria da Alta Velocidade na linha Norte. Os dados são relativos ao ano de 2003, mas percentualmente a diferença não será actualmente menor.
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Lisboa-Porto | 24 € | 36 € | +50,0% | 140 | 90 | -35,7% |
Lisboa-Aveiro | 19 € | 33 € | +73,7% | 109 | 85 | -22,0% |
Lisboa-Coimbra | 17 € | 26 € | +52,9% | 84 | 71 | -15,5% |
Lisboa-Leiria | 14 € | 18 € | +28,6% | 67 | 51 | -23,9% |
Porto-Leiria | 14 € | 20 € | +42,9% | 77 | 51 | -33,8% |
Porto-Coimbra | 12 € | 15 € | +25,0% | 54 | 30 | -44,4% |
Porto-Aveiro | 10 € | 14 € | +40,0% | 38 | 15 | -60,5% |
Leiria-Aveiro | 10 € | 18 € | +80,0% | 45 | 41 | -8,9% |
Coimbra –Leiria | 8 € | 14 € | +75,0% | 21 | 23 | 9,5% |
Aveiro-Coimbra | 8 € | 14 € | +75,0% | 25 | 17 | -32,0% |
Média simples | 14 € | 21 € | +52,9% | 66 | 47,4 | -28,2% |
Tarifa (€)/Km | 0,08 € | 0,11 € | +37,5% |
De acordo com a empresa "tHR" o aumento do preços do comboio de Alta Velocidade, relativamente ao preço do comboio ALFA, varia entre +25% e +80%, enquanto o tempo de viagem varia entre mais +9,5% (no trajecto Coimbra Leiria aumentaria em mais 2 minutos do que o tempo actual) e menos -60%. No trajecto Lisboa-Porto o preço dos bilhetes aumentaria em 50%, e o tempo de viagem diminuiria em -35,7%. Era necessário estudar qual seria os efeitos na procura deste aumento tão grande nos preços dos bilhetes, mas isso não foi estudado.
A empresa "TIS" afirma mesmo que o "efeito é negligenciável", mas não o estuda para o caso concreto português, enquanto a empresa "tHR" afirma que subidas superiores a 35% condicionam a procura. Por outro lado, a empresa "TiS" considera que a diferença de preços entre a Alta Velocidade e o ALFA, por ex., é anulada pelo valor que os passageiros dão à redução do tempo de viagem. No entanto, se compararmos os valores em euros atribuídos por cada uma das empresas à redução do tempo de viagem concluímos que eles são muito diferentes, o que mostra bem a falta de rigor de tal cálculo. Assim, para a empresa tHR o valor dado pelo cliente à redução de uma hora de tempo de viagem é de 8,5 euros, enquanto para a empresa TiS é 15,11 euros, portanto 78% superior ao da outra empresa. Esta diferença tão grande dá bem uma ideia do reduzido rigor de tais dados.
UM PESO MUITO EXAGERADO DOS CHAMADOS BENEFICIOS ECONÓMICOS INDIRECTOS, QUE SÃO INCERTOS E DUVIDOSOS
Como as receitas da venda de bilhetes não são suficientes para cobrir os custos do investimento e os custos do funcionamento do projecto, o governo sobrestima as receitas do projecto, considerando uma série de benefícios económicos indirectos incertos e duvidosos, de difícil avaliação e quantificação. Serve de exemplo de benefícios indirectos económicos do projecto, o número de empregos criados a nível da economia (100 mil diz o governo, mas não consegue demonstrar isso); o aumento do PIB em 5% (o estudo da Universidade Católica utilizado não garante isso, apenas afirma que se "a utilização da rede de transportes aumentasse em 1% o PIB cresceria em 0,234%", mas para que tal se verifique é necessário que exista procura, e não apenas de Alta Velocidade, mas mesmo existindo essa procura não está garantido o aumento do PIB pois este depende de muitos outros factores, alguns considerados no modelo e outros eliminados para simplificar e tornar possível a construção do modelo); etc.; ou seja, benefícios de duvidosa realização e de difícil avaliação. Para se poder ficar com uma ideia da polémica que existe neste campo, basta dizer que a empresa TiS, para além dos benefícios resultantes da redução do tempo de viagem, da redução de emissão de gases e de acidentes de aviação não considera mais nada, enquanto a empresa tHR considera, para além daqueles, os resultantes do aumento do PIB, do emprego a nível nacional, etc., ou seja, os chamados "benefícios económicos indirectos". O quadro seguinte, construído com dados constantes dos dois estudos de viabilidade, mostra a forma diferente como estas duas empresas tratam a mesma matéria.
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IMPACTOS EXTERNALIDADES | 471 | Entre 696 e 771 |
Emissão gases | 161 | |
Segurança trafego | 327 | |
Ruido | -17 | |
BENEFICIOS ECONÓMICOS INDIRECTOS | 1.093 | 0 |
Redução imperfeições mercado trabalho | ? | |
Melhor distribuição internacional emprego | ? | |
Melhor acessibilidades | ? | |
Criação emprego (100.000 no ano ponta) | ? | |
Mercado de habitação (elevar preços) | ? | |
Aumento do PIB (0,07%-0,18%) | ? |
Como revelam os dados do quadro, o valor actual das "externalidades" e dos "benefícios económicos indirectos" utilizados na elaboração dos estudos de viabilidade pela empresa de consultoria holandesa "tHR" (471 milhões mais 1.093 milhões de euros) e pela empresa "TiS" (entre 696 e 771 milhões de euros mais zero euro) são muito diferentes o que mostra bem a falta de rigor existente na avaliação desses benefícios, os quais são utilizados muitas vezes para tornar um projecto com viabilidade sob o ponto de vista económico, quando o não tem sob o ponto de vista financeiro. Um outro exemplo desta prática governamental é o que acontece com as Auto-Estradas. Durante o debate na Assembleia da República do Orçamento do Estado para 2009, confrontamos directamente o ministro das Obras Públicas para que ele informasse a Assembleia dos resultados das Auto-Estradas. O secretário de Estado dos Transportes respondendo pelo ministro informou que, no período da concessão (75 anos), as Auto-Estradas dariam um saldo positivo, em termos de custo/beneficio, a preços actuais, de quase 8.000 milhões de euros, não explicando como esse "milagre" era obtido. Mais tarde viemos a saber que isso só era alcançado considerando que o valor dos chamados "benefícios económicos indirectos", portanto incertos e de difícil, para não dizer impossível, avaliação, a preços actuais, considerados totalizavam 10.939 milhões de euros ( Expresso, 04/04/2009). Os comentários são desnecessários face à falta de rigor das contas do governo.
CUSTOS IMPORTANTES NÃO CONSIDERADOS NOS ESTUDOS DE VIABILIDADE
Nos estudos de viabilidade realizados pelas duas empresas há custos que não foram considerados nem estudados, e que seria importante que o fossem. Destacamos nomeadamente os seguintes: (1) Redução das receitas nas Auto-estradas que a Alta Velocidade determinará, pois são sistemas de transportes que concorrem entre si; já que isso poderá determinar mais custos para o OE; (2) O mesmo em relação ao transporte aéreo protagonizado pela TAP, pois a diminuição das receitas que a introdução da Alta Velocidade determinaria poderá aumentar os prejuízos desta empresa pública que teriam depois de ser suportados pelo OE; (3) Consequências para a CP do facto de a sua principal fonte de receitas, que é o ALFA, deixar de existir; (4) Custos suportados pelas populações devido ao traçado da via de Alta Velocidade (produção perdida, terrenos agrícolas inutilizados, etc.). E ainda o efeito do "Low-cost" na procura:
OPÇÃO: não construir a linha Lisboa-Porto e Porto-Vigo e estudar melhor a linha de Alta Velocidade Lisboa-Madrid para se conhecer com rigor os custos a suportar pelo Estado e os benefícios
Se não forem considerados os chamados "benefícios económicos indirectos", segundo a empresa "tHR" os resultados a linha de Alta Velocidade Lisboa-Porto, a preços actuais, são negativos atingindo o elevado valor de -731 milhões de euros. De acordo com o estudo realizado pela empresa "TiS" se não forem consideradas as "Externalidades" seria necessário que a procura atingisse 5,49 milhões de passageiros logo no primeiro ano (+122% do que sem Alta Velocidade) para que a linha Lisboa-Porto tivesse viabilidade, que é um número de passageiros quase impossível de ser alcançado. Portanto, a viabilidade ficaria altamente dependente de proveitos incertos, duvidosos e de difícil avaliação, como são o crescimento do emprego, o aumento do PIB, o aumento dos preços dos imóveis, a redução da sinistralidade, etc., etc. e de um aumento da procura que parece ser difícil, para não dizer mesmo impossível, de ser alcançado. E a linha Norte é aquela em que o tráfego de passageiros é já relativamente elevado e tem possibilidades de crescer mais, o que não sucede com as linhas Lisboa-Madrid e Porto-Vigo. Por ex., o estudo Lisboa – Madrid elaborado pela TiS prevê que seja necessário uma procura de 6,8 milhões de passageiros logo no primeiro ano, quando a RAVE, em anteriores estudos, tinha previsto uma procura de 1,8 milhões de passageiros. É por esta razão que estas duas últimas linhas de Alta Velocidade não têm também viabilidade económica e financeira, quando a linha Norte já é muito duvidoso que o tenha.
Está situação é ainda agravada pelo modelo de negócio que este governo pretendia impor – varias Parcerias Púublico Privadas – o que aumentaria os custos porque teria de ser ainda pago o lucro dos privados e não permitia tirar partido das sinergias da gestão realizada por uma única entidade pública, para além de entregar um serviço estratégico ao controlo privado.
A razão que poderia justificar a construção da linha de Alta Velocidade Lisboa – Madrid seria o interesse de Portugal ficar ligado à rede de Alta Velocidade transeuropeia. Mas isso exigiria que se fizesse um estudo muito rigoroso de quanto custará esta ligação para se avaliar quais serão os custos para o Orçamento e para as gerações futuras de tal decisão, pois certamente tal linha teria de ser fortemente subsidiada pelo Estado português, e de estudar os efeitos do aumento da divida externa determinado pela execução deste projecto.
24.06.09
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