Todas as infracções de higiene e segurança no trabalho ainda não decididas poderão, a breve trecho, ficar sem qualquer sanção.
A “limpeza” das coimas pode ocorrer se o Tribunal Constitucional (TC) adoptar, como é de prever, a decisão de 28 de Setembro passado, de declarar inconstitucional uma rectificação à lei, aprovada pelo Parlamento em Março passado, para obviar um esquecimento do legislador na revisão da legislação laboral. As consequências do acórdão 490/2009 são unânimes para os juristas contactados pelo PÚBLICO. Para já, aplica-se ao caso apreciado. Mas se o TC apreciar da mesma forma mais dois processos semelhantes, então grande parte dos processos de contra-ordenação ficará sem sanção.
No grupo parlamentar do PS, que forçou a aprovação da rectificação em comissão parlamentar, não se concorda com a decisão do TC, mas ela tem de ser acatada. Dado o risco de um “vazio” generalizado de sanções, “com certeza que o grupo parlamentar irá acautelar essa situação logo que possível”, declarou a deputada socialista Maria José Gambo.
Como é que tudo aconteceu? Parte do problema esteve na pressão política para uma discussão acelerada da revisão do Código do Trabalho. A 17 de Fevereiro passado, entrou em vigor essa revisão. Só que parte do Código ficou por regulamentar e, por isso, a revogação dessas matérias ficou suspensa até haver novos diplomas. Era o caso de 12 matérias, entre as quais as normas de segurança, higiene e saúde no trabalho, trabalho ao domicílio, mapas de quadro de pessoal. “Simplesmente”, lembra uma nota do escritório Sérvulo & Associados – dos juristas José Lobo Moutinho, sócio do escritório, e Pedro Duro –, o artigo da lei que “previa as contra-ordenações aplicáveis sobre aquelas matérias “ficou esquecido pelo legislador, que não o manteve em vigor”. Ou seja, esse esquecimento redundou numa revogação das sanções. A “limpeza” operada criou embaraço quando foi divulgada.
O grupo parlamentar do PS – segundo Maria José Gamboa – decidiu então por unanimidade rectificar a lei aprovada. “A Declaração de Rectificação 21/2009, de 18 de Março”, comenta Maria Glória Leitão, sócia do escritório Cuatro Casas, Gonçalves Pereira & Associados, “veio, tardiamente e de forma atabalhoada, tentar reparar esse evidente esquecimento do legislador. E fê-lo de forma errada”. A rectificação “está reservada à correcção de meros lapsos gramaticais ou ortográficos, ou à desconformidade entre o texto aprovado e o texto publicado”. Não era o caso.
Não sabia o PS disso? Sabia. A acta da comissão parlamentar do Trabalho, que aprovou a rectificação, dá conta das advertências da oposição. E o próprio acórdão do TC baseia-se nessa acta. A então deputada socialista Teresa Morais Sarmento que “deu a cara” pela solução, não quis comentar ao PÚBLICO a decisão do PS, por ser uma questão de “natureza política” e não técnica. Maria José Gamboa, por seu lado, justificou-a por, na altura, “não haver nenhuma dúvida” sobre a sua constitucionalidade. A partir daí, era uma questão de tempo.
O caso apreciado pelo TC foi a primeira acção intentada. O Tribunal do Trabalho do Barreiro considerou “ilegal e inconstitucional” a norma constante da rectificação. E com ela foi “extinto o procedimento contra-ordenacional”. O Ministério Público recorreu. Mas há mais casos à espera. O Tribunal da Relação de Évora, a 5 de Maio passado, e o Tribunal da Relação de Lisboa, a 3 e a 24 de Junho passados, já criticaram a rectificação, recorda Glória Leitão. A consequência está à vista, caso cheguem ao TC. “Uma grande limpeza”, lembra Joaquim Dionísio coordenador da CGTP. Glória Leitão considera tratar-se “de uma situação muito grave”. E explica: “Não existe qualquer sanção para as infracções praticadas entre o momento em que se operou a revogação das anteriores normas cominatórias (17 de Fevereiro) e o momento em que entrem em vigor as novas normas que as substituam”. Mas “também beneficiam da despenalização quaisquer actos praticados antes da revogação”, caso “não tenha sido instaurado processo contra-ordenacional ou, tendo-o, ainda não haja decisão”.
Apesar da despenalização, os mesmos actos podem ser punidos por ter ocorrido um acidente ou mesmo ser criminalizados. E há normas de segurança específicas de certas actividades, que, por isso, não foram abrangidos pelo “incidente legislativo”. Mas a maior consequência será a de não existir sanções para violações das obrigações do empregador em grande parte das questões de higiene e segurança no trabalho, concluem José Lobo Moutinho e Pedro Duro.
Comissão parlamentar não ligou aos alertas
Todos os alertas sobre futuros problemas foram deixados a 3 de Março passado na comissão parlamentar do Trabalho que aprovou a polémica rectificação ao Código do Trabalho, agora considerada inconstitucional. A acta referente aos trabalhos relata os avisos que então foram avançados.
O deputado Adão Silva, do PSD, “assegurou que a situação é muito delicada” e que a rectificação não era solução. “Os erros têm de ser corrigidos de uma forma definitiva, sob pena de a comissão ser vilipendiada nos tribunais”, disse. O mesmo afirmou o deputado Quartin Graça.
O presidente da comissão parlamentar, o socialista Arons de Carvalho, alertou que se a lei não fosse rectificada, a despenalização manter-se-ia. Mas o popular Mota Soares lembrou que “não foi por falta de aviso que aconteceu a situação”. O Governo teve três anos para rever o Código do Trabalho.
Teresa Morais Sarmento, do PS, replicou que outros casos semelhantes tinham sido corrigidos daquela forma. E Adão Silva lembrou que, “por mais voltas que se dê ao artigo 5.º da Lei 74/98”, que regula a formulação dos diplomas, “não há forma de enquadrar a rectificação” e desafiou o Governo a apresentar uma proposta de lei para ser apreciada com a maior brevidade possível pelo plenário”.
Mariana Aiveca, do Bloco, considerou que, “sem desmérito pelas qualidades de jurista” de Teresa Morais Sarmento, o texto não era uma rectificação, mas uma alteração à lei. Jorge Machado, do PCP, concordou. E foi o assunto para votação. Apenas o PS aprovou a rectificação.
Público.pt - 09.10.09
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