À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

05/06/2010

A Coragem dos Doutores

Correia da Fonseca

O País está doente. Terrivelmente anémico nas suas finanças, perigosamente débil na economia. Todos o sabemos, não apenas porque a comunicação social no-lo recorda a toda a hora, mas também porque também a toda a hora a maioria portugueses o sente na difícil luta pelo chamado pão-nosso-de-cada-dia que, bem se sabe, abrange um pouco mais que a carcaça quotidiana. E porque o País está doente e o País somos todos nós, não apenas as belas paisagens que nos encantam e que divulgamos para chamar os turistas, andamos preocupados. Muito. Cada qual decerto à sua maneira.

A preocupação de Mário Crespo, o bem conhecido jornalista da SIC, revela-se de entre outras formas pela frequente chamada aos estúdios da estação de doutos especialistas nas referidas maleitas. Mário Crespo modera mesmo um programa que ostenta o sugestivo título de «Plano Inclinado» Nele participam habitualmente o fiscalista Medina Carreira, o economista Hernâni Lopes e o matemático Nuno Crato. Na passada semana, a emissão não contou com a presença de Nuno Crato, pelo que os múltiplos factores depressivos que caracterizam o programa pareceram mais carregados.

Entenda-se, porém, que as cores nigérrimas que são habituais no «Plano Inclinado» não terão por objectivo afundar os telespectadores no mais profundo desespero, mas sim provocar o choque que os desperte. Também para que aceitem o tratamento que os senhores doutores convidados prescrevem.

O País está doente, e não são apenas os referidos doutores que na TV nos falam da doença e dos seus efeitos. Pelo contrário, notícias do mal que nos aflige chegam-nos diariamente, como aliás seria inevitável dado que uma das tarefas da televisão é precisamente a de nos dar notícia das quotidianas realidades nacionais.

É certo que entre o País e os ecrãs dos nossos televisores se interpõem os critérios jornalísticos, conjunto de sabedorias conducentes a que se dê prioridade absoluta ao futebol e à preparação da «equipa de todos nós» que vai disputar o Mundial. Ainda assim, contudo, vão chegando outras informações. Assim, ainda no passado domingo uma das senhoras que faz a recolha de dádivas para o Banco Alimentar Contra a Fome, cidadã decerto atenta e caritativa, dizia à reportagem da TV que «há muita fome em Portugal» e também que a fome está a alastrar.

É claro que não era uma novidade absoluta: as bandeiras negras que se integraram na manifestação que no sábado desceu a Avenida da Liberdade, em Lisboa, já nos haviam dito o mesmo na sua específica linguagem. Mas talvez o depoimento da senhora do Banco Alimentar tenha parecido mais credível aos que não gostam de manifestações nem dos muitos milhares que nelas se integram.

Ora, convém que voltemos agora aos sábios doutores que habitam o programa de Mário Crespo. Porque eles, sabendo da doença, há muito tempo que em vários tons mas sempre com uma clareza que a alguns parece brutalidade pregam o remédio para o mal: reduzir decidida e substancialmente os salários e outras remunerações dos trabalhadores, cortar nas chamadas prestações sociais e outros apoios que por enquanto ainda vão aliviando um pouco o grau da miséria que grassa nesta boa terra já habitada por perto de dois milhões de pobres formal e burocraticamente reconhecidos como tal.

Nem sequer se pressente que façam ideia da crueldade contida nas medidas que preconizam, que alguma vez tenham pensado nisso, o que aliás se entende porque decerto as suas excelentíssimas famílias estão ao abrigo do risco de privações. Por outro lado, é altamente improvável que, embora apenas no mero plano da metáfora, as suas sentenças lhes façam lembrar aqueles versos do brasileiro Castro Alves que falam do sangue do escravo e da face do algoz.

Quanto ao jornalista Mário Crespo coíbe-se humildemente de formular alguma objecção, reconhecendo sem dúvida a coragem dos doutores seus convidados.

Cheio de razão, é claro: é mesmo preciso ter coragem para receitar dietas a um povo já muito visitado pela fome e por outras penúrias por vezes não menos duras. Coragem, entenda-se, na acepção de «descaramento» que a palavra muitas vezes adquire na linguagem corrente.

http://www.odiario.info/?p=1625

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