À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

18/01/2010

Os torcionários

Correia da Fonseca

Primeiro foi, na RTP1, um brevíssimo apontamento de reportagem transmitido quando o Telejornal daquela noite já ia adiantado, porventura já quase totalmente ausente o inicial interesse do telespectador, esgotado após as primeiras notícias e a primeira meia hora. Depois, num outro dia, foi uma reportagem bem mais extensa, mas na RTPN, isto é, só acessível à minoria que recebe televisão por cabo. De onde, presume-se, que poucos se tenham dado adequada conta da informação.

Contudo bem mais importante que a maioria das notícias que recheiam telejornais e afins, de facto tão dramática quanto outros dramas de que nos são dados circunstanciados aspectos: em muitas empresas portuguesas é aplicada a tortura a trabalhadores que se tornaram indesejados pelas respectivas gestões.

Dizê-lo parece um exagero. Não é. Não se trata, é certo, daquele tipo de torturas que sabemos ter sido aplicado no quadro de brutalidades mais primitivas e primárias, com sangue a jorrar e as vítimas a uivarem de dor. Mas há outras formas e, de resto, sabe-se que as práticas torcionárias fizeram grandes progressos nos últimos cem anos, número redondo. Agora, usam-se métodos que não fazem sangue e não deixam marcas visíveis nos corpos.

Mesmo entre nós, a PIDE utilizou largamente a tortura do sono, sem vestígios sanguinolentos, ainda que na maior parte dos casos combinada com modalidades mais tradicionais. Ora, as formas adoptadas nas empresas portuguesas a que a reportagem se referiu, embora tendo o cuidado de não as identificar, são deste género mais recente. Deve ser um sinal claro de modernidade.

Porém, quanto aos métodos concretos a reportagem foi um poucochinho mais explícita.

Desde retirar ao trabalhador (ou trabalhadora, é claro), qualquer tarefa, obrigando-o a manter-se no seu lugar durante todo o tempo do horário sem nada para fazer, ou distribuir-lhe tarefas menoríssimas e inúteis que resultam em humilhação profissional óbvia, até colocar a secretária da vítima virada para uma parede e de costas voltadas para todo o resto durante o dia laboral inteiro, ou ainda, em hipótese mais agressiva, colocar o empregado numa sala vazia de tudo incluindo assentos, há uma gama de «tratos especiais» que algumas empresas aplicam. Com um objectivo: o de pressionar o empregado para que ele peça a demissão, já que em certos casos despedir um trabalhador sem justa causa ainda é oneroso e complicado.

A tudo isto, chama-se, pelos vistos, «assédio moral». Esta designação soft é que nunca foi descoberta pela PIDE, que seguramente teria gostado dela. Se ainda há por aí algum antigo agente com planos para o futuro ou, mais provavelmente, algum seu descendente ou discípulo, bem poderá reflectir que «fica para a outra vez».

A reportagem não explicou se este comportamento empresarial, adoptado por directas instruções de algum patronato ou por inspirada iniciativa de quadros de chefia intermédia, se arrisca a ser reprimido por quem vela pelas condições de trabalho em Portugal, e se expõe quem o pratica a sanções severas. Infelizmente, tenho para mim como provável que se mantenha impune, ao menos por agora.

De qualquer modo, esta denúncia pela TV, relativamente discreta, sugere que está a ser adoptado com certa frequência. Será porventura uma nova etapa na modernização, já há algum tempo em curso, das relações laborais no nosso País, assim se complementando a flexibilização com um estímulo a que poderá chamar-se «flexitortura».

De qualquer modo, parece impor-se que todos saibamos mais sobre o assunto. Isto é: que sejamos esclarecidos pelos serviços públicos que têm o estrito dever evitar uma confusão, mesmo que pontual, entre patrões e torcionários.

http://odiario.info/articulo.php?p=1447&more=1&c=1

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