À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

21/12/2009

A política salarial em tempos de crise

Ignacio Alvarez Peralta [*]

1. Introdução
2. O que nos diz a teoria econômica hegemônica?
3. Salários, inflação e produtividade: a luta pela repartição do rendimento.
4. A política salarial no contexto atual
5. Conclusões

1. Introdução

A situação de crise econômica que vivemos atualmente fez aflorar um importante debate a respeito de qual deve ser a política salarial de referência para os diferentes agentes econômicos e sociais. Dedicaremos as linhas seguintes a abordar esta questão, ou seja, a caracterizar qual deveria ser neste momento a evolução dos salários na economia espanhola, tendo em conta o contexto da crise econômica.

Como se sabe, a crise econômica que vive a economia espanhola desde o início de 2008 se insere numa crise econômica mundial, cujo fator desencadeante mais imediato foi o estouro da bolha financeira e imobiliária internacional. O colapso dos mercados internacionais de capital, fruto da crise das hipotecas subprime, determinou uma forte desvalorização dos ativos em mãos das entidades financeiras e, com isso, uma fortíssima contração do crédito (Torres, 2009). Assim, a crise financeira internacional rapidamente se transferiu à esfera produtiva, curtocircuitando o financiamento do investimento e do consumo, reforçando a pressão da bolha imobiliária e precipitando o bloqueio do crescimento econômico (gráfico 1].

Gráfico 1.

Gráfico 2.

A forte queda do crescimento econômico se traduziu, já desde o começo de 2008, numa redução paralela no número de empregados na economia espanhola e, com isso, numa rápida elevação da taxa de desemprego (gráfico 2). Ademais, a redução dos preços internacionais do petróleo, associada à forte queda no consumo das famílias, precipitou a partir do final de 2008 um processo notável de desinflação [1] (gráfico 3), tanto do índice geral como, em menor medida, da inflação subjacente.

Gráfico 3.

É nesse contexto de crise, forte desemprego e queda de preços que se levanta o debate sobre a pauta que deve seguir o crescimento dos salários na economia espanhola para facilitar a saída da crise e a criação de emprego.

As posições expressas pelos diferentes agentes econômicos e sociais ao longo da segunda metade de 2009 têm sido diversas: enquanto a CEOE reiterou em numerosas ocasiões que o crescimento salarial deveria se ajustar ao crescimento da inflação presente, exigindo congelamento dos salários, as principais centrais sindicais do país (CCOO e UGT) manifestaram publicamente seu desejo de que os salários cresçam pelo menos 2% ao longo do ano. A situação no último trimestre de 2009 é que existem cerca de 1500 acordos coletivos bloqueados pela patronal (que está exigindo altas inferiores às que foram previamente acordadas), de cuja renovação dependem os salários de pouco mais de quatro milhões de trabalhadores.

A posição do governo quanto ao tema é confusa, quando não abertamente contraditória. Além das apelações ao diálogo social e à necessidade de incentivar a negociação coletiva, o governo tem-se movido entre as declarações do próprio José Luis Rodríguez Zapatero, afirmando que "esta crise não pode ser paga pelos trabalhadores", e as do secretário de Estado de Economia, José Manuel Campa. Este último, signatário do conhecido Manifesto dos 100, que apoiava a criação de um novo acordo indefinido com menos dias de indenização por demissão, considera que para solucionar o problema do desemprego o desejável é "uma reforma do mercado de trabalho, mas isso leva tempo", de modo que seria mais rápido uma redução real do salário dos que trabalham, redução que, por sua vez, nos ajudaria a recuperar a competitividade" ( El Mundo, 08/Março/2009).

2. O que nos diz a teoria econômica hegemônica?

O secretário de Estado da Economia não é o único economista que advoga a moderação salarial no atual contexto de crise. De fato, e em que pese a tremenda confrontação feita pela atual crise econômica à ortodoxia neoliberal, continua grande o número de economistas que mantêm tal orientação.

Assim, continua se insistindo na necessidade de flexibilizar ainda mais o mercado de trabalho, baratear as demissões e conter os salários, como se essas medidas fossem novas em nossa economia e sua aplicação se traduzisse mecanicamente em crescimento econômico e criação de emprego.

Esses postulados neoliberais surgem com força durante a crise dos anos setenta, caracteriza pela chamada "estagflação" (convivência simultânea de estagnação, desemprego e inflação), que o paradigma econômico keynesiano não era capaz de explicar. A partir desse momento, a política econômica passou a ser dirigida com base em suas orientações, amplamente compartidas, ademais, pelos setores empresariais.

As principais contribuições dos economistas neoliberais para entender a crise dos anos setenta centraram-se em duas questões: em primeiro lugar, os mercados de trabalho europeus eram mercados que apresentam importantes "inflexibilidades" (regulações como a existência de um salário mínimo legal, a negociação coletiva, etc.), que impediam que os salários fossem reduzidos na crise e atuassem como variável de ajuste. Mas, além disso, essa corrente de pensamento trouxe a idéia de que a inflação está determinada pela formação das expectativas dos agentes, de modo que os aumentos salariais de hoje se traduzirão em inflação futura, e portanto em menor crescimento econômico. Superar a crise passa por atalhar essas duas questões, o que, por sua vez, permitiria a necessária moderação salarial.

Assim, a obsessão antiinflacionista dos economistas liberais levou a que, desde o início dos anos oitenta, se estendessem nas diferentes economias européias diversas medidas de desregulamentação do mercado de trabalho e de moderação salarial. Esta moderação salarial, junto com o controle do gasto público e da oferta monetária, teve sem dúvida êxito no controle da inflação, como podemos ver no gráfico 4.

Não obstante, a segunda parte da equação neoliberal nunca se chegou a cumprir: supostamente, o controle da inflação deveria ter-se traduzido em maior estabilidade e competitividade, e, com isso, em maiores taxas de investimento, crescimento econômico e criação de emprego. Como vemos no gráfico 4, os dados para o conjunto da zona do euro não abalizam esta argumentação: mesmo sendo certo que a política econômica tenha conseguido controlar eficientemente a inflação desde meados dos anos oitenta, isto não se traduziu – em comparação com a dinâmica econômica dos anos cinqüenta e sessenta – numa recuperação sustentada do crescimento econômico nem numa queda das taxas de desemprego. Ao contrário, durante esses anos, o crescimento foi limitado pela fraca demanda interna de muitas destas economias, fruto do controle do gasto público e do baixo crescimento salarial.

Gráfico 4.

3. Salários, inflação e produtividade: a luta pela repartição do rendimento

Como se mencionou anteriormente, a aplicação do conjunto de medidas neoliberais no mercado de trabalho não é novidade. No caso espanhol, o recurso à desregulamentação trabalhista, a ampliação das modalidades contratuais, a redução dos custos da demissão, a inexigibilidade de motivação para este, ou as práticas de moderação salarial, foram constantes durante estas últimas décadas, mediante uma sucessão de reformas trabalhistas promovidas tanto pelos governos do PP como pelos do PSOE.

A exigência de mais uma volta do parafuso nesse sentido, tal como pede o Manifesto dos 100 em relação à redução de custos da demissão ou a organização patronal relativamente à política salarial, não é exatamente uma novidade mas um aprofundamento na orientação neoliberal das reformas nas últimas décadas. Vejamos a seguir as consequências que tiveram a aplicação dessas medidas na economia espanhola.

Desde os anos oitenta, os salários nominais passaram a crescer ao mesmo passo ou até abaixo da inflação (como aconteceu em boa parte da década de noventa), o que se configurou como um estancamento dos salários reais (gráfico 5).

Gráfico 5.

De fato, a Espanha, segundo o informe anual Employment Outlook 2007 da OCDE (OECD, 2007) é, dos 27 países que compõem esta organização, o único país que experimentou durante o período 1995-2005 um decréscimo do salário médio: enquanto a média de crescimento anual para os países da OCDE era de 1,8% entre 1995 e 2005, o salário médio caiu na Espanha de cerca de -0,5% anual neste período. A redução do salário médio se deve, em parte, à criação de mais postos de trabalho de baixos salários que de altos ou médios e, também, à própria redução na taxa de crescimento dos salários (Navarro, 2007).

Ademais, se verificou uma crescente desconexão entre o aumento dos salários reais e a pauta de crescimento da produtividade e do rendimento nacional (Murillo, 2009). Deste modo, os benefícios gerados pelo forte crescimento da economia espanhola durante os anos noventa reverteram em aumentos desproporcionais de salários (gráfico 6). Assim, entre 1995 e 2007, período de grande crescimento da economia espanhola, a dinâmica de moderação salarial se traduziu no fato de que, enquanto os salários reais experimentaram crescimento acumulado de 1,9% durante esses anos, a produtividade aumentou 5,3% e o PIB per capita 44,7%. Evidencia-se que os benefícios derivados de um crescimento econômico maior não reverteram em melhoria salarial.

Gráfico 6.

Esta pauta de moderação salarial e de desconexão entre os salários reais e o crescimento econômico geral se traduziu num importante retrocesso dos rendimentos salariais sobre o conjunto do rendimento nacional (gráfico 7). Desde o início dos anos 80 até 2008, o peso dos salários sobre o produto interno bruto espanhol havia se reduzido aproximadamente 12%, seguindo uma tendência uniforme de queda neste período (salvo durante a crise de 1991-93).

Gráfico 7.

Este processo de congelamento salarial e de luta pela repartição do rendimento gerado na economia espanhola não respondeu unicamente às estratégias de moderação salarial. Outros fatores colaboraram também para este processo. Assim, por exemplo, a progressiva desrregulamentação do mercado de trabalho espanhol acabou dando lugar a um mercado de trabalho dual, com uma reserva de trabalhadores temporários que chegou a ficar acima de 30% do total de ocupados durante os anos 2003-2007. A forte desproteção dos direitos destes trabalhadores foi um elemento central para entender o aumento da capacidade da classe empresarial em impor salários "mileuristas" aos trabalhadores, enquanto se ameaçava com isso a própria capacidade de negociação salarial dos que contavam com contratos indefinidos. Recordemos que os trabalhadores com contrato temporário recebem, em média, salário 52% inferior ao dos trabalhadores com contrato indefinido, ou seja, uma diferença média de 7.377 euros anuais (Estrada, 2009).

Igualmente, o expressivo aumento dos processos de subcontratação na nossa economia, juntamente com a progressiva descentralização da negociação coletiva, contribuíram para quebrar a capacidade de reivindicação dos assalariados e de suas organizações, enfraquecendo sua posição nos processos de negociação e reforçando o congelamento salarial.

É importante lembrar também que a própria estratégia de moderação salarial foi assumida durante este período pelas principais centrais sindicais do país, com o argumento de facilitar o emprego e manter a paz social.

As consequências econômicas que esta pauta de moderação salarial teve para a economia espanhola são relevantes. A aplicação das medidas neoliberais – entre elas, sem dúvida, a moderação salarial como elemento central da estratégia de competividade da economia espanhola – colaborou para a construção de um modelo produtivo entre 1990 e 2009 que foi caracterizado, entre outros, pelos seguintes elementos:

  • Expressivo crescimento econômico e do emprego, cujos motores foram setores tradicionais de mão-de-obra intensiva e caracterizados por baixos salários (construção, hotelaria, comércio varejista, etc.). Do total de emprego criado entre 1996 e 1970, 20% foi relativo ao setor de construção, 9,3% ao setor hoteleiro e 7,7% ao comércio varejista.
  • A estrutura do emprego da economia espanhola reflete o peso crescente que têm os baixos salários no nosso país (Muñoz de Bustillo, 2007; Recio, 2001). Como se pode verificar no gráfico 8, mais de 60% dos salários de 2007 eram inferiores a 18.500 euros por ano.

    Gráfico 8.

  • O modelo produtivo espanhol caracterizou-se por um fraco crescimento da produtividade empresarial, notavelmente inferior ao da UE. Isto é consequência da abundante oferta de trabalho de baixos salários, o insuficiente reinvestimento dos benefícios empresariais na atividade produtiva, e os reduzidos níveis de investimento em I&D das empresas.
  • O excesso de liquidez dos mercados internacionais e nacionais de capitais, associados à crescente bolha imobiliária e o processo de congelamento dos rendimentos salariais, originou um forte endividamento das famílias. O percentual da dívida sobre o rendimento bruta das famílias passou de 80%, em 2000, a quase 130% em 2008.
  • Apesar do crescimento da produtividade na economia espanhola durante as últimas décadas ter sido limitado em comparação com a UE, sua desconexão relativamente ao crescimento dos salários se traduziu numa forte redução dos custos trabalhistas unitários reais nas empresas, convertendo-se esta redução no elemento central da estratégia de competividade (gráfico 9).

    Gráfico 9.

    Gráfico 10.

  • O modelo produtivo espanhol baseou sua estratégica de competividade em elementos defensivos: basicamente uma contenção dos custos trabalhistas. Não obstante, esta estratégia de competividade defensiva não serviu para melhorar significativamente a posição das indústrias espanholas nos mercados internacionais (Luengo y Álvarez, 2009). Como se vê no gráfico 10, a melhoria das quotas de mercado foi muito limitada, em particular nas indústrias de médio e alto valor agregado (mecânica, maquinaria, automotivos, farmácia, química, material ótico). Além disso, em quase todos os setores se verificou redução de qualidade (medida esta em termos de valores unitários).
  • O modelo produtivo espanhol caracterizou-se também por um aumento notável da lucratividade empresarial, que cresceu durante esta última década num ritmo muito superior ao dos salários (gráfico 11). Deve-se ter em conta além disso que, segundo dados da Eurostat, a taxa bruta de operação das empresas espanholas (o lucro empresarial bruto dividido pelo faturamento) foi notavelmente superior ao das empresas das principais economias da UE,como por exemplo França e Alemanha (gráfico 12). Ou seja, de cada 100 euros de vendas, as empresas espanholas, em média, vêm obtendo desde 1995 rendimentos brutos acima de 10 euros, enquanto as empresas francesas ou alemãs se ficavam em torno dos 6-7 euros (Gutiérrez, 2009).

    Gráfico 11.

    Gráfico 12.

Podemos observar portanto como o modelo produtivo espanhol tem sido suportado durante estas décadas por um processo de forte contenção do crescimento salarial. Este ajuste dos rendimentos salariais – com a desculpa de se ter que competir com outras economias – e a sua desconexão com o crescimento e repartição da produtividade, traduziram-se numa importante redução dos custos trabalhistas unitários reais, como já vimos anteriormente. Entretanto, esta redução dos custos trabalhistas unitários não parece ter-se transferido a uma melhoria das quotas de exportação das indústrias espanholas e nem a uma melhoria significativa das contas de resultados empresariais. Com isso, a política de moderação salarial, predominante na economia espanhola entre 1980 e 2009,não só se traduziu em um verdadeiro furacão de redistribuição regressiva do rendimento como também fortaleceu um modelo produtivo caracterizado pela reduzida produtividade, baixos salários, endividamento elevado, temporariedade do emprego e forte dependência de setores como construção e hotelaria.

4. A política salarial no contexto atual

A dura crise econômica que vive atualmente a economia espanhola está tendo sua principal variável de ajuste no emprego, o que se traduziu num rimo intenso de destruição deste (gráfico 2). Além disso, a organização patronal, como já se mencionou anteriormente, está dificultando a renovação de mais de mil convênios coletivos a nível estatal, o que supõe congelamento salarial de facto para mais de quatro milhões de trabalhadores. Estes fatores – unidos ao alto endividamento dos lares espanhóis – acarretam grande incerteza aos planos econômicos das famílias, o que se traduziu tanto num significativo incremento da poupança familiar (gráfico 13), como numa forte queda do consumo privado (gráfico 14).

Gráfico 13.

Gráfico 14.

O rápido aumento do desemprego e da poupança, assim como a forte redução paralela do consumo, determinaram uma forte desaceleração dos preços que, como víamos no gráfico 3, começaram a ser negativos já em março de 2009. Surgiu com isso o debate sobre se nos aproximamos ou não de um cenário de deflação.

Apesar de o Fundo Monetário Internacional definir deflação como "dois trimestres consecutivos de queda sustentada e generalizada de um índice agregado de preços, como o IPC ou o deflator do PIB" (e tecnicamente a economia espanhola já se encontra nesse ponto), são muitos os especialistas que descartam esse cenário. O próprio secretário de Estado da Economia declarava recentemente que "excluímos completamente este cenário". Entretanto, o New York Times (21/Abril/2009) alertava recentemente sobre o risco de deflação em que se encontra a economia espanhola. E tanto a Fundação de Carteiras de Poupança FUNCAS como o Instituto Flores de Lemus da Universidade Carlos III reviram para baixo suas previsões de inflação para o final de 2009, tendo esta última instituição considerado que existe 50% de probabilidade de que esta continue negativa no início de 2010.

Muitos especialistas consideram que não há motivos para preocupação, pois o motor do processo de desinflação é a redução da procura internacional do petróleo, que por sua vez haveria derrubado os preços internacionais desta matéria-prima.

Esta suposição explicaria que – como se pode ver no gráfico 3 – a inflação subjacente tenha sofrido um ritmo menor de redução. No entanto, atualmente assistimos a uma situação na qual também a inflação subjacente está alcançando números vermelhos: como mostra a desagregação dos 126 componentes da cesta de bens do IPC, são já mais de 40 os que experimentam crescimento negativo de preços (entre as quais se encontram não somente produtos relacionados à energia mas também produtos manufaturados como sapatos, roupas, automóveis, eletrodomésticos, brinquedos, medicamentos, eletrônicos, etc.).

É portanto neste contexto de forte contração do consumo e de quedas de preços onde deve situar-se o debate sobre a política salarial a ser seguida.E este é um contexto que, como se sabe, caracteriza-se por uma forte espiral que traduz o curtocircuito produtivo no aumento do desemprego e este, por sua vez, numa drástica redução do consumo, das vendas e do investimento empresarial, retroalimentando-se com isso a própria crise. Estão assentadas as bases, portanto, para uma situação de prolongada estagnação.

Figura 1.

É por isso que neste contexto carecem de fundamento novos apelos ao congelamento salarial. Em primeiro lugar, carecem de fundamento em termos de justiça social: seria profundamente injusto que a crise acabe sendo paga por aqueles que não a produziram – os assalariados, e não só pela via do desemprego como também pela via dos salários. Os salários na Espanha, como se viu, estão há anos perdendo capacidade aquisitiva e participação no rendimento agregado; não é possível que sobre eles recaia novamente o ajuste desta crise.

Mas além disso, e em segundo lugar, do ponto de vista econômico a moderação salarial apenas reforçaria a espiral recessiva, deprimindo ainda mais a procura agregada.

Deste modo, a situação da crise requer uma política salarial que rompa com a lógica instrumentada nestas últimas décadas. Duas deveriam ser as prioridades sobre as quais apoiar esta nova orientação em política salarial:

a) Os salários devem atuar neste momento como muro de contenção ante a deflação, fomentando-se acordos salariais que impeçam que os salários arquem com os custos da crise. Um aprofundamento na espiral deflacionária somente iria destruir ainda mais empregos, [2]

b) A crise deve ser aproveitada pela economia espanhola para promover uma mudança no modelo produtivo anteriormente descrito, que ponha fim às debilidades e injustiças sociais atualmente existentes. É crucial neste sentido romper com o modelo de distribuição de rendimento nos últimos anos, para o quê é necessário em primeiro lugar recuperar a capacidade aquisitiva perdida (ou seja, os salários nominais devem crescer acima da inflação). Mas ademais, e além da recuperação da capacidade aquisitiva, uma nova política salarial deveria garantir que o crescimentos dos salários recupere o vínculo com a evolução da produtividade e com o crescimento econômico, impulsionando-se com isso uma maior participação dos assalariados na distribuição da riqueza criada.

Análises recentes do mercado laboral espanhol destacam o fato de que este se ajusta pela via do emprego, e não pela dos salários [3] , como podemos verificar no gráfico 2 (onde se observa uma forte redução do número de ocupados). Segundo estas análises, a dualidade vivida atualmente pelo mercado laboral espanhol entre trabalhadores com contratos indefinidos e trabalhadores temporários permite, supostamente, que os primeiros, mais seguros de seu emprego e com nível de filiação sindical mais alto, pressionem fortemente para aumentar seus salários, enquanto os segundos, inseguros de seu emprego e com pouca filiação, saiam perdendo ao não poder exercer pressão similar. Isto explicaria o fato de serem os trabalhadores temporários os que estão pagando a crise (gráfico 15), dado que o mercado de trabalho se ajusta através de quantidades. Segundo esta concepção – herdeira dos modelos neoliberais "insider-outsider" – é necessário desativar o crescimento salarial dos trabalhadores com contratos indefinidos, o que supostamente permitiria que o mercado não se ajustasse via demissões mas através de reduções salariais. Para isso, a solução que oferecem os que defendem esta análise é nada mais que promover novas reformas trabalhistas que reduzam o custo das demissões nos contratos indefinidos (na linha da proposta contida no Manifesto dos 100).

Gráfico 15.

Não obstante, fica evidente que esta dualização do mercado de trabalho é precisamente fruto de reformas laborais anteriores – promovidas a partir das mesmas coordenadas ideológicas–, cujo objetivo não foi outro que o de flexibilizar e desregulamentar o mercado de trabalho espanhol. Aquelas reformas foram exatamente as que permitiram a existência de uma grande reserva de trabalhadores temporários em nossa economia, extremamente desprotegidos em seus direitos. E a existência dessa grande reserva de trabalhadores precários não só redundou no congelamento salarial vivido pelo conjunto dos assalariados (ao minar a capacidade de negociação do conjunto), como também permitiu que, uma vez chegada a crise, os empresários pudessem reduzir rapidamente suas equipes (ajustando o mercado via demissões). Assim, o forte diferencial do emprego temporário que existe em nossa economia em relação às do resto da Europa, e os custos nulos de demissão associados a este tipo de contratação (de fato, neste caso a demissão é literalmente gratuita, já que consiste simplesmente na não-renovação dos contratos), explicariam em parte o recurso dos empresários à não renovação de contratos uma vez chegada a crise, dadas as facilidades legais para fazê-lo.

Reduzir os custos das demissões num contexto de crise como o atual seria um enorme erro do ponto de vista dos interesses dos trabalhadores, já que não só permitiria um aumento das demissões como instrumento de ajuste perante a crise como também reforçaria a dinâmica de moderação salarial sem assegurar em nenhum dos casos a criação de emprego de qualidade.

De fato, tanto o crescimento dos rendimentos salariais como a sustentação dos níveis de emprego, a melhoria da produtividade e a criação de postos de trabalho de qualidade, exigiriam uma medida na direção diametralmente oposta: equalização dos direitos trabalhistas, mas não para baixo e sim para cima. Diante da proposta de redução dos custos de demissão dos contratos indefinidos (equalização por baixo por meio da redução de direitos), dever-se-ia impulsionar uma regulação mais estrita do emprego temporário de modo a impedir a existência de uma reserva de trabalhadores em regime precário como a que existe na economia espanhola, que não desfruta de praticamente nenhuma garantia frente à "demissão gratuita" (ou seja, diante da não renovação de seus contratos).

Fica além disso plenamente justificado o abandono da moderação salarial como instrumento para conjurar em curto prazo o ciclo depressivo da demanda interna (causa principal dos problemas de muitas empresas, e da maioria das PMEs). Neste sentido, fica evidente que as decisões de contratação das empresas em uma situação como a atual dependem menos dos seus custos do que das suas expectativas de expansão e negócio, ou seja, da demanda.

5. Conclusões

Vimos como a estratégia de moderação salarial que presidiu a economia espanhola durante estas últimas décadas se traduziu na formação de um modelo produtivo caracterizado por um forte incremento do emprego precário, bem como de setores intensivos em força de trabalho de baixos salários. O congelamento dos salários reais e a desconexão de seus aumentos relativamente à produtividade e ao crescimento econômico levou finalmente a uma forte queda – no que pese a intensa criação de emprego durante estes últimos anos – do peso dos salários sobre o rendimento nacional. Entretanto, esta redução dos custos trabalhistas unitários reais não conduziu a uma melhor inserção dos setores exportadores espanhóis nos mercados internacionais, mas se traduziu num importante incremento aos benefícios empresariais.

A profunda crise econômica que vive atualmente a economia espanhola delineia um novo contexto econômico, político e social no qual será debatida a política salarial a ser seguida nos próximos anos. Neste sentido, é transcendental – do ponto de vista dos trabalhadores – entender que é importante não apenas sair da crise, mas "como" sair dela.

Buscar uma saída baseada na justiça e equidade social, assente sobre um novo modelo de distribuição do rendimento, é condição necessária – ainda que não suficiente – para recuperar o lugar central que ocupa o trabalho e os direitos a ele associados. Neste sentido, diversos instrumentos concretos poderiam servir para orientar uma mudança da política salarial na direção proposta: fixação de um piso legal para os salários mediante um aumento expressivo do salário mínimo interprofissional; adoção progressiva da jornada de trabalho de 35 horas semanais, sem redução salarial; re-regulamentação do mercado de trabalho (legislando-se sobre a redução das modalidades contratuais, maior controle da subcontratação e uma recuperação dos direitos trabalhistas perdidos); reforço da negociação coletiva (mediante a extensão dos convênios, ou o apoio a uma filiação sindical mais ampla).

Igualmente, também seria útil uma reorientação da mentalidade com que as direções sindicais têm enfrentado os processos de negociação durante esses últimos anos, devendo deixar-se para trás a cultura defensiva que caracterizou o último decênio a favor de uma posição marcadamente mais proativa e reinvindicativa.

Serão muitos os economistas que argumentarão não haver margem econômica para uma política salarial baseada nestas orientações gerais. Entretanto, a discussão sobre se existe ou não margem para uma política salarial como a aqui proposta não se resolve fundamentalmente no terreno do debate técnico, mas deve ser abordada e resolvida no campo do político, e na mobilização das várias alternativas de construção social.

15/Outubro/2009
Notas:
1- O termo "desinflação" faz referência a uma desaceleração do ritmo de crescimento dos preços (ou seja, a uma desaceleração da inflação), enquanto o termo "deflação" remete a uma queda dos preços, ou seja, um crescimento negativo da inflação.
2- Neste sentido é interessante o estudo do IRES (2005): Les mutations de l'emploi en France, que contrasta empíricamente como, para a UE-12, o efeito depressivo da moderação salarial sobre o crescimento do PIB é superior ao possível efeito positivo que pode ter tal moderação como resultado da contenção dos custos trabalhistas e da melhoria da competividade-custo da economia (pag: 50-54).
3- Veja-se neste sentido o artigo de Guillermo de la Dehesa, "Problemas del mercado laboral español", no suplemento Negocios de El País, 18-octubre-2009.

Bibliografia:
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Torres López, Juan (2009): "Crisis inmobiliaria, crisis crediticia y recesión económica en Espanha", Papeles de Europa , Vol. 19 2009, Madrid.


[*] Investigador do Departamento de economia aplicada I da Universidad complutense de Madrid


http://resistir.info/espanha/estudio15_p.html

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