1. O programa está no ar. "Pretendemos com este programa esclarecer as vantagens e desvantagens das duas localizações alternativas de este empreendimento público, que ocupará a vasta área de muitos hectares e que custará muito milhões de euros". Os convidados são apresentados, o público mostrado. Mais um grande debate nacional na nossa televisão. Amanhã será o tema de conversa de muitos. Para outros será mais uma "questão nacional" que não tem nada a ver com eles, labutando por uma sobrevivência que é difícil de construir.
Quase todos os argumentos são explanados com eloquência. Justificaram-se os impactos no desenvolvimento económico com a facilidade do que ainda não aconteceu. Salientou-se o número de postos de trabalho a criar e o investimento a fazer. O impacto ambiental foi explanado com todos os detalhes. Foi realçado, pormenorizadamente, o esforço feito pelo governo para encontrar a melhor alternativa, tendo em conta o interesse nacional. Exibiu-se todo o edifício legislativo que agora permite a concretização de tão louvável empreendimento: a iniciativa política garante que o sol continuará a nascer todos os dias. Estudos técnicos isentos e independentes, ao serviço de alguém, mostram com insuspeitáveis números, graciosos gráficos e sólidos argumentos as alternativas e a vantagem da opção escolhida.
Esgrimem-se argumentos, dizem-se picardias, misturam-se sonhos, fé e justificações dignas do ilustre e eloquente Conde de Abranhos, esquecem-se referências, faz-se propaganda e, sobretudo "explica-se aos portugueses".
2. Num espaço de convívio, numa pequena localidade, joga-se às cartas enquanto a televisão vai espalhando som e imagem pela sala para olhos e ouvidos desatentos. O ás de espadas ou as copas são mais importantes, mas as mensagens vagueando pelo espaço não se perdem totalmente, porque as coincidências para além do acaso ocorrem. Aqueles homens e mulheres, instruídos na universidade pragmática da vida, recordam com lucidez:
- Há uns anos atrás quem diria que este empreendimento seria realizado aqui, na nossa terra.
- Quase todos nós tínhamos alguns terrenos naquela região, que então não valiam quase nada.
- Vendemos por meia dúzia de tostões e agora valem um bom dinheiro.
- Na ocasião disseram-nos que era para uma empresa agro-industrial, mas se calhar os gajos já sabiam deste empreendimento. Eles não dão ponto sem nó!
Tudo se tinha passado há três anos, quando uma sociedade de advogados andou a adquirir todos os terrenos daquela região. Foi antes de se falar deste "grande empreendimento", mas quem o decidiu já estava em condições de o decidir. Quase todos os presentes naquele recinto se recordavam perfeitamente.
3. O programa estava a chegar ao fim. Ficaram expostos todos os argumentos, mas nenhum dos presentes se lembrou de esclarecer ou perguntar de quem era a propriedade dos terrenos em cada um dos locais alternativos para o empreendimento.
- Aquele tipo que está ali, na segunda fila, no programa, não foi um que andou por aqui a convencer-nos para vendermos. Dizia que ganhávamos duplamente: com o preço que estavam a pagar pelo terreno e com os postos de trabalho que iriam criar. Afinal eles é que ganharam pau e bola.
- Dessas histórias não falaram eles!
- Como diz o pai do meu amigo, Deus dá a memória conforme a moral.
4. As fraudes são como as bruxas. Não acreditamos nelas, mas que as há, há.
Visão.pt - 21.05.09
Sem comentários:
Enviar um comentário