À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

13/05/2009

Flexibilização do trabalho, flexibilização do ensino

Rui Namorado Rosa

Assistimos a intensa contestação estudantil às condições de estudo e de trabalho e ao sentido geral do pacote legislativo que o governo pretende impor ao sistema e aos estabelecimentos públicos de ensino superior. O sub-financiamento por parte do estado e a concomitante exigência de pagamento de propinas elevadas, a par da degradação das prestações de acção social escolar que o estado deveria assegurar, são "apenas" as questões mais visíveis desse revoltado descontentamento. A sociedade portuguesa vê-se ameaçada em direitos e garantias adquiridos e vê-se feroz e impiedosamente explorada por iniquidades sociais e económicas.

Contrariando os esforços manipuladores do grande capital através dos governos submissos e da comunicação social ao seu serviço, os professores, os estudantes, as comunidades educativas em geral, têm a percepção ou mesmo a clara compreensão do actual processo em marcha contra o bem comum que é a Escola e o Ensino Público. Por isso resistem e vão à luta. É uma luta de resistência e prolongada, cuja origem e progressão e cujos objectivos importa reflectir.

Aprendizagens e formação ao longo da vida com a "flexibilização" à vista

A "flexibilização" é um dos conceitos chaves do discurso neoliberal. Tem como alvo a maioria da população menos qualificada, que ela pretende aceite como natural e boa a precaridade dum emprego incerto e indefinido. A "aprendizagem ao longo da vida" é um outro conceito chave, com aquele intimamente relacionado. Tem como alvo a mesma população, agora para a manter como um enorme exército em condições de vender a todo o momento o seu trabalho, submisso e aplacado. Assim não surpreende a frequência com que documentação e acções relacionadas com a aprendizagem ao longo da vida se têm sucedido nos últimos anos, na procura ainda de uma formulação ajustada e mais convincente: formação contínua, ou permanente, ou ao longo da vida e, agora, aprendizagem ao longo da vida, insinuando que é ao trabalhador que compete saber actualizar-se para que adquira ou mereça "empregabilidade" [OCDE, Politiques du marché du travail: nouveaux défis. Apprendre à tout âge pour rester employable durant toute la vie. Réunion du Comité de l'emploi, du travail et des affaires sociales, Paris 14-15 Octobre 1997, OCDE/GD(97)162, www.dglive.be/arbeit/Equal/OECDlebenslangesLernen.pdf; Commission Européenne, Les objectifs concrets futurs des systèmes d'éducation, Rapport de la Commission, COM(2001)59 final, Bruxelles, le 31.01.2001,
www.info-europe.fr/doc02/233/g000e372.pdf].

Formação ao longo da vida! Mas não, não é para levar o conhecimento a todos e a todo o momento, os tesouros da literatura e das artes, as descobertas da ciência e da técnica, a filosofia; não; são essencialmente três coisas: desregulamentação, adaptabilidade e responsabilização [Nico Hirtt, Les trois axes de la marchandisation scolaire, Etudes marxistes n°56, décembre 2001, http://users.skynet.be/aped/Analyses/Articles2/Trois%20axes.htm, www.agl.ucl.ac.be/temp/ext/dossiers/enseignement/marchandisation/20011200_em_hirtt_trois_axes.html].

Os programas de ensino secundário, sobretudo preenchidos de saberes e símbolos culturais e destinados à legitimação das relações sociais pré-existente, sobreviveram a época de massificação do ensino sem descaracterização profunda, ficando progressivamente inadaptados à elevação do nível de formação profissional de massas.

A partilha de uma cultura comum deixa de ser tomado como o mais importante, dando lugar à necessidade de adquirir "competências", a capacidade de aceder a novos saberes e de os aplicar em situações novas. Mas também aqui não nos iludamos. Sem dominar as bases dos novos saberes, a que aliás deverão aceder "ao longo da vida", o ensino secundário de massas está agora mais vocacionado para a aquisição dessas competências sobretudo instrumentais numa perspectiva de utilidade económica. Pretende-se que os futuros trabalhadores aprendam a mover-se num ambiente dominado por tecnologias materiais e organizacionais, capazes de dialogar com uma máquina e com uma hierarquia, que se habituem a adaptar a rápidas mudanças de instrumentos e de ambientes. Esses são os ingredientes que se espera de um trabalhador num mercado de trabalho flexível. Eles mesmos deverão ter o desembaraço de utilizar eficazmente as tecnologias da informação e comunicação para, em ambientes multimédia ou através da Internet e acedendo a modalidades de ensino à distância, adquirirem novas competências num processo de actualização permanente (incluindo o que seriam tempos livres) e incessante (ao longo da vida) em que eles deverão ser os próprios investidores e os próprios mestres. Cada um deverá se assim capaz de provar a sua competitividade profissional, aferível em termos de "empregabilidade" e promover o seu auto-emprego. No dizer da Comissão Europeia: "Na sociedade do conhecimento, os próprios indivíduos são os principais protagonistas (…) os indivíduos devem ter a vontade e os meios de tomarem os seus destinos nas próprias mãos". O proletário do século XIX é representado no início do século XXI transfigurado em micro-empresário, e a relação de trabalho entre mestre e aprendiz transfigurada em auto-aprendizagem e aprendizagem inter-geracional não formal. Quer dizer, para além da aprendizagem formal, a informal, a inter-geracional e a compensatória ganham agora, neste novo quadro conceptual, maior ou novo sentido e importância. "eLearning", a região de aprendizagem, a comunidade da aprendizagem e o mediador de aprendizagem surgem como novos conceitos e novos instrumentos no processo de ensino ou antes em sua pretensa substituição [Commission Européenne, Mémorandum sur l'éducation et la formation tout au long de la vie, SEC(2000) 1832, Bruxelles, le 30.10.2000; Communication Réaliser un espace européen de l'éducation et de la formation tout au long de la vie, COM(2001) 678final, Bruxelles, le 21.11.2001; http://europa.eu.int/comm/education/policies/lll/life/index_fr.html; http://europa.eu.int/comm/education/policies/lll/life/communication/com_pt.pdf].

O resultado final será uma económica (para o capital) selecção de competências e a sua flexível mobilidade, produzidas por via de puro darwinismo social. O capitalismo é desumanizante.

Como é que isto surgiu e como será? Foi em 1995 que a European Round Table (confederação de grandes empresários) formalizou a sua proposta de "reforma educativa" e afirmou então "Os métodos e instrumentos de educação deveriam ser modernizados, particularmente para encorajar a auto-aprendizagem (…) na escola e em casa (…) cada aluno deveria a prazo dispor do seu próprio computador." Esta proposta encontraria então condições favoráveis para avançar.

Oiçamos o relato expressivo desse avanço feito por Gérard de Sélys [Education et technologies: enjeux et défis pour le secteur de l'éducation publique, Internationale de l'Education, Table ronde de l'IE pour les pays de l'OCDE, Helsinki, 8-10 Octobre 2000,
www.ei-ie.org/educ/french/fedhelsinkiselys.html]: "Atenção, há um obstáculo. O ensino é regido pela lei em todos os países, incluindo na União Europeia. Não pode ensinar quem quer. Pânico. Então a ERT e a Comissão debruçam-se sobre essa questão para encontrar resposta. Ei-la…: "O Tratado da CEE prevê uma acção da Comunidade no domínio da educação e da cultura. Este dispositivo limita as competências nacionais. A educação à distância é explicitamente citada como um dos objectivos da acção da Comunidade (artigo 126, parágrafo 2, alínea 6 do Tratado de Maastricht). "O ensino privado à distância é um serviço". Ora "A livre prestação de serviços" está garantida pelo artigo 59 do tratado da CEE e constitui uma das liberdades fundamentais do mercado comum. (…) É portanto possível fazê-la prevalecer contra as restrições impostas pelos Estados membros. Assunto arrumado. (…) Porém novo alerta, há um outro problema. A atribuição de diplomas e certificados de conclusão de estudos é também regida pelas leis nacionais. E os empresários não podem esperar que todas as leis sejam revogadas ou revistas. Levaria anos.

Então, uma vez mais, eles põem-se ao trabalho com a Comissão. E esta vai conceber a introdução de um "cartão de acreditação de competências" ("skill accreditation card"). A ideia é simples. Imaginemos que um jovem acede a vários fornecedores comerciais de ensino através da Internet e adquire assim "competências" em técnica, em gestão ou em línguas. À medida da sua auto-aprendizagem, os fornecedores creditá-lo-ão dos conhecimentos e competências que ele adquiriu. Esta "acreditação" será feita electronicamente e será contabilizada numa disquete ("card") que ele terá introduzido num computador ligado aos seus fornecedores. Quando procurar um emprego, introduzirá a disquete no computador e ligar-se-á a um sítio de "oferta de emprego" gerido por uma associação patronal. O seu perfil será examinado por um programa e, se as suas "competências" corresponderem às que um empregador procura, ele será recrutado. Os diplomas já não são necessários! (…) Em 29 de Fevereiro de 1996, a Comissão lançou um concurso de ofertas para operacionar a segunda fase anual do programa Leonardo Da Vinci. Na memória informativa distribuída aos candidatos, intitulada "Sistema Europeu de Acreditação de Competências, ESAS", a Comissão explica: "A acreditação e a validação das competências utilizarão um sistema de programas interactivos ligados por uma rede (Internet) a um servidor que fornecerá testes interactivos a pedido e avaliará os resultados e validará o nível testado (…) Este nível (…) registado num cartão pessoal (…) e estes cartões pessoais tornar-se-ão o verdadeiro passaporte para o emprego".

Oportunidades contraditórias do Ensino à distância e "online"

A Internet parece ser a tecnologia da informação e comunicação - TIC - mais promissora para concretizar rápida e amplamente certos objectivos já identificados: o ensino à distância, a aprendizagem ao longo da vida e a comercialização dos serviços de ensino, em competição com o processo geral da Educação. Essa uma boa (má) razão para tanto se focar a atenção sobre esta TIC em particular, remetendo para um plano mais recuado a importância de outras TIC, omnipresentes e não menos poderosas, como as telecomunicações móveis, a observação e a navegação via satélite, a automatização e robotização crescentes das linhas de fabrico, etc., que nos libertam e nos vigiam, nos empregam e desempregam, etc.

Nos EUA, alguns grupos financeiros constituíram a Western Governor's University, com a colaboração da IBM e da Microsoft; uma outra empresa, Kaplan Educational Centers, há muito conhecida pelos seus serviços no apoio à preparação de exames, constituiu a Concord University School of Law, para oferecer formação exclusivamente através da Internet. Após o que algumas grandes universidades - Columbia, Stanford, Chicago, London School of Economics - firmaram contratos com uma empresa especializada em difusão pedagógica via Internet para passarem a oferecer também formação à distância nos domínios da gestão, finança e negócios. Por enquanto estas formações não são reconhecidas e certificadas; algumas entidades, como o MIT, até oferecem esses serviços gratuitamente. Um estudo da International Data Corporation prevê nos EUA um rápido crescimento do número de estudantes que farão a sua aprendizagem "online" e das instituições de ensino superior que oferecerão essa modalidade de ensino [Michael Barker, E-education is the New New Thing, Edinvest, primeiro trimestre 2000,
www.wiredcottages.com/e-commerce/eeducation.htm].

Jones International Ltd. detém uma posição de destaque. Instituiu a Jones International University, uma instituição pioneira em ensino superior exclusivamente "online", já acreditada desde 1999, e instituiu também a GATE - Global Alliance for Transnational Education, uma empresa especializada na avaliação de qualidade e acreditação de ensino superior transnacional, recentemente doada à US Distance Learning Association, uma associação especializada no fornecimento de serviços no âmbito da aprendizagem à distância. [GATE, Press release, August 12, 2003, www.edugate.org/usdla.htm].

O ensino "online" é um instrumento muito versátil e poderoso. Importa descodificar e analisar a diversidade de motivações que animam os protagonistas em presença, a começar pelas corporações transnacionais -CTN - constituídas e em processo de constituição nos domínios das telecomunicações, da indústria multimédia, do comércio electrónico ("eCommerce") e do ensino electrónico ("eLearning") e pelos governos e instituições internacionais; cabe também aos educadores e investigadores, embora em contra-corrente, extrair as virtualidades da Internet para efeitos pedagógicos construtivos. [Chris Werry, The Work of Education in the Age of E-College, First Monday, volume 6, number 5, May 2001, www.firstmonday.dk/issues/issue6_5/werry/].

No ensino privado empresarial, como a experiência noutros sectores empresariais tem mostrado, os grupos mais poderosos (incluindo os mais precoces) seguem estratégias agressivas para conquistarem posições monopolistas, ressarcindo-se amplamente dos seus encargos passados com grossos proveitos futuros. Pelo caminho fica a Educação ela própria, pois o que se oferece e é adquirido são "competências" específicas e padronizadas, centradas numa relação homem-máquina (uma dada máquina), cultural e socialmente constrangedora. Inovações tecnológicas, potencialmente libertadoras de tempo de trabalho necessário, conduzem pelo contrário, na economia de mercado capitalista, ao empobrecimento pessoal e social, à desumanização do trabalhador. E a uma subtil mas poderosa dependência funcional e económica do indivíduo face à máquina, cuja actualidade ou obsolescência é manipulada pelo grande capital, como os demais bens de consumo. A escolha que se nos quer oferecer é entre a "infor-exclusão", a que a maioria não escapa, e a "infor-dependência", em que os demais ficam aprisionados.

A oferta de ensino "online" nos EUA permitiu o crescimento acelerado do número de crianças que seguem os seus estudos em casa, mesmo aos níveis primário e secundário ("home schooling"), anteriormente reservado aos meios rurais isolados e às famílias abastadas que podiam pagar tutores privados, mas agora alargado a um universo muito mais amplo. O sub-financiamento do sistema público e a conflitualidade social não resolvida induzem muitas famílias norte-americanas a optar por essa modalidade de ensino para as suas crianças. Uma solução de recurso em alternativa à escolarização, com custos financeiros para quem os pode suportar e com custos sócio-culturais irreversíveis para as crianças que dele "beneficiam". Estamos a referir-nos aos EUA, mas é porque o processo está aí mais avançado e começa a chagar à Europa também. Como será esse "homem novo" que resultará dessa modalidade de Educação em que a socialização (?) é mediada pela máquina? Os Antropólogos dirão.

"Desregulamentação" a caminho da "economia de mercado"

A OCDE tem enunciado sistematicamente as orientações para o ensino, de acordo com as exigências da nova ordem neoliberal, que os governos deverão depois adoptar, confortados com a autoridade que emana dessa instância internacional constituída pelos países capitalistas mais desenvolvidos. Transcrevemos uma significativa recolha de citações feita por Hirtt [Nico Hirtt, Les trois axes de la marchandisation scolaire, Etudes marxistes n°56, Bruxelles, novembre 2001,
http://users.skynet.be/aped/Analyses/Articles2/Trois%20axes.htm]. Ei-las: "…(o benefício do ensino em alternância) é aprender a tornar-se parte de uma equipa de trabalho, a aceitar receber ordens e a trabalhar com os outros. Também compreender melhor o ritmo do trabalho e a estar apto a corresponder a exigências diferentes nas etapas sucessivas de uma carreira" [OCDE, Redéfinir le curriculum: un enseignement pour le XXIe siècle, Paris 1994]; outras: "…o sistema escolar deve esforçar-se por reduzir o seu tempo de resposta fazendo uso de fórmulas mais flexíveis que aquelas da função pública, a fim de criar ou encerrar secções técnicas ou profissionais, utilizar pessoal competente e dispor dos equipamentos necessários"; "As múltiplas evoluções tornadas necessárias pelas transformações económicas e tecnológicas já não permitem aos sistemas escolares nem aos poderes públicos assumirem sozinhos a formação inicial e a formação contínua da mão-de-obra (…) (é necessário) encontrar uma partilha de responsabilidades que, de acordo com as particularidades dos países, garantam ao mesmo tempo a qualidade e a flexibilidade dos ensinos e das formações" [l'Observateur de l'OCDE, n°193 Avril-Mai 1995]; "…(quanto à escola pública, esta deverá) assegurar o acesso à aprendizagem àqueles que nunca constituirão um mercado rentável e cuja exclusão da sociedade em geral se acentuará à medida que outros continuarão a progredir" [Adult learning and Technology in OECD Countries, OECD Proceedings, Paris, 1996] e ainda "…admite-se que a aprendizagem se desenrole em contextos múltiplos, formais e informais (…) a globalização económica, política e cultural torna obsoleta a instituição implantada localmente e ancorada numa cultura determinada sob o nome de Escola e ao mesmo tempo que ela, o docente" [OCDE, Analyse des politiques d' éducation, 1998]. Ver ainda, sobre o mesmo assunto, a colectânea APED, L'OCDE et l'enseignement [http://users.swing.be/aped/Dossiers/D0003OCDE_ens.html]. Estas orientações surgem na documentação da OCDE mas esta instituição internacional é apenas um "agente facilitador", uma correia de transmissão, das orientações que partem das agremiações empresariais, designadamente a ERT na Europa, que desde 1989 tem produzido doutrina sobre Educação, para virem a ser acolhidas depois pela Comissão Europeia (no caso da Europa) e finalmente impostas nos estados membros da União.

Das sucessivas recomendações resulta uma debilitação da centralidade da Educação como objectivo da Escola para a colocar a reboque de uma utilidade estritamente empresarial. Ao mesmo tempo, observa-se na União Europeia em geral a tendência para a descentralização da administração da rede escolar, dos governos centrais para níveis intermédios, até à maior autonomia escolar (importa ver em quê), mas invocando a sua acrescida responsabilização (importa ver em quê também); assiste-se igualmente ao questionamento da capacidade do sistema escolar e das autoridades públicas para assegurarem os seus objectivos, a par da exaltação dos méritos das aprendizagens informais e em alternância realizadas "fora de portas". Por um lado dir-se-ia que se confere maior centralidade às escolas, por outro verifica-se que se lha retira; o resultado final é uma séria ameaça à credibilidade da Escola pública no presente contexto e uma generosa facilitação da privatização do ensino; as instituições de ensino privado comercial estão atentas e agradecem.

A flexibilização do emprego e a rotação rápida de posto de trabalho que o neoliberalismo exige implica com o presente quadro de qualificação e da sua certificação. Este está ajustado ao quadro de relações de trabalho conquistado durante o período de expansão económica e é agora um obstáculo aos actuais desígnios do capital. O capital pretende, como se disse, a flexibilização e rápida rotação da força de trabalho, libertado portanto da actual "rigidez" dos processos de negociações colectivas, "acordos sociais", regulamentação dos direitos laborais e segurança social. Ora sendo uma questão distinta, a qualificação e certificação profissional são em si mesmas constrangimentos para a flexibilização e desregulamentação que o capital pretende alcançar. Daí a retórica a justificar a flexibilização dos próprios processos de qualificação. Aparece então também a flexibilização nos percursos escolares, assim como a mobilidade (uma e outra não só por boas mas por más razões também), a modularização das aprendizagens, a multiplicação de modalidades de aprendizagem (formal e informal) e de certificações de competências. Este contexto será mais favorável à disponibilização e exploração de uma força de trabalho flexibilizada e em rápida rotação, como o capital pretende impor.

A Educação como mercadoria

"Um acordo global está a ser negociado para permitir às empresas transnacionais apoderarem-se dos serviços públicos de todo o mundo - independentemente da vontade dos povos. Se entrar em vigor, isso significará a extinção do sector público" [Maude Barlow, GATS: a última fronteira da globalização, 2002, http://resistir.info/ambiente/barlow_gats.html]. As despesas anuais com Educação somam perto de US$ 2 triliões (milhões de milhões) a nível mundial [Cynthia Guttman, Éducation: un marché de 2 000 milliards de dollars, Courier de l'UNESCO, Novembre 2000, www.unesco.org/courier/2000_11/fr/doss0.htm], ou seja, um montante comparável com o de transacções de combustíveis fósseis e duplo do mercado automóvel. É obviamente um alvo muito apetecível para o capital naquilo que tiver de rentável no seu ponto de vista. A liberalização da Educação contextualiza-se no processo mais amplo da privatização dos serviços públicos, sendo não o mais importante em volume de negócio (pois que a Saúde é ainda mais volumoso) mas o mais ambicioso pelo seu alcance em vertentes múltiplas.

A estratégia para atingir esse objectivo compreende necessariamente a redução do financiamento público dos sistemas de ensino, a desregulamentação deste serviço público e a promoção de conceitos de formação ou aprendizagem estranhos aos princípios e práticas tradicionais das escolas.

Segundo um relatório do banco de negócios norte-americano Merill Lynch, o mercado da educação e formação representa 10% do PIB da economia dos EUA, embora ("só") menos de 0,2% do volume do mercado nacional de valores imobiliários ("stock market") - US$16 mil milhões em US$10 triliões. Por comparação, o sector da saúde representa 14% do PIB e uma fracção comparável do mercado de valores imobiliários. O relatório extrai a conclusão que existe um enorme potencial de crescimento do peso imobiliário e de geração de receitas no sector educativo [Chris Werry, The Work of Education in the Age of E-College, First Monday, volume 6, number 5, May 2001, www.firstmonday.dk/issues/issue6_5/werry/]. Obviamente tem-se em vista a privatização massiva do sistema de ensino em diversas das suas inúmeras vertentes. Também de acordo com a Merril Lynch, o sector do ensino oferece agora as características oferecidas pelo sector da saúde há trinta anos: um "mercado" enorme e fragmentado, com baixa produtividade, com insuficiente nível tecnológico (oferecendo amplas oportunidades de actualização), com insuficiências de gestão profissional e com baixa taxa de capitalização. A situação estaria madura para uma grande operação de privatização: a opinião pública estaria já preparada para aceitar essa operação como boa e as escolas já bastante carenciadas de financiamento, os estratos sociais mais afluentes só por si constituiriam já uma enorme base de financiamento para o ensino privatizado. Em particular, o negócio do ensino "online" via Internet é não só já volumoso como promete um crescimento acelerado Ainda nos EUA, em 1998 o volume do negócio da Educação nesta modalidade atingia já US$ 82 mil milhões/ano (sendo 24 em produtos, 30 em serviços e 28 em receitas escolares) [Michael Barker, E-education is the New New Thing, Edinvest, premeiro trimestre 2000, www.wiredcottages.com/e-commerce/eeducation.htm]. A França ocupa o segundo lugar neste "negócio" a nível mundial graças à sua posição monopolista na comunidade de países francófonos. No Reino Unido, em 1996 foi criado o índice bolsista "UK Education and Training Índex" que tem demonstrado crescimento acima da média, crescimento explicado pelos investimentos em centros de formação em novas tecnologias e em computadores, pelos partenariados universidade-indústria e pela sub-contratação de serviços educativos [Nico Hirttt, Les trois axes de la marchandisation scolaire, 2001, http://users.skynet.be/aped/Analyses/Articles2/Trois%20axes.htm].

A caminho da privatização e comercialização global da Educação

Para a cimeira de Seattle (Novembro-Dezembro 1999), a OMC havia preparado um estudo (com "colaboração" da GATE - Global Alliance for Transnational Education, OCDE e de funcionários dos governos anglo-saxónicos que acolhem os principais provedores de ensino a distância.) sobre as perspectivas da progressão da liberalização da Educação. Aí se registava o rápido crescimento das aprendizagens à distância e a multiplicação de parcerias entre instituições de ensino e de empresas dos sectores das TIC, multimédia e editorial. Aí se louvava a desregulamentação do ensino superior em progresso na Europa e felicitava os governos que haviam já encetado o caminho de reduzir o financiamento público e a suscitar mecanismos de financiamento alternativo, em aproximação ao "mercado". Por fim, a OMC apontava numerosos obstáculos que faltava ainda eliminar até alcançar a liberalização dos serviços educativos, particularmente a persistência de monopólios educativos estatais e de situações de financiamento público predominante, assim como os obstáculos colocados ao investimento directo estrangeiro de "fornecedores" de serviços educativos. Porém, e sob as críticas e manifestações por parte de numerosas associações sindicais, estudantis e cívicas, a cimeira de Seattle resultou num insucesso temporário para os interesses do capitalismo. As negociações sobre a abertura da Educação à livre transacção internacional foram retomadas então no âmbito do Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (AGCS) em Genebra. [Nico Hirttt, Les trois axes de la marchandisation scolaire, 2001, http://users.skynet.be/aped/Analyses/Articles2/Trois%20axes.htm]. Agora, a ofensiva prossegue no quadro do AGCS, impulsionada pelos poderosos consórcios anglo-saxónicos já constituídos neste "negócio", liderada pelos EUA e com a cumplicidade activa da União Europeia. [Susan Robertson, Iludindo e Configurando a Economia do Conhecimento, A Página da Educação n.º 119, Janeiro de 2003, www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp?ID=2220]. Logo em Dezembro de 2000 os EUA entregaram à OMC um pacote de propostas relativas ao fornecimento de serviços pelos EUA, incluindo um conjunto de 17 pontos no âmbito do ensino superior, tendo em vista a abertura dos mercados nacionais. E em 23 - 24 de Maio de 2002, em Washington, a OCDE e o Banco Mundial organizaram um encontro para tratar do comércio de serviços educativos e decidiram passar a financiar instituições que tenham por objectivo defender a comercialização do ensino superior.

O Memorando da European University Association datado de 21 de Maio de 2001 [www.esib.org/commodification/documents/EUA-GATS.pdf] descreve o processo AGCS, assinala os termos não participativos em que ele é conduzido, avalia as implicações da liberalização do comércio em ensino superior em curso na Europa e comenta a sua relação com o processo de Bolonha. Em jeito de síntese afirma: "…Existe a possibilidade de estas reformas comprometerem o tradicional sistema público democrático operado por entidades responsabilizadas. Por outro lado, muitos argumentariam que a liberalização comercial cria um sistema educativo de natureza empresarial e dependente do comportamento do mercado. Contudo, ao mesmo tempo, a verdade é que os serviços educativos já são oferecidos em base comercial e existem operadores europeus interessados em promoverem serviços educacionais no estrangeiro…" Não só a AUE assimila quase exactamente a terminologia e a retórica do AGCS como assume posição desarmada face à ofensiva dos países anglo-saxões promotores do negócio da Educação. Não sendo obviamente uma instituição "de classe", a AUE hesita mas todavia reflecte perfeitamente a mentalidade e os interesses do grande capital, para o qual a privatização dos serviços públicos e a globalização comercial são objectivos na agenda do dia.

Entretanto, com os patrocínios do Banco Mundial, da OCDE, da UE e outros de menor peso, numerosas agremiações patronais e profissionais lançaram-se numa intensa campanha de simpósios, congressos, feiras, etc. para promoção da nova filosofia das formações e aprendizagens, dos seus inovadores produtos e metodologias bem como, naturalmente, dos próprios agentes de tais mudanças, que assim procuram publicitação, parcerias e futuras oportunidades de negócios. Esta actividade é frenética por toda a Europa.

Para além dos próprios agentes das ditas mutações, The World Business Organization, European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions, Global Alliance for Transnational Education, International Chamber of Commerce, European Centre for Strategic Management of Universities, são alguns dos representantes do capital transnacional nesta campanha. Pelo contrário outras entidades, associações sindicais e profissionais e outras organizações não governamentais, militam pelo esclarecimento e denúncia dos reais objectivos e dos iminentes riscos das mutações que o capital, com o apoio dos governos, procura introduzir nos serviços públicos e em particular na Educação. Temos aqui, entre muitas outras, Public Citizen, World Development Movement, Corporate Europe Observatory, Observatoire de la Mondialisation, Third World Network, Our World is not For Sale Network, Unité de Recherche de Formation et d'Information sur la Globalization, L'Appel pour une École Démocratique, The Council of Canadians, etc. É tempo de tomar partido.

O desenrolar deste confronto ideológico e social não está determinado. A luta é difícil para ambos os lados. Sobretudo vital para o lado do capital, não só mas também no domínio da Educação, pois que é a sua sobrevivência que está em causa. "A reforma mais frequentemente necessária e a mais perigosa é a das empresas públicas, seja em caso de sua reorganização seja da sua privatização. Esta reforma é muito difícil porque os assalariados deste sector estão frequentemente bem organizados e controlam domínios estratégicos. Vão bater-se com todos os meios possíveis (…) Quanto mais um país tenha desenvolvido um grande sector público, mais esta reforma será difícil de concretizar" [Morrisson Christian, La Faisabilité politique de l'ajustement, Cahier de politique économique n°13, OCDE 1996, www.oecd.org/dataoecd/24/22/1919060.pdf]. Contrariando os esforços manipuladores do grande capital através dos governos submissos e da comunicação social ao seu serviço, os professores, os estudantes, as comunidades educativas em geral, têm a percepção ou mesmo a compreensão do processo em marcha. Por isso resistem e vão à luta.

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