À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

13/05/2009

Trabalho Científico, Capital e Ética em Confronto

Rui Namorado Rosa

Na cimeira de Lisboa de Março de 2000, a EU anunciou uma estratégia que, baseada no conhecimento, tornaria a EU na mais competitiva e dinâmica economia do mundo até ao ano 2010. Dir-se-ia que se encenava uma competição transatlântica mas não era assim. O que de facto se propunha era a agenda das corporações transnacionais para uma nova, mas já velha, ordem mundial. A Ciência e a Tecnologia e a qualificação avançada da força de trabalho eram chamadas a sustentar essa estratégia. O que todavia não era em nome nem do bem comum dos trabalhadores europeus nem das nações do mundo. Era tão só mais um e ousado passo em frente no cumprimento dos objectivos da agenda do capital transnacional.

Mas a realidade é de facto dramaticamente preocupante. Na era da revolução científica e técnica, os trabalhadores científicos são já um estrato social proletarizado, e a Educação e a Investigação são objectivos sociais sacrificadas aos objectivos imediatos do capital. Esta é uma contradição fundamental do sistema capitalista, que pela sua dinâmica interna destrói e exaure os recursos intelectuais com os quais construiu o seu presente império, e que lhe seriam agora imprescindíveis para a sua própria reprodução.

Ciência e Tecnologia na Agenda do Capital Transnacional

As associações empresariais promovem activamente os seus interesses na União Europeia. Enquanto na década de 1990 o poder de decisão se localizava nas associações nacionais dos estados membros, actualmente, as grandes corporações transnacionais ganharam maior influência. Esta transformação não é geralmente perceptível mas deve ser evidenciada como um sintoma da globalização do capital, mediante o acrescido poderio das corporações transnacionais. Mesmo as associações empresariais de âmbito europeu estão sendo ultrapassadas em influência política por estas grandes multinacionais.

Desde a constituição da ERT - Mesa Redonda de Empresários Europeus - em 1983, do comité europeu da Câmara Americana de Comércio - AmCham - em 1985 e a inauguração do Diálogo Transatlântico de Negócios - TABD - em 1995, todas elas consistindo em parcerias directas de corporações e não em federações de associações nacionais, as novas organizações vieram a exercer influência progressivamente maior em Bruxelas como activas procuradoras das corporações que representam. As duas últimas representam ou incluem também multinacionais sedeadas nos EUA e testemunham a crescente inter-penetração do investimento de capital através do Atlântico.

Este processo reflecte uma tendência mais geral em que autoridades regulamentadoras supranacionais, como a Comissão Europeia, em cooperação cada vez mais estreita com as corporações transnacionais, actuam solidariamente no sentido de debilitarem a acção regulamentadora dos governos nacionais e de permitirem as corporações regulamentarem-se a si próprias. Esta estratégia é veiculada por governantes, funcionários e tecnocratas dos dois lados do Atlântico que procuram lavar o cérebro da opinião pública com sua retórica neo-liberal, assumida ou sub-reptícia, categórica ou dissimulada, construída sobre neologismos tais como: "responsabilidade social das empresas", "sociedade civil" e "stakeholders", com "diálogo" à mistura.

Contabilizemos os grupos de pressão que actuam junto da Comissão Europeia. Existem cerca de 20 mil grupos de interesse, incluindo todas as associações nacionais e as organizações europeias de associação directa, que participam na vida política da UE. Porém é claro que dois terços desses grupos representam interesses do mundo do negócio. Contabilizemos de outro modo: cerca de 10 mil agentes de interesses ("lobbyists") trabalham em associações comerciais da UE a nível da União e mais vários milhares trabalham para associações nacionais ou para corporações que mantêm os seus próprios escritórios e agentes em Bruxelas. A soma final ascende a cinco agentes de negócios por cada funcionário da Comissão Europeia. Pelo contrário, se contabilizarmos os agentes de interesses públicos, a proporção é próxima de um para um.

Ligações próximas entre o mundo universitário e o mundo do negócio também se encontram na comunidade de agentes de interesses em Bruxelas. As associações empresariais que actuam em cooperação próxima com a Comissão Europeia fazem bom uso de universitários cuja investigação é financiada por corporações, ou que se movem de uma universidade para uma administração, ou que são contratados como consultores ou agentes de interesses de associações empresariais. Alguns académicos estão satisfeitos com terem a sua consultoria ou investigação financiadas à custa de interesses empresariais, mas muitos são a tal obrigados por não obterem fontes de financiamento alternativas. Em suma, a situação descrita sugere que os universitários envolvidos nas referidas redes informais universidade-empresa exercem de facto uma função chave de articulação e de legitimação em nome do grande capital.

O processo de globalização reforçou o poder das corporações transnacionais quer sobre os governos quer sobre os interesses sócio-económicos em geral e os sindicais em particular. A influência dos grupos empresariais europeus e transatlânticos está em evidente confronto e em franco conflito com os interesses do mundo do trabalho e outros interesses sociais. E todavia atingiram essa influência com o apoio dos governos nacionais, contra o desejo ou mesmo o conhecimento dos respectivos cidadãos. Um bom número de trabalhadores científicos, ou de livre vontade ou contrariados, contribuíram e foram cúmplices nisso.

As Corporações Transnacionais Cuidam da sua Reputação

Agora que a "responsabilidade social das empresas" faz parte do discurso oficial e se vai instituindo em ordem económico-política, é necessário que elas velem pela respectiva "reputação empresarial". Tradicionalmente, as organizações cívicas ocupam-se com problemas do trabalho, de direitos cívicos, do ambiente ou das actividades económicas e têm denunciado abusos cometidos por diversas corporações, desse modo questionando a reputação dessas empresas. Contudo, actualmente essas mesmas empresas procuram ou tiram proveito de tais organizações para as ajudarem a recompor as suas imagens. A "gestão da reputação" tornou-se ultimamente num componente importante do negócio; frequentemente trata-se de mera actividade de relações públicas que pouco tem a ver com responsabilidade social.

Reputação é um conceito que comporta confiança, credibilidade, responsabilidade e transparência. Mas essencialmente localiza-se no plano das percepções, tal como a imagem pública, pois que a maioria das pessoas fora do círculo da administração de uma empresa, incluindo os seus trabalhadores, não tem acesso a informação certa e completa. As empresas valorizam o seu "capital de reputação". Empresas com melhor reputação tendem a demonstrar melhor desempenho em termos económicos, como seja na retribuição do capital accionista ou no valor financeiro dos seus títulos.

No passado, as empresas adquiriam boa reputação perante a comunidade mediante acções filantrópicas e publicidade baseada em "boas causas". Actualmente, tendem a demonstrar a sua responsabilidade segundo vagos "códigos de conduta" que elas mesmas negociaram com organizações internacionais, procuram ser lisonjeadas por ONG, e formam coligações com organizações acreditadas, nomeadamente de âmbito ambiental, laboral ou de direitos humanos, para por essa via ganharem credibilidade. Uma forma de manifestarem empenho pelos direitos humanos ou pelo ambiente, ainda que estes não lhes mereçam a atenção bastante para alterarem as práticas empresariais, é fazer donativos a grupos ambientalistas ou patrocinar projectos sociais.

James Harris, membro do Sierra Club's National Public Affairs Advisory Committee, exprime a ideia muito explicitamente (1992): "Para os grupos ambientalistas, trabalhar com corporações assegura uma fonte de financiamento e a oportunidade de influenciar o seu comportamento. Para as corporações, os grupos ambientalistas oferecem a possibilidade de veicular publicidade favorável e ganhar acesso aos seus filiados, que tendem a ser mais instruídos e mais bem instalados que o público em geral. Estes grupos também fornecem credibilidade que pode ser particularmente valiosa… Em coligações políticas, os grupos ambientalistas constituem uma guarnição substancial, com as suas filiações numerosas e experiência em fazer campanha."

Quer o clima esteja a alterar-se ou não, se as emissões de dióxido de carbono são ou não a sua causa, é incerto, mas o problema científico foi tomado como um assunto político e tornou-se instrumental na conformação da opinião pública e na reconfiguração das políticas energéticas. Global Climate Coalition era um grupo empresarial que argumentava contra a eventualidade de as emissões de carbono poderem estar a causar um aquecimento global do nosso planeta. Não obstante serem membros dessa coligação empresarial e serem notoriamente negligentes em matéria ambiental em vários países em que operam, as grandes transnacionais petrolíferas BP e Shell conseguem ganhar a reputação de serem progressistas em matéria ambiental.

Um passo nesse sentido foi terem abandonado a dita Coligação, antes da conferência de Quioto em 1997, e admitirem que o aquecimento global é matéria para preocupação. Terem abandonado a Coligação ajudou a proteger as suas reputações. Desde então muitas outras empresas a abandonaram com iguais propósitos, de modo que esta coligação teve de se reestruturar e transformou-se numa coligação de associações empresariais em vez de empresas individuais. Com este truque, as corporações continuam a suportar a Global Climate Coalition através das suas associações, sem aparecerem abertamente associadas com ela.

Por um lado, a BP e a Shell deixaram a Coligação, embrenharam-se em actividades relativas a fontes renováveis de energia e exibem uma imagem de grande empenho em tecnologias limpas, protecção ambiental e prevenção de alteração climática. Porém, por outro lado, mantêm-se activamente comprometidas com a agenda do grande capital na criação de novas e aliciantes "oportunidades de negócio" justamente baseadas nas emissões de carbono. Sob a designação de "mecanismos de flexibilização", várias oportunidades económicas e financeiras estão a ser promovidas como necessárias para que os países mais industrializados atinjam as metas de redução de emissões por eles mesmos acordadas no Protocolo de Quioto. Estes mecanismos de flexibilização têm em vista promover o investimento estrangeiro em "economias em transição" (entenda-se no Leste da Europa) e em "países em desenvolvimento", com o apoio do Banco Mundial, e ainda criar um novo mercado financeiro, baseado no comércio de autorizações ou direitos de emissão, que serão atribuídos às empresas. Estes títulos de emissão serão instrumentos úteis para "justificar" a colecta adicional de mais taxas sobre a energia aos consumidores e, bem assim, para canalizar um fresco manancial financeiro para as perturbadas bolsas de valores mobiliários.

Ao saírem do campo dos que negavam o aquecimento global, a BP e a Shell ganharam espaço de manobra para se tornarem partes activas na definição das políticas que conduzem, se não à implementação do Protocolo de Quioto, certamente ao negócio dos títulos de emissão na União Europeia, uma posição que não poderiam sustentar se negassem a ameaça do aquecimento global, e neste processo se "vestiram de verde" também. Não lhes basta serem "apenas" duas das quatro maiores transnacionais petrolíferas, cujo principal e fabuloso negócio é o petróleo. Inteligentes como são, descobriram que ainda mais proveito tiravam em assustar, por um lado, e em colher as receitas do susto, por outro. Sempre a vender petróleo.

Propriedade Intelectual ou Apropriação do Conhecimento

A finalidade do registo de patentes transformou-se por completo desde que pela primeira vez foi concebido para o bem comum e como incentivo aos inventores. Gradualmente tornou-se objecto de apropriação pelas empresas das criações de inventores, investigadores e tecnólogos, mais um valor patrimonial das corporações e um produto comerciável. A propriedade intelectual que pode ser vendida ou cedida sob licença a terceiros é património real ou potencial que pode gerar receitas aliciantes. Em certos sectores industriais, como sejam biotecnologia, produtos farmacêuticos ou telecomunicações, o licenciamento de propriedade intelectual tornou-se numa preocupação corrente.

Gabinetes de patentes abrem por todo o lado, a UE está a instalar um Escritório Europeu de Patentes a nível da União e o registo e o comércio de direitos de propriedade intelectual tornou-se em negócio graúdo. O mais importante não é o conteúdo, a sua originalidade e a sua viabilidade técnica e comercial, não, o que importa sobretudo é possuir um título de registo que possa ser objecto de negócio.

Uma empresa que possua uma carteira de pelo menos 450 patentes e despenda em Investigação e Desenvolvimento (I&D) pelo menos US$ 50 milhões por ano - e há nos EUA e na UE várias centenas de corporações que ultrapassam estas metas - detêm propriedade intelectual suficiente para dela fazer uma boa linha de negócio - por exemplo transaccionando 10% da carteira de patentes para gerar outros 10% das suas receitas de operação, com reduzido investimento de capital.

Depois de identificados os títulos comerciáveis e avaliado o seu potencial valor, uma rede de parceiros ou agentes (intellectual-property brokers, consolidators, business builders) entra em acção e reúne esforços no sentido de concretizar negócios de licenciamento de direitos e de troca de activos com outras empresas. Os brockers baseiam-se na avaliação tecnológica para ajuizar quanto um comprador estará provavelmente disposto a pagar por um título e depois procuram identificar clientes. Os consolidators seleccionam e adquirem propriedade intelectual de várias origens e reúnem-na em "pacotes" que possam ser utilizados no lançamento de novas empresas ou então vendidos a clientes estratégicos. Trata-se de um nicho de negócios, em crescimento acelerado, ocupado por pequenas empresas cujo volume de receitas anuais atingiu já o nível de US$ 100 mil milhões nos EUA.

Empresas de sucesso adoptam programas de propriedade intelectual, a par da I&D realizada intramuros e de fusões e aquisições de activos. Explorar intensamente a propriedade intelectual é certamente difícil e exige especialização científica em profundidade e extensão, de que a maioria das empresas não dispõe internamente e poderá não ter meios para adquirir no exterior. Esta é uma promissora oportunidade emergente para as grandes corporações e as pequenas firmas especializadas partilharem.

O negócio de direitos de propriedade intelectual é pois uma matéria importante para as grandes corporações porque adquiriu um peso significativo e crescente entre as várias fontes de receita. Vejamos o que a ERT dizia, recordando que as suas opiniões são ordens para a Comissão Europeia: "Os principais dos maiores obstáculos no percurso que conduz da invenção à inovação são a burocracia e os sistemas administrativos que mostram completa insensibilidade para com as necessidades da I&D, em particular no que toca a direitos de autor e ao tempo para a exploração comercial. As patentes são dolorosamente lentas de registar e imensamente caras em traduzir e manter. Uma grande transnacional europeia, com mais de mil pedidos de patente por ano, estima que só os custos anuais de tradução ascendem a Euro 20-30 milhões. Um Mercado Comum na verdadeira acepção deve ter uma patente europeia única e funcional". As grandes corporações nunca estão satisfeitas com os seus ganhos e as suas despesas são sempre supérfluas.

Mas é verdade que, em termos de desempenho tecnológico global, durante a última década o peso relativo da Europa no pedido de registo de patentes no Escritório Europeu de Patentes (EPO) e na atribuição de patentes no Escritório Norte-americano de Patentes e Marcas (USPTO) declinou. E essa situação é pior no que toca a patentes em tecnologias de ponta. Mas o que estes factos reflectem é, sobretudo, a circunstância que, globalmente, a UE despende bastante menos em I&D (1,94% do PIB em 2000) do que os EUA (2,80%) e o Japão (2,98%). Acresce que o "lapso de investimento" se tem alargado e rapidamente desde meados da década de 1990, principalmente em resultado da reduzida contribuição das empresas, que na Europa representam pouco mais de metade das fontes de financiamento da I&D, em contraste com mais de dois terços quer nos EUA quer no Japão. Quer dizer: não só as grandes corporações nunca estão satisfeitas com os seus ganhos, como encontram sempre em terceiros as "culpas" para o seu menor desempenho.

E assim, a propósito de propriedade intelectual, constatamos como trabalhadores científicos podem ganhar a sua vida a extrair maiores rendimentos para os proprietários das corporações, a partir da exploração dos resultados científicos e técnicos que os seus colegas de ofício alcançaram algures. Uma vez mais se constata como a propriedade privada coloca o homem em confronto com o homem.

Ética e Responsabilidade Social

Abunda a invocação de direitos sobre o "conhecimento" na agora denominada "Nova Economia do Conhecimento". Médicos afirmam "possuir" procedimentos médicos que anteriormente eram partilhados entre colegas. Companhias de software afirmam o monopólio sobre blocos constituintes de códigos de programação. Companhias farmacêuticas reclamam direitos exclusivos sobre produtos químicos extraídos de plantas, insectos e microorganismos. A cartografia do genoma humano realizado através do "human genome project", uma parte do código já cartografado, é "propriedade privada".

Estes desenvolvimentos comprovam que não há qualquer propósito cívico na dita "Economia do Conhecimento" que regule a difusão de informação e o acesso ao conhecimento e às suas aplicações, pelo contrário. O objectivo tornou-se puro lucro a cada vez mais breve prazo.

Afirmações de propriedade privada sobre largos territórios do conhecimento - ou mera informação - proliferam agora porque em todos os domínios de alta tecnologia - na medicina, na biotecnologia, nas indústrias agro-alimentar, de informação e de software - os activos das corporações em "conhecimento" sobem em preço em comparação com activos e recursos mais tradicionais. Testemunhamos uma transição profunda para uma nova era em que activos baseados em "conhecimento" parecem desempenhar um papel de estímulo ao "crescimento económico". Porém esse papel é parte real e parte virtual, e como tal está sujeito ao jogo especulativo, principalmente quando, como agora, o capital económico produtivo é comandado por um mercado de capital financeiro - a "Nova Economia".

A agressividade da actual corrida em direcção ao patenteamento sem fronteiras evidencia-se superlativamente na alienação pelo melhor preço de activos anteriormente pertencentes ao domínio público. Por esta via se alienam instituições públicas e património comum a favor da expansão da propriedade privada em até agora domínios públicos. Esta erosão dos direitos comuns ameaça sobretudo os países em desenvolvimento, onde reside a maior parcela tanto de população como de recursos naturais. E ameaça também o próprio edifício da democracia tal como hoje existe, o exercício de direitos políticos e a equidade no acesso a bens económicos.

Com a revolução científica e técnica em curso, a relação entre as garantias e os direitos democráticos conquistados e a formação social e o modo de produção capitalista é crescentemente contraditória.

A "era da informação" aparece à cabeça das notícias na comunicação social e das discussões em círculos académicos. Porém, por detrás desta maciça transformação tecnológica em recursos de informação e em computadores e telecomunicações, uma revolução mais poderosa e subtil vai avançando em Biotecnologia e em Nanociência, que em breve poderão alterar o modo como encaramos a vida, nós próprios e a nossa relação com a natureza e a humanidade.

Todavia, as patentes oferecem à indústria enormes incentivos para explorar as aplicações tecnológicas até limites morais e para além deles, e tão de pressa quanto possível. Mas a favor de quem revertem os potenciais benefícios? Quem colherá as receitas geradas pela reprodução do capital? Que papel activo será comandado pelos trabalhadores científicos que fazem as descobertas, desenvolvem as tecnologias e contribuem para decidir as respectivas aplicações?

Proclamações de propriedade e secretismo no trabalho de desenvolvimento tecnológico, ambos inibem a franca discussão das matérias científicas e, a médio prazo, são ameaças que erodem o curso do progresso científico geral. Trabalhadores científicos quer publicando as suas pesquisas quer proibidos de o fazer por força de contrato, são expropriados dos frutos do seu trabalho, de um modo ou do outro.

A Vigilância Cívica Face ao Poder Empresarial e seus Cúmplices

A Organização Mundial do Comércio (OMC - WTO) tem sido instrumental na promoção do comércio mundial de produtos e ultimamente de serviços também. Promove a exploração sem limite de recursos laborais e naturais e o alargamento dos mercados de consumo, por toda a parte, e assim desbrava o caminho ao crescimento rápido das corporações transnacionais.

Em Fevereiro de 2003, o movimento europeu contestatário do Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (AGCS - GATS) conquistou uma vitória quando o comissário europeu responsável pelo comércio, Pascal Lamy, anunciou que a Comissão Europeia não faria mais concessões às regras de mercado liberalizado do AGCS nos sectores da saúde e da educação e que nenhum compromisso seria assumido em serviços áudio-visuais em futuras negociações. Essa declaração, feita nas vésperas de uma manifestação de milhares de activistas e sindicalistas em Bruxelas, foi claramente táctica. A propósito da declaração, a CE encontrou oportunidade e forma para divulgar as suas intenções quanto ao prosseguimento da abertura da UE à competição internacional, nos âmbitos postal, ambiente, telecomunicações, distribuição (retalho), transportes e serviços financeiros...

A mais recente (Setembro de 2003) conferência ministerial da OMC em Cancun demonstrou a profunda divisão que existe entre países industrializados do centro do império capitalista e as grandes economias emergentes na sua periferia. Este é um caminho sem regresso, pois que a presente potência hegemónica do sistema político mundial entrou em fase de declínio e a correlação de forças está a mudar a nível mundial. Porém, as corporações transcontinentais mantêm-se ainda no sólido comando da sua crescente influência. Imperialismo não é sinónimo da capitalismo unipolar, mas sim uma fase de desenvolvimento do sistema político capitalista.

Assim é que o AGCS e a OMC não são a fonte dos males que ameaçam com as privatizações e as liberalizações, elas são tão só instrumentos nas mãos dos interesses económicos e políticos por detrás da ofensiva neo-liberal que atingiu a Europa há uns vinte anos atrás e que agora procuram lançar os seus ataques em maior profundidade. A enorme concentração de poder e de meios nas mãos das administrações das corporações transnacionais, conluiadas com governos e organismos internacionais, é que é a real força motora com que nos confrontamos. Elas estão a ganhar rápido controlo sobre uma parcela cada vez maior da economia mundial. Corporações cada vez mais gigantescas emergem de uma vaga de fusões e aquisições em todos os continentes. A que se somam as privatizações, sobre as quais as transnacionais vão tomando o controlo de parte, em rápido crescimento, dos serviços públicos básicos e de outros serviços, por toda a parte.

Na Europa, as corporações transnacionais actuam em íntima cumplicidade com a própria Comissão Europeia. Considerando as políticas da UE em matéria de integração de mercados, legislação para a flexibilização laboral, desregulamentação e privatização de serviços públicos, constata-se o ágil prosseguimento da agenda do capital transnacional na Europa, não obstante as vicissitudes das negociações da OMC e do AGCS.

Escute-se o discurso da ERT sobre Educação: "É necessária uma reforma profunda dos sistemas educativos na Europa. (…) As universidades já não têm o monopólio de difusão do conhecimento. Não podemos deixar toda a iniciativa nas mãos do sector público. A oferta de educação é uma oportunidade de mercado e como tal deve ser tratada. Há hoje muitos mais agentes do ensino superior em jogo. As empresas também têm um papel a desempenhar. Um grande número de empresas gere os seus próprios programas segundo padrões a nível de graduação ou até nível superior, algumas em parceria com universidades, outras por si sós. As qualificações assim obtidas deverão ser reconhecidas através da Europa". Escutamos e entendemos melhor como, desviando a verdade e misturando mentiras, o processo de Bolonha pode servir os ditos interesses empresariais.

E o discurso da ERT a propósito da I&D diz: "Os programas públicos deverão ser utilizados como trampolins para as iniciativas privadas. O Plano de Acção para a Inovação e o Quinto Programa Quadro Europeus são ambos concebidos para estimularem o espírito empreendedor na Europa. O Programa Quadro deve ir para além do desenvolvimento da competitividade de um ciclo interno de fabricantes e dos seus parceiros tradicionais em mercados específicos". Para que se saiba que todo o capital é uma mesma entidade, e que qualquer distinção entre capital nacional e estrangeiro é meramente transitória e secundária.

O que se passa na Europa fica aí retratado nas palavras da influente ERT. Passando das palavras aos actos, o Espaço Europeu da Educação e o Espaço Europeu da Investigação vão-se tornando nesses projectos do grande capital. Estão ou não estão, com sucessos ou reveses, na agenda da OMC e do AGCS; seja como for, não obstante essas vicissitudes, conseguem progredir segundo a direcção fixada. Porque esses projectos são parte da agenda do grande capital transnacional e este trabalha com a íntima cumplicidade da Comissão Europeia e a condescendência ou a traição dos governos europeus.

A Insustentabilidade das Políticas Educativa e de Investigação Científica

O utilitarismo das presentes políticas de Educação e de Investigação Científica serve directamente os interesses do capital e contraria o bem social dos povos europeus. Essas políticas não só alimentam os lucros das corporações a expensas dos padrões de vida das nações. Elas, mais cedo do que mais tarde, não são sustentáveis e conduzem a um colapso económico e social. Pode soar apocalíptico mas poderá tornar-se realidade.

No que respeita à Educação, o desempenho dos sistemas educativos está em degradação há décadas, em consequência dessa política utilitarista e da redução de recursos públicos a ela afectados. Nos EUA, porque o sistema educativo é incapaz de formar os necessários licenciados, a maior parte da força de trabalho afectada à I&D vem do estrangeiro, incluindo a maioria dos estudantes europeus de doutoramento que, após obter o seu grau académico, permanece nesse país. Na Europa observa-se um curso semelhante de políticas e de acontecimentos. A gravidade da situação só é atenuada (também) pelo recurso à emigração, incluindo a "importação de cérebros" oriundos de países populosos da Ásia e da América Latina. A existência de algumas universidades de grande qualidade nos EUA e na UE não altera o essencial desta questão, pois que o real problema está a montante, nos ensinos básico e secundário, também estes tornados incapazes de formar, em qualidade e quantidade, os jovens necessários para o preenchimento das melhores escolas a nível superior.

No que respeita à Investigação Científica e Desenvolvimento Experimental (I&D), o esforço de investigação na UE está focalizado em I&D aplicada num reduzido número de domínios, ditados pelas prioridades dos grupos de interesse empresariais, deixando de fora a investigação básica em geral e outras áreas de I&D aplicada, uma tendência que não é compensada ou reequilibrada pelas políticas nacionais, que seguem o mesmo figurino quase por toda a parte.

A agravar esse quadro, o financiamento da I&D na Europa e nos EUA não tem acompanhado o crescimento do número de trabalhadores científicos, de forma que muitos jovens investigadores não conseguem encontrar trabalho permanente em I&D, não se candidatam a projectos por não terem base institucional que suporte tais candidaturas e vão abandonando a profissão, que anteriormente era encarada numa perspectiva de carreira para a vida. A taxa de desemprego entre trabalhadores científicos doutorados está actualmente entre as mais elevadas nos próprios EUA; de 1981 a 1994 essa taxa triplicou, de 1 para 3%, o que pode parecer pouco mas é muito significativo; e são os investigadores mais jovens que são mais atingidos por esse desemprego. Há uma geração atrás, as colocações em pós-doutoramento eram breves períodos de experiência que virtualmente garantiam um posto de trabalho permanente numa faculdade. Agora, pelo contrário, muitos jovens investigadores passam de pós-doutoramento em pós-doutoramento, como trabalhador migrante da economia de alta tecnologia contemporânea. Os discursos oficiais a favor da flexibilização do trabalho e, em particular, da mobilidade dos estudantes e dos investigadores, não iluminam um novo caminho de futuro; pelo contrário, procuram justificar ou iludir tristes e graves realidade.

A UE forma um maior número de licenciados e doutorados em ciências e tecnologias que os EUA, mas não tem um melhor desempenho por isso. Porque a UE emprega menos investigadores (5,4 por 1000 de população activa, contra 8,7 nos EUA e 9,7 no Japão) e afecta um menor financiamento às actividades de I&D (1,94% do PIB, contra 2,80 nos EUA e 2,98 no Japão), isto é, valoriza menos os seus recursos intelectuais em Ciência e Tecnologia.

A mobilidade de trabalhadores científicos na Europa é sobretudo interna: cerca de 35% de alunos estrangeiros em estudos superiores e 50% de empregados estrangeiros em C&T são oriundos de outros Estados Membros. Regista-se uma significativa "importação de cérebros" através da emigração, e o presente "alargamento a Leste" tem aí uma das suas mais fortes razões motoras. Mas verifica-se também uma exportação, em que a maioria de trabalhadores em C&T que decidem emigrar são atraídos por melhor oferta de oportunidades nos EUA. A fracção de estudantes europeus que obtêm o respectivo doutoramento nos EUA e prefere permanecer lá, subiu de 50% para 75% no decurso da década de 1990.

Em suma, a condição de trabalhador científico na Europa tem-se deteriorado progressivamente durante os últimos trinta anos, tal como no outro lado do Atlântico: prolongamento do tempo necessário até atingir uma colocação estável, se é que alcançada, e decrescimento do nível de remuneração em termos relativos, se não mesmo absolutos. Hoje, a maioria dos jovens recém doutorados trabalham em regime de trabalho tipicamente flexível, remunerados por "bolsas" precárias, à semelhança da maioria dos trabalhadores não qualificados. Em consequência, o número de jovens que procura a C&T como um percurso de estudos e a I&D como uma perspectiva de carreira, está em dramático declínio.

Paradoxalmente, na era da revolução científica e técnica, os trabalhadores científicos são um estrato social proletarizado - à parte os poucos que escolhem ou são escolhidos para venderem o seu trabalho como agentes dos interesses ou promotores da reputação de grandes empresas e suas coligações. Este paradoxo é também uma contradição fundamental do sistema capitalista, que pela sua dinâmica interna destrói e exaure os recursos intelectuais que seriam imprescindíveis para a sua própria reprodução.


(versão em português de uma comunicação apresentada pelo autor no Fórum Social Europeu, em Paris a 14 de Novembro de 2003)

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