À medida que as mercadorias se amontoam nos portos de Banguecoque a Xangai e os trabalhadores são despedidos em números recorde, os cidadãos do Sudeste asiático começam a compreender que, não só estão experimentando um agravamento das suas condições econômicas, como estão também vivendo o fim de uma era.
Durante 40 anos, a vanguarda da economia da região foi a industrialização com vista à exportação (EOI, na sigla em inglês). Taiwan e a Coreia do Sul foram os primeiros a adotar esta estratégia de crescimento, em meados dos anos sessenta, quando o ditador coreano Park Chung-Hee convenceu os empresários do seu país a exportarem, recorrendo, entre outras medidas, ao corte de electricidade das suas fábricas caso se negassem a acatar a ordem.
O êxito da Coreia e de Taiwan convenceu o Banco Mundial de que a EOI era o futuro. A meados dos anos setenta, o então presidente do Banco Mundial, Robert McNamara, consagrou-a como doutrina, manifestando que "em muitos países devem ser desenvolvidos esforços especiais para afastar a sua indústria produtora dos pequenos mercados, associados à substituição de importações, aproximando-a das melhores oportunidades, oferecidas pela promoção das exportações".
A EOI converteu-se num dos pontos-chave do consenso entre o Banco Mundial e os governos do Sudeste asiático. Aperceberam-se ambos que a industrialização com vista à importação só podia prosperar se o poder de compra nacional aumentasse por meio de uma significativa redistribuição dos ganhos e da riqueza, e isso estava fora de questão para as elites da região. Os mercados para a exportação, especialmente o relativamente aberto mercado norte-americano, apresentaram-se como um substituto indolor.
O capital japonês cria uma plataforma de exportação
O Banco Mundial apadrinhou a criação de zonas de processamento de exportações, onde o capital estrangeiro se podia unir a uma mão-de-obra (normalmente feminina) barata. Também apoiou incentivos fiscais para os exportadores e, com menos êxito, promoveu a liberalização do comércio. Não obstante, só em meados dos anos oitenta é que as economias do Sudeste asiático descolaram, e não tanto graças ao Banco Mundial como à agressiva política comercial norte-americana. Em 1985, com o acordo que ficou conhecido como o Acordo Plaza [1], os Estados Unidos forçaram a drástica reavaliação do iene japonês relativamente ao dólar e a outras divisas importantes. Tornando as importações japonesas mais caras para os consumidores norte-americanos, Washington esperava reduzir o seu déficit comercial com Tóquio. Os custos de trabalho no Japão tornaram-se proibitivos, forçando os japoneses a transferirem os trabalhos mais intensivos para zonas de salários baixos, principalmente a China e o Sudeste asiático. Entre 1985 e 1990, pelo menos 15 mil milhões de dólares de investimento direto japonês fluíram para o Sudeste asiático.
A entrada de capital japonês permitiu aos "novos países industrializados" do Sudeste asiático escaparem da restrição de crédito do início dos anos oitenta, provocada pela crise da dívida do Terceiro Mundo, superar a recessão global de meados dos anos oitenta e passar a um processo de rápido crescimento. A centralidade da endaka, ou reavaliação da moeda, refletiu-se na taxa de afluência de investimentos estrangeiros diretos para a formação do grande capital, que se acelerou espetacularmente no final dos anos oitenta e durante a década de noventa na Indonésia, Malásia e Tailândia.
Onde melhor puderam ver-se as dinâmicas do crescimento promovido pelo investimento estrangeiro foi na Tailândia, que recebeu 24 mil milhões de dólares de investimento das nações ricas em capital – Japão, Coreia e Taiwan – em apenas cinco anos, entre 1987 e 1991. Fossem quais fossem as preferências do governo tailandês em matéria de política econômica – protecionista, mercantilista ou pró-mercado – esta enorme quantidade de capital chegado do Sudeste asiático à Tailândia não podia senão fazer disparar o seu rápido crescimento. O mesmo é válido para outras duas nações favorecidas no Nordeste asiático: Malásia e Indonésia.
No entanto, o mais importante não foi a escala do investimento japonês durante um período de cinco anos, foi sobretudo o modo como se fez. O governo japonês e os keiretsu, ou conglomerados, planearam e cooperaram estreitamente nas transferências para instalações fabris no Sudeste asiático. Uma dimensão chave deste plano foi transferir não só para as grandes empresas, como a Toyota ou a Matsushita, mas também para as pequenas e médias empresas, que forneciam os componentes e outros dispositivos para o processo de produção. Outra foi integrar as operações de fabrico complementares, que se espalharam por toda a região, em vários países. O objetivo era criar uma plataforma do Pacífico asiático para reexportar para o Japão e exportar para mercados de países terceiros. Esta foi a política e a planificação industrial em grande escala, gerida em consenso pelo governo japonês e pelas empresas, e levada a cabo pela necessidade de fazer ajustes após o Acordo Plaza. Como afirmou um diplomata japonês com bastante candura, "o Japão está a criar um mercado exclusivamente japonês, no qual as nações do Pacífico asiático estão a ser integradas no chamado sistema keiretsu (bloco financeiro-industrial)."
A China domina o modelo
Se Taiwan e a Coreia foram pioneiras no modelo, e o Sudeste asiático as acompanhou de muito perto, e com êxito, no seu despertar, a China aperfeiçoou a estratégia da industrialização com vista à exportação. Com o seu exército de reserva de mão-de-obra barata sem paralelo em nenhum outro país, a China converteu-se na "fábrica do mundo", conseguindo 50 bilhões de dólares anuais de investimento estrangeiro durante a primeira metade desta década. Para sobreviverem, as empresas multinacionais foram obrigadas a transferir as suas operações de trabalho intensivo para a China, de modo a conseguirem vantagens no que chegou a ser conhecido como "preço chinês", provocando nesse processo uma enorme crise nas forças de trabalho organizado dos países de capitalismo avançado.
Este processo dependia do mercado norte-americano. Enquanto os consumidores norte-americanos esbanjassem o seu dinheiro, as economias do Sudeste asiático podiam continuar a funcionar em pleno rendimento. O baixo índice de poupança das famílias norte-americanas não era obstáculo enquanto o crédito estivesse disponível para qualquer pessoa, e em grande escala. A China e outros países asiáticos não deixaram escapar os bónus do tesouro norte-americano, e emprestaram maciçamente às instituições financeiras norte-americanas, que por sua vez emprestavam aos consumidores e compradores de casas. Mas agora a economia de crédito norte-americano implodiu e, durante muito tempo, não parece que o mercado estadunidense vá gerar a mesma forte dinâmica de procura. Resultado: as economias de exportação asiáticas ficaram isoladas.
A ilusão de independência econômica
Durante vários anos a China foi vista pelas economias menores do Japão e do Sudeste asiático como uma alternativa dinâmica ao mercado norte-americano. A procura chinesa, apesar de tudo, tirou as economias asiáticas, incluindo a da Coreia e do Japão, dos abismos da estagnação e das cinzas da crise financeira asiática da primeira metade desta década. Em 2003, por exemplo, o Japão rompeu com uma década de estagnação, ao deparar com a ânsia chinesa de capital e mercadorias tecnológicas avançadas. As exportações japonesas dispararam para níveis recorde. A China converteu-se, a meio da década, no "impulsionador por excelência do crescimento exportador de Taiwan e Filipinas, e no maior comprador de produtos do Japão, Coreia do Sul, Malásia e Austrália."
Embora a China se apresentasse como um novo impulsionador do crescimento através das exportações, algumas análises ainda consideravam que a possibilidade dum "arranque" da locomotiva norte-americana era uma quimera. Uma investigação dos economistas C.P. Chandrasekhar e Jayati Ghosh, por exemplo, sublinhou que a China estava a importar mercadorias e componentes do Japão, Coreia e países da ASEAN, mas apenas para os colocar como produtos terminados, principalmente para a exportação para os Estados Unidos e a Europa, e não para o mercado nacional. Assim, "se a procura de exportações chinesas pelos Estados Unidos e pela Europa desacelerar, como provavelmente ocorrerá em caso de recessão nos Estados Unidos", afirmavam, "não só afetará a produção industrial chinesa, como também a procura de importações chinesas por parte dos países asiáticos em vias de desenvolvimento."
A queda do principal mercado asiático fez esquecer qualquer possibilidade de "descolamento". A imagem das locomotivas desatreladas – uma parando, a outra avançando aos solavancos por outra via – já não é válida, se é que alguma vez o foi. Além disso, hoje em dia as relações económicas entre os Estados Unidos e o Sudeste asiático fazem lembrar uma cadeia de prisioneiros acorrentados, que ata a China não apenas aos Estados Unidos, mas a uma multidão de economias satélites das anteriores, e todas têm de marchar a um só passo: todas elas estão acorrentadas ao poder de compra da classe média, financiado pela dívida nos Estados Unidos, que caiu a pique.
O crescimento da China caiu para 9% em 2008, quando no ano anterior tinha sido de 11%. O Japão encontra-se agora numa profunda recessão e as suas poderosas indústrias, orientadas para a exportação de bens de consumo, vacilam com a queda das vendas. A Coreia do Sul, de longe a mais resistente das economias asiáticas, viu a sua moeda cair 30% face ao dólar. O crescimento do Sudeste asiático em 2009 será provavelmente metade do de 2008.
Aproxima-se a raiva
O fim repentino da era das exportações vai ter desagradáveis consequências. Nas últimas três décadas, o rápido crescimento reduziu, em muitos países, o número de pessoas que viviam abaixo da linha de pobreza. Em praticamente todos os países, no entanto, a desigualdade de rendimento e de riqueza aumentou, mas a expansão do poder de compra do consumidor evitou que os conflitos sociais chegassem ao limite. Agora que a era do crescimento rápido chegou ao fim, uma crescente pobreza, aliada a enormes desigualdades, será uma combinação explosiva.
Na China, cerca de 20 milhões de trabalhadores ficaram sem trabalho nos últimos meses, sendo muitos obrigados a regressar ao campo, onde dificilmente encontrarão trabalho. As autoridades estão razoavelmente preocupadas pela possibilidade daquilo a que chamam "incidentes de massas", que aumentaram na última década, ficarem fora de controle. Com a válvula de segurança da procura estrangeira para os trabalhadores indonésios e filipinos despedidos, centenas de milhares de trabalhadores estão regressando aos poucos empregos e quintas moribundas. É provável que o sofrimento seja acompanhado de protestos crescentes, como sucedeu no Vietnã, onde as greves estão se estendendo como pólvora. A Coreia, com a sua tradição de protesto de carácter militante de operários e camponeses, é uma bomba-relógio. Mais ainda: é possível que o Sudeste asiático esteja entrando em um período de protestos radicais e revolução social, que aparentemente passou de moda quando a industrialização com vista à exportação se converteu em tendência há três décadas atrás.
Brasil de Fato - 25.06.09
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