À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

25/12/2009

É Natal! É Natal!

Correia da Fonseca

É a tarde de segunda-feira. Para logo à noite, a SIC Notícias promete-nos uma reportagem sobre dois cidadãos sem-abrigo que vivem nas ruas do Porto. Talvez eu devesse escrever que nos ameaça com ela, mas não o farei pela consideração, digamos assim, que mantenho por uma ou duas figuras que participam nesse trabalho. De qualquer modo, essa reportagem só estará no ar logo à noite, pelo que só então poderei ter opinião a seu respeito. Mas uma outra reportagem, essa inserida num serviço noticioso, chegou aos nossos televisores um dia destes. Também então o tema era o Natal, as ruas, o frio, os sem-abrigo. Os de Lisboa, nesse caso. Parece que estimados em cerca de três mil e quinhentos, número presumivelmente estabilizado ao longo de todo o ano, embora esquecido pela TV e não só. Felizmente há o Natal que, como se sabe e creio ter sido escrito por Gedeão, é o tempo de ser bom. Assim, a televisão, que aliás é sempre boa como também é sabido, chega a esta altura e torna-se óptima, tão repleta de virtudes fraternais que quase atinge o merecimento da beatificação. De resto, não haveria grande espanto nisso: se até Pio XII, o da silenciosa cumplicidade com o nazismo, e João Paulo, o da aliança com Marcinkus e do ataque ao Leste, para lá caminham, não se vê impedimento significativo para que a televisão em geral, essa santa, não beneficie do mesmo trajecto.

Maravilhoso sinal

Aconteceu, pois, que sem que a televisão se tirasse dos seus habituais cuidados, concursos e bailaricos, futebóis e novelas, isto sem nunca esquecer a permanente campanha anticomunista consubstanciada em acções ou omissões, foi encontrado tempo para neste quadra especialmente votada à caridade fosse saber dos que vivem nas ruas da capital e por lá passam a noite, embrulhados no que melhor conseguem, nestes tempos em que o «alerta amarelo» alastra pelo País inteiro. Encontrou-os, é claro, recolheu deles alguns enregelados depoimentos gravados sob a luz intensa dos projectores móveis, mas não se ficou por aí: também foi saber dos apoios que organizações de excelente coração, por esta altura do ano especialmente empenhadas, prestam aos seus irmãos em Cristo que resvalaram para a nada invejável condição de não terem tecto que os abrigue. E foi reconfortante para nós, que temos tecto e muito mais, que provavelmente até temos emprego e o correspondente salário (conjunção que em verdade nem sempre acontece), ficarmos a saber que nestas noites de muito frio e chuva gelada há lugares onde os sem-abrigo podem dirigir-se para comer bem melhor do que é seu costume, alguns deles até para conseguirem um lugar onde passem a noite se a tanto luxo quiserem e puderem candidatar-se. O melhor de tudo, porém, terá sido talvez assistirmos a um maravilhoso sinal de fraternidade, diferente de tudo a quanto pude assistir ao longo das várias décadas em que venho acumulando a condição de cidadão atento e de telespectador sofrido: calcule-se que a TV nos mostrou que almas muitíssimo bem formadas foram buscar algumas jovens presumivelmente integrantes no grupo populacional dos sem-abrigo e as levaram para cabeleireiras ou estabelecimentos similares. Aí, foram-lhes dispensados cuidados aos cabelos, não só quanto à higiene específica mas também quanto ao corte e ao estilo, como bem pudemos ver: tratou-se assim não só de lhes melhorar a aparência mas também de lhes restituir a auto-estima. É certo que muito provavelmente aquelas obras de beneficiação ficarão degradadas muito em breve e tudo regressará à triste normalidade, mas calculo que esse será um inconveniente menor porque então já não será Natal. Agora, sim, é Natal, é Natal, e todos somos irmãos. Quando em muitas janelas do País os paninhos vendidos a cerca de uma dúzia de euros cada um lembram que o Natal é grande e aquela é a imagem do seu Profeta, fica bem que a TV venha provar que há quem venha juntar a teoria à prática, ao menos uma vez em cada ano. Aliás, é sabido que os meses passam depressa e que para o ano haverá mais cabeças a cuidar e mais auto-estimas a recuperar.

http://www.avante.pt/noticia.asp?id=31773&area=33

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