Este Verão, o Conselho e o Parlamento Europeus adoptaram o programa e-Learning, para a integração das Tecnologias da informação e comunicação (TIC) nos sistemas Europeus de Educação e Formação. Ao mesmo tempo, o governo Português tramitava pressurosamente a revisão da Lei de Bases do Sistema Educativa e vários outros diplomas do pacote legislativo com que pretende adequar o ensino e através dele o perfil da força de trabalho nacional aos desígnios do capital transnacional. Nada que tenha a ver com objectivos sociais, culturais, cívicos, nada disso.
No programa e-Learning o que se tem em vista realizar ou atingir são campus virtuais europeus, incluindo a formação de professores, a geminação electrónica entre escolas, com salas de formação virtuais para professores, o desenvolvimento de software de conteúdos e multimédia europeus de qualidade a "competir" (por outras palavras à semelhança) com o oferecido pelos EUA e aproveitando as experiências dos países anglo-saxónicos. Há evidentes interesses económicos subjacentes a estes desígnios de "política educativa", situados no âmbito da produção multi-média (consabidamente ligada à indústria da comunicação social) e na produção e exploração de redes de telecomunicações informáticas.
Economia de mercado e Ensino na União Europeia
Durante trinta anos os interesses económicos haviam concentrado a sua atenção no desenvolvimento quantitativo do ensino mas, desde então, contrapõem os aspectos qualitativos, na proporção em que o confronto da competitividade torna mais urgente para eles uma reforma do ensino, nas vertentes de estrutura, conteúdos, metodologias e mesmo de atitudes (nomeadamente a concorrência, a competição, a flexibilidade, etc.).
O capital, particularmente as corporações transnacionais, tem de modo sistemático actuado através de grupos de pressão em que se organiza, alcançado sucesso em influenciarem a generalidade das políticas da União Europeia e de outras instituições internacionais, designadamente OECD, OMC e organismos da ONU. Na presente estratégia neoliberal, que compreende a liberalização e intensificação mundial do comércio, a privatização e a desregulamentação de virtualmente todos os domínios económicos e a subordinação de todos os domínios de política nacional ao objectivo da competitividade internacional, surgem como protagonistas discretos mas centrais alguns importantes grupos de pressão empresariais, constituídos por iniciativa ou com o beneplácito da Comissão Europeia, que actua como o governo "de facto" da União Europeia. Mencionemos os mais importantes grupos de pressão empresariais: European Roundtable of Industrialists (ERT), Union des Industries de la Communauté européenne (UNICE), International Chamber of Commerce (ICC), Association for Monetary Union of Europe (AMUE), Business and Sustainable Development (BSD), European Services Fórum (ESF), etc. - bem como as alianças constituídas entre esses grupos e os governos nacionais [Europe Inc.; Regional & Global Restructuring and the Rise of Corporate Power, Belén Balanyá, Ann Doherty, Olivier Hoedeman, Adam Ma'anit, Erik Wesselius, London: Pluto Press, 2000].
Em 1983 foi constituído, com a cumplicidade e benevolência do Comissário Europeu com o pelouro do Mercado Interno, Etienne Davignon, o lobby empresarial dos maiores grupos capitalistas (europeus e não só) ERT - European Round Table (of Industriaslists) [www.ert.be/]. Nele se associaram os grupos Rockefeller, Standard Oil, Asea-Brown-Bovery, Deutsche Bank, Fiat, Volvo, Renault, Societé General, Unilever, e mais tarde até a Comissão Trilateral. É considerada particularmente relevante a influência deste lobby no curso das transformações da política educativa na União Europeia desde 1995 [Gérard de Sélys, Education et technologies: enjeux et défis pour le secteur de l'éducation publique, Internationale de l'Education, Table ronde de l'IE pour les pays de l'OCDE, Helsinki, 8-10 Octobre 2000, www.ei-ie.org/educ/french/fedhelsinkiselys.html].
Desde a sua criação, triplicou o número de empresas associadas nesse círculo privado, institucionalizou a sua relação com a Comissão Europeia, tem elaborado estudos e propostas para estas e outras instâncias políticas, feito acções de insinuação e influência pela Europa fora e mesmo no exterior. Desde 1987 mantém relações de consulta e cooperação com a congénere norte-americana BRT - Business Roundtable [www.brtable.org/index.cfm]. Exerceu pressão sobre a constituição do "mercado comum" europeu em 1992 (1985-89), a conclusão do "Uruguai round" (1987-94), o alargamento a Leste da União Europeia (1991-99), a "modernização" da governação ("governance") europeia (2001-03), as negociações com a OMC (2002-03), etc. Mas cabe aqui destacar que, desde 1988, a ERT tem formulado orientações e tem-nas transmitido sobre matérias de legislação social (1989), legislação laboral (1988/90), aprendizagem ao longo da vida (1992), reforma educativa (1995), emprego, reforma da segurança social (2000-01). Não haja dúvida da sua influência junto da Comissão Europeia e daí sobre os governos nacionais.
O primeiro relatório da ERT que aborda a Educação é datado de 1989; a educação e a formação eram então investimentos de interesse vital para as empresas; lamentava que o sector empresarial tivesse tão pouca influência sobre os cursos ensinados e que os docentes ignorassem o contexto económico e as necessidades da indústria. Após o que outros relatórios foram sendo produzidos, esses já preconizando recomendações, ou seja, os objectivos que os governos deveriam incorporar nas suas políticas. Essas recomendações multiplicam-se, depois, nos documentos oficiais da OCDE e da Comissão Europeia, e encontram eco em associações patronais e governos nacionais.
No quadro de prolongada contracção económica, o capital necessita proceder ao reordenamento da divisão social do trabalho e das qualificações, para o que não é decretado o fim da massificação mas serão criadas condições (financeiras, organizativas e pedagógicas) que conduzam à travagem da expansão do sistema de ensino e à centrifugação da sua função económica (as elites altamente qualificadas versus as massas desqualificadas).
Esta política foi sendo concebida e elaborada, ao longo da década de 1990, e foi sendo posta em prática e produzindo seus frutos. Em 1999, na conferência "Visions of a European Future: Bologna and Beyond" promovida pela European Association for International Education (Maastricht, 2-3 December 1999), os especialistas "confirmavam" que os países industrializados haviam entrado numa fase de "post-massificação" e que a extraordinária explosão da população estudantil, verificada durante os trinta anos anteriores, havia chegado ao seu fim. Eles constatavam assim um facto já perceptível sobre toda a União Europeia para, com base nesse facto "empírico", inelutávelmente elaborarem e concluírem sobre a política futura, que de facto é a que já estava a ser praticada e a produzir os seus efeitos há vários anos, para a prosseguir e acelerar [Chantal Kaufmann, L'enseignement supérieur en Europe: Etat des lieux, Colloque L'Université dans la Toutmente, Bruxelles, 25 Février 2000, www.cfwb.be/infosup/pg062.htm].
Em Março de 2000 o Conselho Europeu aprova a "estratégia de Lisboa" segundo a qual a União Europeia afirma a intenção de se tornar na economia mais competitiva e mais dinâmica do mundo, capaz de suportar um crescimento económico duradouro. Era o clímax de um percurso, a tomada do poder político na Europa pelos interesses económicos, aspirando à hegemonia mundial. Essa aspiração hegemónica tem um sentido literal, mas vale sobretudo pela sua intenção "mobilizadora" dos povos europeus em torno de uma difusa "identidade" europeia, num tempo em a identidade nacional (e o patriotismo) não são mais valores úteis para as classes dirigentes.
A concretização dessa estratégia na vertente da Educação e Formação, é acompanhada por deliberações nos Conselhos Europeus de Estocolmo em Março de 2001 (Os objectivos concretos futuros dos sistemas de educação, COM(2001) 59final) e de Barcelona em Março de 2002 e, na vertente vocacional, no Conselho de Ministros da Educação e Formação em Copenhaga em Novembro de 2002. O Espaço Europeu da Investigação já constituído, a constituição do Espaço Europeu do Ensino Superior até 2010, formalmente iniciado em Bolonha em 1999, já estava em marcha. O Espaço Europeu do Ensino Superior comporta os seguintes conceitos-chave: a capacidade de atracção mundial da formação superior oferecida pela UE; comparabilidade entre formações homólogas adquiridas em países distintos; um sistema de unidades de crédito acumuláveis e transferíveis entre estabelecimentos de ensino e países (ECTS); a mobilidade de estudantes e professores; a cooperação na elaboração e a integração de programas de ensino; a organização do percurso escolar em três ciclos (um de graduação e dois de pós-graduação); a garantia de qualidade mediante orientações comuns relativas a avaliação do ensino, acreditação de habilitações profissionais e certificação de habilitações académicas.
Esta é uma das vertentes "internas" de actuação do grande capital na determinação das políticas de configuração da força de trabalho: a qualificação. Outra vertente interna respeita às condições da prestação do trabalho, objecto da legislação laboral, em que "flexibilização" é a palavra-chave. Mas existe também uma vertente "externa" dessa acção, exercida através das instituições internacionais e intergovernamentais, umas mais vocacionadas para a programação das políticas, como a OCDE, outras vocacionadas para as impor, como o BM/FMI e a OMT/AGCS.
As "novas tecnologias" ao serviço da Democracia ou do Mercado?
A escola continua a ser o local onde se transmite o dogma da coesão social e política e da legitimização do Estado "democrático". Omitindo, porque não faz parte dos conteúdos de ensino, excepto na mensagem de alguns docentes, que os direitos dos cidadãos (eleitores) terminam onde começam os interesses do poder económico (o que para este são os direitos reais).
O conteúdo presente de democracia é mera construção ideológica para assegurar, na presente etapa, a ditadura do capital sobre o trabalho, construção eficaz particularmente dirigida às classes intermédias e largamente assimilada. A escola desempenha uma função chave nessa difusão e assimilação, mas não está sozinha, a comunicação social tornou-se mais eficaz para o capital. A escola é ainda insubmissa e representa encargo para o Estado. A comunicação social é há muito fonte de grossos proventos e atinge públicos mais amplos ainda, no que parafraseando diríamos "lifewide washing". Na realidade um e outro instrumento de controlo social deixaram de ter como objectivo a formação de cidadãos de uma sociedade burguesa mas antes trabalhadores e consumidores "flexíveis" para mercados de trabalho e de produtos em permanente "inovação" de produtos e competências e em acelerada rotação. As tecnologias da informação e comunicação (TIC) aparecem com um protagonismo central (mas ambivalente) neste projecto de sociedade.
"Sociedade da Informação" [http://europa.eu.int/scadplus/leg/pt/lvb/l24100.htm] é uma política que, se não foi concebida com esse propósito, evoluiu de facto no sentido de se tornar num dos pilares da reforma educativa na Europa. A estratégia comunitária com vista ao desenvolvimento das capacidades tecnológicas exigidas pela dita sociedade da informação remonta a meados da década de 1980 e comportou duas vertentes principais. Primeiro, um programa de investigação e desenvolvimento, que foi iniciado em 1984 com o programa ESPRIT para as tecnologias da informação, seguido em 1986 por programas dirigidos às suas aplicações telemáticas e pelo programa RACE para as tecnologias avançadas de telecomunicações. Segundo, o desenvolvimento da componente innfra-estrutural das telecomunicações, que foi lançado em 1987 com o Livro Verde sobre a liberalização das telecomunicações, apontando três objectivos principais: a liberalização dos segmentos de mercado sujeitos a monopólio, a harmonização do sector das telecomunicações na Europa e a aplicação das regras da concorrência aos segmentos liberalizados.
Estes antecedentes foram obviamente mobilizados pelos interesses empresariais ligados às TIC, à indústria e aos operadores de telecomunicações. Nas palavras da Comissária Edith Cresson perante empresários europeus: "O mercado europeu é demasiado estreito, fragmentado, o ainda reduzido número de utilizadores e de criadores penaliza a nossa indústria (..) É por isso indispensável tomar medidas para o apoiar e estimular. É esse o objectivo do plano de acção "Aprender na sociedade da informação" que a Comissão adoptou em Outubro de 1996. Este tem duas ambições principais: por um lado, ajudar as escolas europeias a aceder o mais rápido possível às TIC, e por outro, acelerar a emergência e abrir o nosso mercado à dimensão de que a nossa indústria precisa" [Commission Européenne, Rapport du Groupe de Réflexion sur l'Education et la Formation "Accomplir l' Europe par l'Education et la Formation", Resumé et recommandations, Décembre 1996].
O lançamento formal de uma política global designada por "sociedade da informação" ocorreu na sequência do Livro Branco da Comissão sobre "Crescimento, Competitividade e Emprego" publicado em 1993, o qual atribuía à sociedade da informação um papel chave para o futuro crescimento económico, a competitividade, a criação de emprego e uma melhor qualidade de vida. Na sequência deste Livro Branco, foi produzido o relatório "A Europa e a Sociedade Global da Informação", que apresentava recomendações para o estabelecimento de um quadro regulamentar, tecnológico e social favorável à sociedade da informação, sobre o qual foi adoptado, em Junho de 1994, o primeiro plano de acção da UE para a sociedade da informação, "A Via Europeia para a Sociedade da Informação". Em 1999 foi aprovada uma comunicação intitulada "eEurope - uma Sociedade da Informação para todos", depois adoptada como plano de acção na Cimeira da Feira em Junho de 2000 e apresentada como um dos pilares da "estratégia de Lisboa" para a próxima década. Este Plano de Acção eEuropa 2002 "Uma sociedade de informação para todos" [http://europa.eu.int/information_society/eeurope/action_plan/pdf/
actionplan_en.pdf], enfatiza a oferta de Internet mais rápida, barata e segura, a formação e a qualificação, e a promoção da sua utilização. O Plano de Acção eEuropa 2005, aprovado no Conselho de Sevilha em Junho de 2002 [http://europa.eu.int/information_society/eeurope/news_library/documents/
eeurope2005/eeurope2005_pt.pdf], faz um balanço desse plano e aprofunda-o no que toca a infra-estruturas necessárias, monitorização da sua execução, coordenação de políticas e alargamento dos seus objectivos; "eGovernment", "eLearning", "eCommerce", "eHealth", etc. são termos que se insinuam na política que pretende levar as TIC a toda a parte, para todos os fins e, tanto quanto possível, a toda a gente. A difusão massiva das TIC na Escola oferece oportunidades e riscos e coloca questões pedagógicas cujo desfecho é ainda incerto; mais certo é alargar entre os jovens o domínio de certas competências básicas, ao mesmo tempo que induz padrões não só de trabalho mas mais geralmente de comportamento e de consumo entre esses jovens e nos respectivos lares.
A reforma do Ensino Superior na União Europeia e o Processo de Bolonha
Em Lisboa, em Abril de 1997, o Conselho da Europa e a UNESCO promoveram uma convenção conjunta em que foi adoptado o texto de uma Convenção sobre o reconhecimento de qualificações relativas ao Ensino Superior (de acesso e de graduação) na Região Europa. No ano seguinte (Setembro 1998) e já no âmbito da União Europeia, o Conselho de Ministros adoptou uma Recomendação (Nº 561/98) para a cooperação na garantia de qualidade no Ensino Superior. Entretanto, a Declaração da Sorbonne (Maio 1998), da iniciativa da França, Alemanha e Itália, havia já antecipado a criação de uma Área Europeia de Ensino Superior, proposta que foi depois reformulada e retomada na Declaração de Bolonha subscrita em Junho de 1999 pelos Ministros da Educação da União Europeia [www.ntb.ch/SEFI/bologna-dec.html], e culminou com a Declaração de Praga em Maio de 2001 (subscrita já pelos países da futura União Europeia alargada) [www.ntb.ch/SEFI/milestones/Prague_Comm_engl.pdf].
Em conferência plenária, na referida Conferência da EAIA, Guy Haug caracterizou a situação do ensino superior na Europa e expôs o projecto do processo de Bolonha (assinado alguns meses antes, a 19 de Junho de 1999) [Guy Haug, Keynote address, "Visions of a European Future: Bologna and Beyond", www.eaie.nl/about/comments/speech.html]. Com o propósito de contextualizar este processo, enunciou então as principais mudanças em que esse processo se inseriria; procurando desconvolucionar o seu discurso, procuramos também resumi-lo: i) a emergência de um "real" mercado de trabalho europeu e a contradição entre elevadas taxas de desemprego de licenciados e a carência de jovens altamente qualificados em domínios chave; ii) o fim da forte expansão quantitativa nas universidades e a expectativa de aceleração da competição entre elas, nomeadamente através da diversificação das suas ofertas; iii) a emergência de novos "fornecedores" de ensino superior, muitos dos quais estrangeiros, que entrarão em competição se o suporte ao crescimento do ingresso no ensino superior for posto em causa; a "responsabilização" das universidades pela sua aplicação do financiamento público na perspectiva de este ser reduzido. Nesse enunciado encontramos causas e efeitos misturados; toma-se a observação do processo já em curso para justificar e fixar objectivos para o seu prosseguimento. Noutros contextos técnico-políticos o termo utilizado para descrever o processo de Bolonha seria o cenário "business as usual". E este é: i) renuncia à ideia de ensino público como bem social e sua substituição pela ideia de atribuição prioritariamente económica ao ensino superior; ii) redução da responsabilidade do Estado na oferta de ensino público; iii) promoção da privatização, internacionalização e mercantilização progressiva do ensino superior.
O processo de Bolonha, tem sido, como se verifica, um processo com diversificados interventores e com geometria variável, mas o seu sentido prossegue com aparente segurança. Para melhor compreensão, ele deve ser enquadrado num processo mais vasto que abarca todas as actividades de ensino e formação no seio da Europa e igualmente à escala mundial, pois que na realidade tem a ver com a presente fase de desenvolvimento do sistema capitalista imperial. A mudança de ênfase do Ensino para a Aprendizagem; da Educação para a Formação; a "nova" aprendizagem ao longo da vida; e a diversificação de modalidades de aprendizagem que se pretende sejam "certificadas", são mudanças que têm acelerado na última década. Não seria essencial introduzir novos termos, mas novos termos facilitam a introdução de novas políticas. É subtil, mas perigosamente eficaz: a sociedade deixa de ter o dever de educar e ensinar os jovens e os adultos; são estes que têm o dever de obter (se puderem) aprendizagem; o termo "direito" esvanece-se.
Os conceitos "sociedade do conhecimento" e "sociedade da informação", surgidos em meados da década de 1990, foram igualmente operativos para avançar "novas" políticas: "sociedade" passa a ser o que nessas definições se sugere, pretendendo fazer desaparecer para o fundo do palco o que se não diz mas se quer atingir, a relação de trabalho e o seu conteúdo. Tal sociedade seria então a produção e a aquisição de conhecimento, até mesmo a sua comercialização. A tónica aparece nos conteúdos, nos meios e em várias políticas governamentais convenientemente orquestradas. Os poderes económicos não precisam expor-se, embora sejam eles quem fornece (com vastos lucros) as infra-estruturas materiais e quem extrai (não se falando mais em emprego) as mais valias do trabalho. Os objectivos sociais reduzem-se à disponibilidade quantitativa e qualitativa de força de trabalho, com suas elites e seu exército flexível de trabalhadores precários.
Também a generalização do velho conceito de ensino à distância, apoiado agora na integração massiva das TIC (tecnologias da informação e comunicação) no processo ensino-aprendizagem, em particular na expansão avassaladora do "eLearning" através na Internet, eis mais inovações metodológicas (de base técnica) que facilitam, flexibilizam e fragmentam esse proposto novo tipo de relação professor-aluno mediada por produtos de ensino e de aprendizagem transaccionáveis à volta do mundo.
O processo de Bolonha surge com potencialidades bivalentes. A fragmentação do ensino e da aprendizagem em "produtos" sujeitos a reintegração em termos normalizados; a tendencial despersonalização do processo ensino-aprendizagem, por força de um novo contexto convivencial viabilizado (não imposto) pelas TIC; a consequente desmaterialização de (algum) conhecimento (contingência que não necessidade) da inacessibilidade de suportes materiais concretos. Estas são evidentes ameaças que o processo de Bolonha poderá viabilizar e provavelmente determinará um pouco por todo o mundo.
A reforma do Ensino Superior em Portugal
Em Portugal, o CRUP manifestou a sua adesão à declaração de Bolonha em Abril de 2001 e o mesmo fez o CNAVES em Fevereiro de 2002. A adesão ao processo de Bolonha tem sido lenta, pouco convicta e acrítica. Como exemplo, segundo o CNAVES [Parecer n.º 5/2002, Diário da República II série, 25 Março 2002, 71:5682-3] "Os objectivos de transparência, comparabilidade, mobilidade, empregabilidade e competitividade dos ensinos superiores são de uma pertinência que dispensa justificação". Para tal contribuirá a debilidade do governo em política educativa; como também o insuficiente conhecimento e a desconfiança da maioria dos agentes de ensino (instituições, docentes e estudantes), face a um processo aparentemente alheio e pré-determinado no seu desenlace. De facto, a sociedade portuguesa, aprisionada pelas grandes opções do grande capital, pela integração europeia, pela desintegração sócio-económica, não dispõe actualmente de um projecto nacional consonante com o seu projecto constitucional, para o qual se mobilize.
Corresponde a uma significativa corrente de opinião e a uma parte substantiva da presente realidade, a análise explanada por Luís Vicente [Sorbonne, Bolonha, Praga…Notas para uma leitura crítica, Vértice n.º 112, Julho-Agosto 2003]. O autor defende duas teses: as declarações da Sorbonne, Bolonha e Praga visam condicionar o ensino superior aos interesses do capital financeiro e visam a privatização do ensino superior público. Ao enquadrar essa explicação afirma: "…para a burguesia o Estado tem sido uma necessidade imperativa. É-o, em primeiro lugar, enquanto instrumento de repressão. É-o, em segundo lugar, enquanto detentor de sectores que, apesar de não rentáveis, são fundamentais à própria dinâmica da economia capitalista (...) E, enfim, é-o em terceiro lugar porque, nesta perspectiva, o Estado é tutelado politicamente por um governo que, geralmente, não passa de um comité de negócios dos homens da finança." Ao concluir a análise afirma: "…é necessário reconhecer que há hoje no mundo uma luta titânica para orientar a economia de acordo com prioridades de grupos minoritários. Contudo, existe também uma enorme pressão para colocar e desenvolver formações económicas que respondam com acerto ao interesse da maioria do povo. Portanto, no ensino essa tensão está presente de forma palpável (…) A expropriação capitalista do ensino público, seria realmente uma mudança num certo "status quo", mas com um sentido retrógrado. O que se pretende é, de facto, uma profunda reconfiguração do ensino público português que habilite os estudantes a serem criadores de um país avançado, consciente, democrático (…) O futuro do ensino não está, portanto, pré-determinado como possa, à primeira vista, parecer…"
Em Portugal, a actual proposta de lei que "estabelece as bases do financiamento do ensino superior", pelo governo submetida à Assembleia da República em Julho de 2003, na respectiva exposição de motivos afirma-se claramente: "Reconhecendo-se que a expansão do Ensino Superior atingiu o seu limite (…) na presente proposta de lei precisam-se os critérios de financiamento público das actividades dos estabelecimentos de ensino não público". Acresce que a proposta é notoriamente omissa em relação a outras missões cometidas aos estabelecimentos de ensino superior, para além do ensino de "primeiro ciclo" ou seja de licenciatura; ciclos de pós-graduação, investigação científica, extensão e cultura, foram omitidos embora sejam também importantes na generalidade das Faculdades e Escolas Superiores públicas. É notoriamente omissa também, em relação a novas metodologias e modalidades de ensino, como é notoriamente o caso do ensino à distância, ensino pós-secundário, acções de formação contínua, etc.
E a actual proposta de lei da "autonomia do ensino superior" afirma que o Estado garante o direito de criação de estabelecimentos privados e considera o "…regime de autonomia dos estabelecimentos de ensino superior detidos por entidades instituidoras particulares e cooperativas…", mas depois argumenta "…o direito de propriedade privada e o de direcção de meios de produção." Primeiro, o exercício do ensino privado é salvaguardado como exercício do direito fundamental da liberdade de ensino, conquanto em relação ao ensino público esse direito e essa liberdade não sejam afirmados. Na realidade, à luz da Constituição da república, o ensino público é um direito universal e tendencialmente gratuito, enquanto o ensino de iniciativa privada é uma liberdade. Segundo, onde se exigiria política educativa surge política económica, e em lugar da salvaguarda de garantias, direitos e liberdades fundamentais, em que o acesso universal a todos os graus de ensino se inscreve, aparece antes a subordinação de uma função social do Estado a interesses privados e liberalidade do Governo perante a privatização de bens e serviços públicos.
A proposta é tão generosa face aos interesses privados, que chega ao ponto de admitir que o registo de estatutos dos estabelecimentos superiores privados possa acontecer por deferimento tácito. Bem como que o ensino superior privado "possa" combinar actividades de docência com investigação, forma ínvia de admitir que os respectivos estabelecimentos possam não ter outras actividades que não a estrita transmissão de conhecimentos e de ideias, meros intermediadores portanto, embora com estatuto formalmente comparável a uma verdadeira universidade pública. E se é certo que afirma estar o ensino superior privado sujeito à fiscalização do Governo, omite pronunciar-se sobre meios e fins e referências explícitas à sua avaliação, comparabilidade e certificação dos ensinos.
Deveremos concluir que o actual "pacote legislativo" com que o governo português pretende reformar o ensino superior procura muito claramente abrir caminho ao cumprimento das grandes linhas da reforma educativa ditada pelo grande capital: desregulamentação, privatização, mercantilização, transnacionalização, etc., tendo em vista reconfigurar a força de trabalho com sua elite e seu exército flexível de trabalhadores precários, bem como rentabilizar em lucros privados um importantíssimo sector de actividade.
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