Neste texto, Pedro Carvalho, amigo e colaborador de odiario.info, depois de analisar as medidas do PEC e considerar que “a luta dos trabalhadores por melhores salários e em defesa da produção nacional, não é só uma luta pela melhoria das condições de vida e pela criação de empregos, é uma condição sine qua non para a saída da crise e acabar com asfixia da dependência externa nacional, que condicionam a soberania e independência nacional. Não existe saída para a crise sem valorização do trabalho e da produção nacional”, conclui que “o PEC é uma «receita» para a recessão continuada da economia portuguesa, para uma cada vez mais injusta repartição e distribuição do rendimento nacional e para o alastramento da mancha de pobreza. O PEC e os orçamentos que lha dão suporte põem também em causa a coesão do território nacional, agravando as assimetrias regionais, entre o urbano e o rural, entre o interior e o litoral.
O programa de estabilidade e crescimento (PEC) é um instrumento ao serviço de uma estratégia que visa restaurar as condições de rentabilidade dos grandes grupos económicos e financeiros, nacionais e estrangeiros, cujas medidas têm como objectivo central a redução dos custos unitários do trabalho. O PEC é, por isso, um mecanismo para intensificar a exploração do trabalho. Um mecanismo europeu, pois estes programas estão a ser aplicados a todos os países da União Europeia, sobre a égide do Pacto de Estabilidade e Crescimento estabelecido em 1997.
O Pacto de Estabilidade é assim a tradução europeia da resposta emanada pelas organizações centrais do sistema capitalista mundial, à crise de rentabilidade que este atravessa, que tem expressão visível desde os anos 70 do século passado. Resposta corporizada no apelidado Consenso de Washington e os seus quatro pilares: estabilidade dos preços, consolidação orçamental, desregulamentação dos mercados e comércio livre. Mas o Pacto é também um elemento central de suporte do Euro e da política monetária seguida pelo Banco Central Europeu, por isso um elemento central no reforço da integração política da União Europeia, condicionando a política orçamental e fiscal dos Estados aos ditames do grande capital europeu.
O consenso e a crise
O Pacto de Estabilidade e os PECs precisam de ser enquadrados historicamente, no processo de resposta do sistema ao retorno visível da crise nos anos 70. Primeiro, o sistema respondeu de forma clássica, pela destruição de uma massa das forças produtivas, tendo sido o forte aumento do desemprego nos anos 70 e 80 sua principal expressão, criando as condições para retomar o processo de valorização do capital, ou seja, para aumentar a taxa de exploração sobre o trabalho. Depois, criando as condições institucionais e políticas, para incentivar o crédito e a inflação dos activos mobiliários e imobiliários, contrariando artificialmente a crise de rentabilidade do sector produtivo e antecipando o resultado do processo de circulação de capital. O crédito e a inflação dos activos reforça(va)m-se mutuamente.
Nos anos 80, esboça-se assim a cartilha que iria ser aplicada de futuro e sintetizada no principio dos anos 90 no Consenso de Washington. A política monetária, efectuada pelos bancos centrais, passa a ter como objectivo primordial a estabilidade dos preços. O processo desinflacionário que se encetou, visava um objectivo duplo. Primeiro, o de criar as condições necessárias para os credores manterem o valor real do dinheiro que emprestaram(vam) e, com isso, estimular o crédito. Em paralelo, os Bancos Centrais estimulavam e garantiam um mercado de crédito interbancário. Segundo, o de criar as condições para a moderação salarial, estimulando um crescimento dos salários em linha com evolução dos preços (e se possível abaixo) e abaixo do crescimento da produtividade do trabalho, como forma a garantir a transferência dos ganhos de produtividade do trabalho para o patronato. Em síntese, reduzir os custos unitários do trabalho, aumentar a taxa de exploração. A desvalorização dos salários era acompanhada por um crescente acesso dos trabalhadores ao crédito (e progressivo endividamento), o que de facto representa(va) uma dupla exploração, sobre a forma de juros a pagar ao capital financeiro.
O objectivo da consolidação orçamental, suportava o objectivo central de redução dos custos unitários do trabalho, quer por via da compressão da massa salarial dos funcionários públicos, quer por via da desregulamentação do emprego público, com as repercussões que ambas tinham ao nível dos trabalhadores do sector privado (negociações salariais e reformas da legislação laboral). Por outro lado, entregava-se paulatinamente os «mercados» públicos, incluindo funções sociais do Estado, a lógicas de rentabilização privada, a par de um aproveitamento crescente dos sistemas de pensões nacionais e dos impostos de rendimento cobrados aos trabalhadores, para as estratégias de refinanciamento do capital, sobretudo financeiro. O objectivo da desregulamentação dos mercados, implicava por um lado, garantir a «libertina» circulação do capital a nível mundial, por outro e ao nível do mercado de trabalho, garantir o uso o mais eficiente possível para o capital da força de trabalho. O objectivo do comércio livre visava criar as condições para um maior aproveitamento dos mercados, ao mesmo tempo que se punha(põe) em concorrência as forças de trabalho dos diversos países, contribuindo não só para uma redução dos custos unitários de trabalho a nível global.
Esta tem sido a resposta do sistema a crise. O Pacto de Estabilidade, o Euro, a Estratégia Europeia de Emprego e a Estratégia de Lisboa (e agora a Estratégia 2020) são a tradução europeia desta resposta. O Pacto é, por isso, uma opção de classe (uma escolha política), que surtiu os seus efeitos, juntamente com a constituição do Euro. Entre 1998 e 2007, em termos médios anuais os salários reais quase estagnaram em Portugal e na Zona Euro, os custos unitários do trabalho reais reduziram-se e os lucros líquidos cresceram 8 e 6 vezes mais que os salários reais respectivamente (ver Gráfico 1).
Mas apesar da intensificação da exploração do trabalho, a crise permanece e agrava-se. A resposta do sistema foi e tem sido pontuada por crises financeiras, com impactos cada vez mais gravosos e elevada rapidez de contágio a nível internacional. Ciclos de inflação e deflação acelerada de activos, as ditas «bolhas», assentes numa «montanha» de dívida e de capital fictício, com uma crescente transformação de dívida privada em dívida pública em cada episódio de crise. Com o capital a sair cada vez mais concentrado e centralizado, onde o grau de sobre-acumulação de capital sobre todas as formas e de elevação da composição orgânica do capital, continuam a ser uma barreira à continuação do processo de valorização do capital. Este é o ponto em que actualmente nos encontramos, no meio de uma crise sistémica, em que na resposta se agudiza a ofensiva de classe contra o trabalho, pela reversão das conquistas sociais obtidas pela luta dos trabalhadores no pós-segunda guerra mundial.
A estratégia e a exploração
O PEC tem vindo a ser aplicado desde 1997, com os resultados que são conhecidos, em Portugal, na União Europeia e, com outras «roupagens» a nível mundial. Em Portugal, mesmo de outras formas, já tinha sido aplicado, o programa de ajustamento estrutural do FMI ou o processo de convergência nominal encetado no «caminho» para o Euro e que depois foi reforçado com o Pacto de Estabilidade (ver Quadro 1).
Em cada PEC, aplicado pelos sucessivos Governos nacionais desde 1997 (PS/Guterres 1995-2001, PSD/CDS - Durão/Santana/Portas 2001-2005, PS/Sócrates 2005 ao presente), entre procedimentos de défice excessivo impostos por Bruxelas, ao contrário do proclamado objectivo de consolidação orçamental, a verdade é que o défice público tem vindo sempre a aumentar, de -4,3% do PIB em 2001, para -6,1% em 2005 e agora -9,4% em 2009 (15,4 mil milhões de euros). Entre 2001 e 2009, o défice público quase que triplicou em valor e a dívida pública quase duplicou, a par com um crescimento económico quase nulo (0,6%) e uma taxa de desemprego que mais que duplicou (9,6% em 2009). E porquê o défice cresceu? Para mais quando o investimento público no mesmo período reduziu-se a uma média anual superior a 3%, o consumo público desacelerou e o crescimento médio anual da compensação salarial da função pública foi quase nulo, confirmando uma década de perda de poder de compra (teve uma redução média de 0,3% ao ano entre 2005-2009). O défice cresceu devido às operações de «salvamento» orçamental do capital, sobretudo financeiro. Cresceu à conta do custo de inúmeras concessões e parcerias público-privadas e operações de garantia do lucro a privados. Cresceu à conta de mais de 15,6 mil milhões de euros de benefícios fiscais concedidos pelo Estado desde 2005 (já incluindo os previstos no Orçamento Geral de Estado de 2010), dos quais quase 70% dados em sede de IRC e mais de 9 mil milhões de euros só para o off-shore da Madeira. A par, a nossa produção industrial caiu a um ritmo de -1,8% ao ano e o défice da balança corrente aumentou quase 28%. Um país mais dependente e mais endividado.
Mas nos primeiros anos de aplicação de cada PEC, o objectivo de classe foi cumprido. Os lucros líquidos aumentaram (quase 20% em 2004 e quase 28% em 2006 e 2007), com a redução dos custos unitários do trabalho reais e a transferência dos ganhos de produtividade do trabalho para o patronato. Em 2005 e 2007, ocorreu uma das maiores quedas do peso dos salários no produto, quase 2 pontos percentuais, o que é um indicador de um dos maiores aumentos da taxa de exploração em Portugal desde o 25 de Abril.
Depois quando os efeitos acumulados da quebra dos rendimentos do trabalho, do investimento e consumo públicos, potenciam a entrada em (nova) recessão, o Estado intervêm com medidas de «salvamento» que no fundo transformam a dívida privada em dívida pública. O que faz disparar o défice, encetando-se um novo ciclo, um novo PEC, com a exigência de mais e novos sacrifícios aos trabalhadores, aos pensionistas e das camadas mais desfavorecidas da população.
Esta tem sido a estratégia ao serviço dos grandes grupos económicos e financeiros, ao serviço dos credores externos da economia nacional, que se traduziu numa economia com cada vez menor capacidade produtiva (de bens transaccionáveis), com um crescimento quase nulo do produto por habitante e dos salários reais na última década, em divergência com a União Europeia, agravando a sua dependência externa, com um défice da balança corrente superior a 17 mil milhões de euros em 2009 e um consequente crescimento do endividamento das empresas não financeiras (151% do PIB em 2009, ver Gráfico 2), das famílias (99%) e do Estado (77%).
A ruptura necessária
O problema estrutural da economia portuguesa tem a ver com o modelo de desenvolvimento económico seguido, do qual resulta o problema do endividamento externo. O problema é económico, do qual resulta um problema financeiro. Se não houver uma ruptura com o modelo seguido, não existe uma saída sustentável e socialmente justa para crise que o país atravessa.
Desde os anos 70 que as taxas de crescimento da produção industrial têm vindo a desacelerar, tornando-se em média anual negativas desde que aderimos ao Euro. Este processo de desindustrialização, a par da progressiva destruição da nossa agricultura e pescas, traduziram-se num aumento do nosso défice comercial em termos médios de década para década, nomeadamente no que toca a balança de bens (transaccionáveis) (ver Gráfico 3).
A par de uma mistificadora terciarização da nossa economia, potenciou-se também um modelo exportador assente em sectores de baixo valor acrescentado e, por isso, assente em baixos salários. Modelo exportador, com uma forte componente de importação de matérias-primas e outros consumos intermédios, tendo em conta que o valor que acrescentamos a nível nacional se prende apenas com o trabalho. Modelo exportador, assim duplamente dependente da procura externa e sem conexão ou base de apoio no mercado interno nacional. Este modelo conduziu a défices crescentes da balança comercial que tem de ser financiados por via externa (tendo em conta o grau de poupança interna), ou pela venda de activos nacionais ou pelo crescente endividamento. Isto também, porque o modelo assenta numa competição salarial com outras regiões do mundo (nomeadamente a periferia do sistema), promovendo assim a desvalorização progressiva dos salários, sendo o poder de compra mantido artificialmente pelo crescimento do crédito (e consequentemente do endividamento). Endividamento crescente também das empresas não financeiras, entre as dificuldades de tesouraria das PMEs até aos empréstimos obrigacionistas de grandes grupos económicos nacionais para investir no estrangeiro.
Ora, é esta lógica que precisa ser alterada. A saída para crise tem de passar pela valorização dos rendimentos (salários e pensões) e pela aposta clara no aparelho produtivo nacional, o que implica um maior investimento público em infra-estruturas de apoio à produção e distribuição. Ou seja, uma política de dinamização do mercado interno. Política que contribuiria, não só para potenciar o desenvolvimento económico e social endógeno nacional, reduzindo as suas dependências e défices, como para aumentar a receita fiscal e da segurança social, ao mesmo tempo que reduziria a despesa (mais emprego e melhores rendimentos, implica menos transferências sociais). Esta é a ruptura necessária.
A luta dos trabalhadores por melhores salários e em defesa da produção nacional, não é só uma luta pela melhoria das condições de vida e pela criação de empregos, é uma condição sine qua non para a saída da crise e acabar com asfixia da dependência externa nacional, que condicionam a soberania e independência nacional. Não existe saída para a crise sem valorização do trabalho e da produção nacional. O problema é de modelo económico. O PEC é uma «receita» para a recessão continuada da economia portuguesa, para uma cada vez mais injusta repartição e distribuição do rendimento nacional e para o alastramento da mancha de pobreza. O PEC e os orçamentos que lha dão suporte põe também em causa a coesão do território nacional, agravando as assimetrias regionais, entre o urbano e o rural, entre o interior e o litoral. O PEC depaupera os activos do Estado, retira do controlo público alavancas fundamentais para o desenvolvimentos económico nacional e reduz as funções sociais do Estado, nomeadamente a segurança social, a saúde e a educação.
Num momento em que povo português se vê confrontando com a mais grave e violenta ofensiva de classe, após 35 anos de prossecução de políticas de direita protagonizadas pelas mais diversas combinações PS/PSD/CDS, o que está em causa é a reversão de conquistas sociais que são o património de décadas de luta dos trabalhadores portugueses e a descaracterização do regime democrático-constitucional que resultou da Revolução de Abril. Direitos, que caso esta ofensiva se concretizasse, só voltariam a ser conquistados num novo processo revolucionário. É neste quadro, que a consciencialização dos trabalhadores para a estratégia de exploração que PEC consagra para os próximos anos é fundamental, a par da disponibilidade e mobilização para a luta, porque só a luta de massas e o reforço da organização dos trabalhadores poderão derrotar a ofensiva em curso.
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