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14/07/2011

O demagogo

Jorge Pires

Logo que foram sendo conhecidos os nomes dos ministros que hoje integram o Governo do PSD/CDS-PP, percebeu-se rapidamente que, relativamente a alguns deles, estava montada toda uma campanha a partir dos media, no sentido de valorizar a participação de alguns ditos independentes, apresentados como técnicos competentes, sem responsabilidades na crise que o País atravessa, libertos de pressões partidárias, com uma visão menos formatada das causas e sobretudo com soluções para os problemas.
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O objectivo foi muito claro desde o início: esconder as reais dependências destes indivíduos face aos mandantes da política de direita em Portugal e apresentá-los como alguém que surgiu agora (talvez saídos da «lâmpada de Aladino») para executar um programa próprio e não aquele que está a ser imposto ao País pela troika. Chega mesmo a ser comovente a ingenuidade que lhes é atribuída no plano político. Entre estes, encontra-se o actual ministro da Educação, Nuno Crato, independente, indicado pelo PSD, ex-presidente da Comissão Executiva do Taguspark, cuja estrutura accionista é composta por instituições e empresas entre as quais destacamos: a Câmara de Oeiras, a PT, o BCP e o BPI.
Independência relativamente a quê e a quem? Apresentado como um homem que defende o rigor e a qualidade, exigente em tudo aquilo em que se mete, mas que sobre a Educação terá dito, como foi denunciado publicamente por alguém que o conhece muito bem, «ter poucas ideias», não perdeu tempo e, logo na primeira intervenção pública como ministro da Educação, mostrou que a sua principal característica reside na forma hábil como procura conduzir as pessoas ao objectivo desejado, utilizando os seus conceitos de bem, mesmo quando lhe são contrários. Foi na Assembleia da República durante o debate do programa do Governo.
Esta aposta de Passos Coelho em Nuno Crato faz todo o sentido quando o PSD, agora no Governo, não pode esconder mais uma postura do faz de conta como quando se colou, apenas por razões tácticas, à justa luta dos docentes e outros profissionais da educação, dos estudantes, pais e autarcas.
Era preciso encontrar alguém que, com um discurso bem elaborado sobre matérias relativamente às quais existe um grande consenso (rigor, qualidade, exigência), tivesse a mestria de mudar o essencial sem que, numa fase inicial, em que procurará prolongar ao máximo as expectativas criadas relativamente ao que vai fazer no Ministério, transpareçam as suas reais intenções.
Demagogo, do mais requintado que temos visto, senhor de uma grande capacidade em fugir às questões que lhe são colocadas, Nuno Crato não hesitou, perante as críticas de que foi alvo por parte do Grupo Parlamentar do PCP, em invocar a sua pseudo inspiração no pensamento de Bento Jesus Caraça sobre a cultura integral do indivíduo, procurando desta forma esconder aquilo que é uma evidência no memorando da troika e no submisso programa do Governo – o aprofundamento de um caminho percorrido ao longo dos últimos anos, que tem transformado a escola num instrumento de estratificação social à saída tal como se verifica já à entrada.


Reprodução das desigualdades


Bento Jesus Caraça merece mais respeito, pelo homem de inteligência superior que foi, mas também pelo legado que nos deixou, nomeadamente enquanto educador.
São muitas as orientações definidas no programa do Governo que apontam claramente, no quadro da desvalorização e privatização da Escola Pública, para um ensino cada vez mais dependente dos interesses do mercado de trabalho privilegiando o ensino da técnica em detrimento da cultura geral, com alterações curriculares que promovem a reprodução das desigualdades, tratando a educação como um instrumento de integração na cadeia de produção capitalista, um ensino cada vez mais caro e elitizado, com as elites a apossar-se cada vez mais de uma educação que sistematicamente é negada às massas trabalhadoras, como forma de se perpetuarem.
O que o programa do Governo aponta é para a consolidação da transformação do sistema educativo no «instrumento mais poderoso de condicionamento das pessoas para serem, das nove às cinco, produtores industriais, disciplinados e obedientes, e depois desse horário consumidores ferozes».                                  
O que o programa do Governo impõe é uma escola ligada ao modo de produção capitalista que seja legitimadora de hierarquias de poder e saber. 
Bento Jesus Caraça, a quem Crato diz ter «ido buscar inspiração», sempre combateu o monopólio cultural das classes dominantes, destacando sempre a importância da democratização dos saberes mais eruditos, apontando de forma muito clara o valor e o papel do indivíduo na sociedade, inserindo as actividades individuais nas realizações colectivas.
Nuno Crato ainda não percebeu que uma das principais lições que Bento Jesus Caraça nos deixa é a da coerência entre as palavras e as atitudes, coisa que lhe parece faltar.
Já agora e parafraseando o matemático e pedagogo, cada homem «vale tanto pelo que é como por aquilo contra que é».

http://www.avante.pt/pt/1963/opiniao/115418/ 

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