Após séculos de batalhas campestres, as forças armadas francesas treinam para o combate urbano. Os exemplos do Iraque e do Afeganistão e a preocupação crescente em conter o nível de violência nas cidades levaram o exército a simular situações de ocupação e controle de territórios.
Desde o começo do século passado, a população urbana mundial quintuplicou. Atualmente, cerca de 280 aglomerações ultrapassam a marca de 1 milhão de habitantes e 27 têm mais de 7 milhões de pessoas. Calcula-se que, em 2025, dois terços da população global morarão em cidades. Alguns apostam que essa cifra chegará a 85% por volta de 2050. É com esse cenário em mente que, nos últimos anos, o governo francês decidiu treinar seu exército para atuar, particularmente, em conflitos urbanos.
Assim, as tropas multiplicaram os exercícios em condições que imitam a realidade: em abril de 2008, 800 militares e 200 blindados se deslocaram na cidade de Sedan em uma manobra centrada na logística e que acentuava, sobretudo, o tratamento de feridos, a proteção de comboios e a evacuação de refugiados.
No mês seguinte, a operação “Anvil 08”colocou 1.500 homens nas praias de Fréjus para testar a “segurança e evacuação de populações em face de uma ameaça constituída por grupos paramilitares e terroristas”. Em 2007, um exercício de combate urbano “em tamanho natural”, com 1.200 militares e importante apoio aéreo foi levado a cabo pela 11ª Brigada de Paraquedistas, no centro da cidade de Cahors.
De fato, desde 2005, um “comando Azur” (Ação em Zona Urbana) impunha a duas grandes brigadas do exército terrestre francês a obrigação de “reforçar sua capacidade de adentrar zonas urbanas, independente da intensidade do combate e executando, até mesmo, operações humanitárias em proveito das populações, em face de um adversário cujo armamento e modos de ação evoluem”. No ano passado essa diretiva foi estendida ao conjunto das brigadas, obrigadas a se familiarizar com o combate em “zona habitada”. Principalmente nas maiores cidades que, em geral, concentram o essencial dos poderes político, econômico, social e cultural e formam um nó na rede de comunicações. além disso, são espaços “mediatizados”, que funcionam como uma caixa de ressonância.
Após a Segunda Guerra Mundial
No decorrer das guerras mundiais do século XX e do conflito “leste-oeste”, os exércitos tinham sido formados para batalhas no plano, em vastas extensões essencialmente rurais, com fronts1], sublinha o general Yves Jacops, antigo comandante da Escola de aplicação da Infantaria francesa. se movendo ao sabor dos recuos e dos avanços das unidades de infantaria, apoiados por blindados, pela artilharia e por caças da aeronáutica. “Durante os 45 anos que sucederam a rendição da Alemanha, gerações de soldados se prepararam para a guerra total entre o Pacto de Varsóvia e a Aliança Atlântica. A guerra nas cidades era praticamente inexistente. Nos regulamentos da infantaria, tratava-se esse tema pudicamente como ‘combate em localidade’” [
Quando a guerra se tornou urbana, como em Berlim, em 1944, e mais recentemente em Grozny, na Tchetchênia, o choque entre exércitos deixou um cenário de terra arrasada. “Nós não vamos refazer a batalha de Stalingrado!”, afirmava, em um vídeo do Estado-Maior francês, um general que se apresentava como um dos “pais” do comando Azur. “Fazer tudo como se ainda fosse 1944 não seria aceitável!”
Realmente o contexto mudou, explica outro oficial: “Os novos modos de ação devem minimizar os desgastes colaterais. O exército intervem primeiro para acalmar a situação, mas deve passar o bastão à polícia e a instituições civis assim que possível. Não há motivo para se destruir hoje, o que se deverá reconstruir amanhã de manhã”.
“Durante a Segunda Guerra Mundial”, resume uma nota da Fundação para a Pesquisa Estratégica [2], “cidades inteiras eram bombardeadas, como Londres e Dresden. No Vietnã, o foco recaía sobre um quarteirão. Hoje, no Iraque ou nos territórios palestinos, lidamos com um imóvel e mesmo com uma janela em um dos andares desse imóvel.” [3]
Diferente dos grandes palcos de batalhas de fronteiras ou de regiões, o espaço urbano é um labirinto de múltiplas dimensões, formado por subsolos (porões, cinturões, esgotos, estacionamentos, metros, vias subterrâneas); ruas, praças e becos; e por edifícios com todos os tipos de configurações (centros históricos, setores habitacionais, grandes superfícies comerciais, arranha-céus). Essa encruzilhada oferece ao beligerante, sobretudo se ele conta com o apoio de uma parcela considerável da população – característica própria aos conflitos “assimétricos” do momento – uma “opacidade protetora”, que permite a um adversário, tido por mais fraco, encontrar uma vantagem tática.
Nesta nova abordagem do campo de batalha, a presença das populações é um dado central: elas são frequentemente as vítimas, mas às vezes são protagonistas nos conflitos. Na cidade, revela o coronel Nicol, “a ameaça vem de toda parte. Cada rua, cada quarteirão pode se tornar um microteatro de operação. Às vezes, as unidades são cercadas, despedaçadas. É uma situação permanente de “duelo”, não importando o sistema de armas. Você deve tentar perceber, dentre os habitantes, qual está implicado, quem é o agente perigoso e quem não é, algo muito delicado. E você age sempre sob o olhar da mídia”.
O coronel Pascal Langard, chefe do batalhão francês da força especial da organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no Kosovo, estimava – após uma nova série de incidentes em março de 2008 em Mitrovica [4] – que “o combate realizado em presença da população é sem dúvida um dos mais difíceis, pois não pode se resumir à destruição do adversário”. O oficial insiste, como muitos outros, sobre “a necessidade de dominar a violência” – tarefa tanto mais complexa quanto mais variem as motivações, os atos reais e os meios utilizados no interior de uma mesma multidão de manifestantes. Para ele, a situação pode evoluir rapidamente, tanto do ponto de vista do espaço como do tempo. Esse contexto exige “muito sangue frio, coesão perfeita e uma confiança sem hesitações dos subordinados". [5]
A preocupação em conter o nível de violência, notadamente nos conflitos de tipo insurrecional, demanda ações diretas “com contato” frequente: os militares buscam uma “mira cirúrgica”. Para o chefe do Bata- lhão Arminjon, esse tipo de combate “exige uma concentração intelectual muito forte”. Já o coronel Vincent Pons, chefe de opera- ções da 27ª Brigada de Infantaria de Montanha, acredita que “o importante é estabelecer rapidamente uma relação de forças favorável e assegurar uma proteção blindada significativa para os envolvidos”.
Esse tipo de ação, realizada em intervalos curtos de tempo e com demandas logísticas complexas, necessita de estoques de munição dez vezes mais significativos do que uma campanha militar normal, assim como um número suficiente de blindados, ora para apoio, ora para proteção. E, sobretudo, requer tropas permanentemente treinadas: “No espaço de seis meses, pode-se perder os reflexos e esquecer os procedimentos, perder a capacidade de desferir golpes mais duros”, analisa um instrutor do Centro de Treinamento para ações em Zona Urbana (Cenzub).
Os exemplos reais dessa nova forma de combate são vistos nas intervenções americanas em Bagdá ou Falluja, e nas britânicas em Bassorah, no Iraque; nas russas em Grozny, nos anos 1990; nas europeias em Pristina e Mitroviça, no Kosovo; e nas israelenses face à resistência palestina. Aliás, as operações de contrainsurreição na Irlanda do Norte, desde os anos 1960, e de manutenção da paz nos Bálcãs nos anos 1990, deram oportunidade para as tropas britânicas “refrescarem a memória” quando engajadas em missões recentes no Afeganistão e no Iraque.
Para o ministério francês da Defesa, a experiência conhecida como “Hotel Ivoire”, em Abidjan, na Costa do Marfim, em novembro de 2004, foi particularmente marcante: após o bombardeio de um quartel do exército da França, em Bouaké, e a retaliação vinda de Paris, que ordenou a destruição da pequena aviação do país africano, os militares franceses tiveram de enfrentar, com instrumentos de guerra, uma multidão hostil. “Naquele dia, a força terrestre simplesmente não executou suas funções. Graças ao sangue-frio das unidades mobilizadas, houve um número mínimo de vítimas. Mas a tendência era de linchamento generalizado. Daí a necessidade, quando não houver pessoal especializado, de dispor pelo menos de unidades de infantaria treinadas para a manutenção da ordem, e que estejam adequadamente equipadas com meios de proteção e armamento de letalidade reduzida”, avaliam os representantes do governo.
Alta tecnologia
Com base nesses modelos e a partir de acontecimentos como o da Costa do Marfim, os efetivos das companhias de infantaria francesa foram reforçados e as ações são, doravante, executadas em “interarmas”, ou seja, com a participação de todas as forças armadas, incluindo o apoio de tanques e de engenheiros militares, o deslocamento de soldados sob blindagem e disponibilidade de equipamentos de rádio e para visão noturna. [6]
Além disso, dispositivos de detecção reforçados foram instaurados para enfrentar os foguetes e os chamados “Improvised explosive devices” (IED, artigos explosivos improvisados), um modo de ação corrente para os insurgentes do Iraque e do Afeganistão, sobretudo na zona urbana. A partir deste ano, uma parte dos veículos blindados será equipada com visão panorâmica e armamento teleoperado, a fim de limitar a exposição dos combatentes. As condições de utilização em meio urbano de certos materiais originários da Guerra Fria, como os tanques pesados do tipo Leclerc de 56 toneladas, também foram repensadas, bem como as técnicas de apoio aéreo, com uso privilegiado de helicópteros e drones. [7]
O exército dos EUA, que interveio mais de 20 vezes nos últimos 30 anos em terrenos urbanos ou suburbanos, só deu início a uma reflexão estratégica sobre o tema depois da desastrosa operação de Mogadíscio em 1993. [8] A partir daí, os americanos desenvolveram novas técnicas, como grupos de combate esparsos, interconexão entre combatentes, geolocalização e drones, testadas hoje nos palcos iraquiano e afegão. Ao aplicar essas táticas, os Marines acreditam conseguir uma redução sensível no número de perdas. [9]
Enquanto isso, na França, o exército dispõe de cerca de 20 lugares para manobras, tiros ou simulações. Aproximadamente 400 unidades foram familiarizadas com o combate de tipo urbano, cada uma contando entre 130 e 170 homens. Mas o Estado-Maior deposita muito de suas esperanças no desenvolvimento de seu Centro de Treinamento em Zona Urbana, aberto em 2006 em Sissone: a expansão em curso permitirá o treinamento de um regimento completo, em condições quase reais, a partir de 2011, com uma estrutura inteiramente dedicada aos combates urbanos, prevendo a movimentação de uma “força adversa” permanente, do tamanho de uma companhia. Em breve, o centro finalizará uma cidade artificial de 3 mil habitantes, que reproduzirá o conjunto das condições espaciais sob as quais os combatentes têm de agir. Para o coronel Didier Leurs, o Cenzub será o primeiro estabelecimento desse gênero na Europa, com um enfoque “ao mesmo tempo multinacional, integrando as forças armadas e associando de modo duradouro ministérios, organizações internacionais e ONGs”. [10]
Os atores dessas encenações militares admitem ser difícil reconstituir a ameaça: é preciso não somente propor um roteiro e um ambiente plausíveis, mas também dispor de pessoal apto a figurar como inimigos – militares, milícias ou simples civis. Para transportar os “jogadores”, a simulação deve incluir todos os atores possíveis. Por exemplo: jornalistas, reais ou fictícios, podem ser introduzidos no local para os militares se habituarem a reagir diante de testemunhas, com a companhia de uma equipe de imprensa e respondendo às questões que dela surgirem. Os soldados aprendem igualmente alguns rudimentos de direito dos conflitos e, sobretudo, a delicada interpretação das regras convencionadas: em uma mesma cidade, em face de situações em níveis muito diferentes, um militar poderá abrir fogo de um lado da rua, mas não do outro.
Desde o episódio do Hotel Ivoire, o exército francês utiliza sistematicamente para operação externa uma companhia de infantaria formada em “controle de multidões” – “versão militar para a manutenção da ordem”, analisa o site SecretDéfense. [11]Diferentemente dos agentes de policia, para quem a intervenção armada diante de uma multidão é o ponto “máximo” a que chega sua gama de missões, os soldados somente praticam a manutenção da ordem como um “mínimo”, como um recurso, na pior das hipóteses, para limitar a escalada da violência, e devem ser capazes de retornar às movimentações mais intensas, caso necessário, com meios militares blindados, atiradores de elite, cachorros etc.
A revista Fantassins questiona, no início de um dossiê sobre o controle de multidões, “se a utilização desse modo de ação não engendra novos problemas, como o estímulo ao contato impune de civis desarmados com a força militar e a inibição do uso de armas, arriscando uma exposição a ações terroristas” [12]. De status militar, mas força intermediária entre a polícia civil e o exército, chamada a participar cada vez mais dessas operações, a polícia militar móvel se considera mais preparada para o emprego inteligente da força e para o manejo de armamentos não letais. [13]
Enquanto alguns experts temem a mistura de gêneros, sugerindo aos militares que não se enganem quanto à sua profissão, a anexação da antiga Polícia Militar francesa ao Ministério do Interior, desde 1º de janeiro de 2009, ilustra a nebulosidade crescente das fronteiras entre defesa e segurança.
Uma coincidência se tornou simbólica: foi em um certo dia 11 de setembro de 2001 que o primeiro grupo “interarmas” do exército terrestre francês começou a ser treinado para o combate urbano...
*Philippe Leymarie é jornalista.
[1] Fantassins, magazine d’information de l’infanterie, nº 20, Montpellier, junho de 2007.
[2] Michel Asencio, Notes de la FRS (Fondation pour la Recherche Stratégíque) (Notas da FRS (Fundação para a Pesquisa Estratégica), Paris, 2 de junho de 2006.
[3] Nota-se que durante a ofensiva israelense em Gaza, em janeiro de 2009, o “tratamento” teve muito menos “mira”.
[4] A violência sucedeu após uma operação da polícia para retirar os sérvios que ocupavam dois tribunais da Organização das Nações Unidas (ONU). Segundo a organização do tratado do Atlântico Norte (OTAN), 25 policiais da ONU, oito soldados da força da OTAN (Kfor) e 80 sérviosforam feridos.
[5] Terre Information Magazine, Paris, julho-agosto de 2008.
[6] Chefe de batalhão Lecerf, “retex Azur”, Fantassins, nº 22, junho de 2008.
[7] Tipo de veículo militar aéreo controlado a distância.
[8] A perda de 18 homens, caídos em uma emboscada nas ruas da capital da Somália, tinha provocado a retirada do contingente americano.
[9] Alain de Neve, Joseph Herotin, Mythes et réalités du combat urbain (Mitos e realidade do combate urbano), Réseau Multidisciplinaire d’Études Stratégiques, 23 de março de 2003; www.lalibre.be
[10] Coronel Didier Leurs.
[11] ean-Dominique Merchet, 30 de março de 2008. (http:/ secretdefense.blogs.liberation.fr/). Cerca de 40 unidades foram formadas, na França, para o “controle de multidões”, que precisam de equipamentos especiais.
[12] Fantassins, abril de 2008, publicada pela École d’application de l’infanterie (Escola de Aplicação da Infantaria).
[13] Yves Chevreul e Olivier Masseret, La gendarmerie, acteur paradoxal de la securité intérieure-extrérieure (Polícia militar, ator paradoxal da segurança interior-exterior), revue Internationale et Stratégique, Paris, 2005-3 (nº 59).
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