À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

12/11/2009

Abono de Família: Um importante subsídio transformado num logro

Anselmo Dias

No conjunto das prestações sociais do sistema público de segurança social, em termos de número de beneficiários, o Abono de Família surge em 1.º lugar, praticamente a par da pensão por velhice. Não há, nas pensões de sobrevivência e de invalidez, no universo dos trabalhadores com baixas médicas, nem sequer no rendimento social de inserção tantos utentes como os titulares com processos de Abono de Família.

Estamos a falar, reportado a 31/12/2008, de 1 832 820 titulares.
Estamos a falar de um encargo, relativo a 2008, de cerca de 702 milhões de euros.
Estamos a falar, caros leitores, reparem bem, de um subsídio médio mensal de 32 euros.
Trinta e dois euros, eis o valor fixado pelo Governo para cobrir «...uma prestação mensal que visa compensar os encargos familiares respeitantes ao sustento e educação dos descendentes do beneficiário».
Não, não se trata de uma boutade dos Gatos Fedorentos.
Trata-se do Artigo 6.º do Decreto-Lei 133-B/97 do Governo de António Guterres, cuja filosofia foi posteriormente confirmada pelo Governo de Durão Barroso que, no Artigo 1.º do Decreto-Lei 176/2003 lhe acrescentou a seguinte expressão: «...concessão continuada...».
Esta «continuidade» levou ao que levou: a existência de um subsídio formalmente bem escrito para iludir os incautos, alicerçado numa compensação financeira que daria para rir caso estivéssemos a falar de uma brincadeira.
Mas não estamos.
Estamos a falar de cerca de dois milhões de crianças e jovens com direitos constitucionais claramente expressos.
Quanto à infância, a Constituição garante que as mesmas «...têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral...».
Quanto à juventude, a Constituição determina que «Os jovens gozam de protecção especial para efectivação dos seus direitos económicos, sociais e culturais, nomeadamente no ensino, na formação profissional, na cultura...»
Aos detentores de tantos e tais direitos constitucionais os governos do PS, do PSD e do CDS compensa-os com um subsídio médio diário de cerca de 1 euro, salvo no mês de Fevereiro do ano bissexto em que aquela valor é majorado em cerca de quatorze cêntimos por dia.
É verdadeiramente comovente tanta generosidade do bloco central!

O âmbito do Abono de Família

O Abono de Família para crianças e jovens, salvo se for exercida qualquer actividade laboral, é concedido em função da seguinte estrutura etária:
- até à idade de 16 anos;
- dos 16 aos 18 anos, se estiverem matriculados no ensino básico;
- dos 18 aos 21 anos, se estiverem matriculados no ensino secundário;
- dos 21 aos 24 anos, se estiverem matriculados no ensino superior;
- até aos 24 anos, tratando-se, em certas situações, de crianças ou jovens portadores de deficiência.
Esta formulação jurídica, com as devidas reservas, faz lembrar a técnica fascista ao garantir determinados direitos formais, paralela e criminosamente eliminados, desde logo, por outros normativos jurídicos.
De facto, formalmente, todas as crianças abrangidas no esquema atrás referido têm direito ao Abono de Família.
Só que uma outra norma, inserida na própria legislação, neutraliza tal direito em função dos rendimentos do respectivo agregado familiar.
Estamos a falar, a título de exemplo, das famílias que tenham rendimentos superiores a 5 vezes o indexante dos apoios sociais, o famigerado IAS, que neste momento equivale a 419,22 euros. Ou seja: todas as famílias que tenham 1 filho e que usufruam, incluindo os subsídios de Natal e de Férias, de um rendimento mensal igual ou superior a 4890,90 euros, não tem direito ao Abono de Família.
Trata-se de uma clivagem com a qual o PCP, justamente, não concorda, fundamentalmente por três razões.
1.ª razão: as famílias que integrem trabalhadores por conta de outrem com altos rendimentos são, por esse facto, aquelas que mais contribuem para as receitas do sistema público de Segurança Social. Discriminar este estrato social é contribuir para que o mesmo coloque a seguinte questão: que sentido faz estar a descontar elevados montantes se, depois, não tenho acesso aos respectivos subsídios?
2.ª razão: o Abono de Família deve ser considerado um beneficio associado ao direito de cidadania das crianças jovens, pelo que todos devem receber, sejam filhos de ricos, sejam filhos de pobres.
3.ª razão: a discriminação não deve ser feita no âmbito da concessão do subsídio, mas sim no âmbito da fiscalidade, ou seja, as famílias ricas devem pagar impostos adequados à dimensão da riqueza, na base de uma tabela do IRS com escalões claramente progressivos, enquanto que os pobres devem, por razões de justiça fiscal, estar isentos do pagamento de impostos.
Esta visão não é partilhada pela direita ideológica, que prefere ficar de fora da concessão de um subsídio, como seja o Abono de Família, em vez de uma mais justa tributação fiscal.
Falemos, a este propósito, com os tradicionais comentadores televisivos e eles explicarão, com requintada manha, porque é que preferem pagar, no Serviço Nacional de Saúde, uma maior taxa moderadora do que ver aumentada a progressividade do IRS.

O valor do Abono de Família

Os valores atribuídos ao Abono de Família dependem do valor do indexante dos apoios sociais (IAS), dos rendimentos familiares, do número de filhos e respectiva idade.
Com base em tais variáveis foi construída uma tabela, cuja complicada estrutura faz lembrar o recente desabafo de José Saramago ao salientar a necessidade de haver junto da cada leitor da bíblia um teólogo no sentido de este repor, para o entendimento actual, a escrita original do Antigo Testamento.
Embora não seja necessário haver um intérprete para quantificar o Abono de Família, não andaremos longe da necessidade da existência de um matemático para quantificar o rendimento do trabalho dependente, os rendimentos empresariais e profissionais, os rendimentos de capitais, os rendimentos prediais e as pensões, ou seja, tudo aquilo que, no plano do rendimento, condiciona o valor do Abono de Família.
Tudo somado deve ser, depois, dividido pelo número de filhos, mais um (se houver um filho a divisão deve ver feita por dois).
Com a obtenção de tal resultado foi elaborada, com base no indexante dos apoios sociais, uma tabela constituída por 6 escalões de rendimentos, cada uma delas subdivida em outros dois escalões, em função da idade das crianças e jovens.
Toda esta panóplia matemática para quê?
Para enfeitar um verdadeiro simulacro de justiça social.
Na realidade, estamos a falar de subsídios que no primeiro ano de vida de uma criança vão de um máximo de 174,72 euros, para as famílias mais pobres, até a um mínimo de 33,88 euros para famílias eventualmente inseridas na classe média, classe média baixa.
Caso as crianças tenham mais de um ano de idade, aqueles subsídios são drasticamente reduzidos para um máximo e mínimo de, respectivamente, 43,48 euros e 11,29 euros.
Há, importa referir em nome da verdade, majorações abrangendo agregados familiares monoparentais, famílias com dois ou mais filhos, a que acresce um suplemento, no mês de Setembro, a pretexto das despesas com encargos escolares. Juntemos a tudo isto o Abono de Família pré-natal.
Em termos de literatura trata-se de um normativo idílico.
Em termos práticos trata-se de muita parra e pouca uva.
Em termos financeiros trata-se de uma média de 32 euros por criança e jovem.

Pela dignificação do Abono de Família

Aproximando-se a apresentação do Orçamento de Estado para 2010, o PS, na sua consabida astúcia, dirá para si, estamos certos, o seguinte: «É preciso fazer alguma coisa para que tudo fique na mesma».
A nós cabe uma postura diametralmente oposta, ou seja: não só divulgar, junto da opinião pública, designadamente junto dos trabalhadores, a dimensão real do Abono de Família em Portugal, como evidenciar a diferença que medeia entre o respectivo valor e os direitos constitucionais das crianças e jovens.
Por outro lado, importa ter presente que, em termos de encargos, as despesas com o Abono de Família conferem a este subsídio a posição de lanterna vermelha, comparativamente às restantes prestações sociais, na medida em que as mesmas, no conjunto das transferências correntes para as famílias, representam apenas 4,4% do valor total.
Na exigência que há a fazer quanto à sua dignificação não deve, de forma alguma, haver qualquer clivagem relativamente às restantes prestações sociais, ou seja, o aumento do Abono de Família não deve sacrificar o valor de outros subsídios.
Os encargos resultantes do aumento do Abono de Família devem ser provenientes do Orçamento de Estado, subsidiado por impostos, quer eles venham de uma taxa sobre as mais valias decorrentes da venda de acções, quer venha de uma taxa sobre as operações em bolsa, quer seja proveniente da aplicação de um imposto sobre as grandes fortunas, quer decorram de outras medidas tendentes a uma mais justa distribuição da riqueza.
O aumento do Abono de Família está, pois, na ordem do dia, cabendo às mães e aos pais das nossas crianças e jovens um papel interventivo, tendo em conta que a maior parte de tais progenitores são trabalhadores por conta de outrem a quem cabe lutar não só pela melhoria dos seus salários directos mas, também, pela melhoria dos salários indirectos, os quais, como todos nós sabemos, integram as funções sociais do Estado.
Avante - 12.11.09

Sem comentários:

Related Posts with Thumbnails