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06/02/2009

Farinha Rodrigues: O crescimento dos altos salários está a acentuar as desigualdades

Ana Rute Silva - Público 06.02.09

Carlos Farinha Rodrigues queria explorar o lado humano da economia. E, por isso, há mais de uma década que se dedica ao estudo das desigualdades salariais e da pobreza.

O economista e professor do Instituto Superior de Economia e Gestão diz que a distância entre quem ganha salários altos e quem está no nível mais baixo da tabela de remunerações é cada vez maior. Para uns, os ordenados aumentam a uma “velocidade supersónica” Para a grande maioria evoluem a passo de caracol. O investigador defende ainda que o combate efectivo à pobreza implica um modelo económico mais justo e uma política fiscal com maior capacidade redistributiva.

Porque é que decidiu estudar as desigualdades e a pobreza?

Dedico-me a estes temas há cerca de quinze anos. Quando estava a fazer o mestrado em Economia tive uma cadeira da professora Manuela Silva que, de alguma forma, me sensibilizou para estas áreas. Foi o ponto de partida. Por outro lado, sempre tive a concepção de que a economia tem muito a ver com as pessoas e com as suas condições de vida. Tenho muito orgulho em ser economista, e os economistas têm de ter preocupações sociais.

Queria explorar o lado mais humano da economia.

Se a economia não é para as pessoas, também não é para mais nada. É uma desvirtuação da economia.

Persegue algum objectivo concreto? Ou seja, ao estudar estas matérias quer sensibilizar pessoas e instituições?

O economista e o investigador devem chamar a atenção para o que consideram ser os problemas da sociedade em que vive. Em Portugal temos uma das maiores taxas de pobreza e desigualdade da Europa mas não há uma grande consciência social. Por exemplo, a União Europeia publica anualmente um Eurobarómetro sobre os problemas que mais preocupam as pessoas. Para os portugueses, a pobreza e a desigualdade vêm em quinto, sexto ou sétimo lugar. Infelizmente, na nossa sociedade existe uma passividade e uma desculpabilização em relação a estes fenómenos.

Como se fosse um fenómeno permanente.

Como se fosse uma fatalidade. Penso que os fenómenos da desigualdade e da pobreza não são específicos de Portugal. É possível alterar a situação e para isso é preciso mudar as consciências. De alguma forma essa tem sido uma das minhas principais preocupações.

É essa a intenção do Observatório das Desigualdades, apresentado em Dezembro?

Sim. Há claramente a ideia de que é preciso ter um espaço, um site, um grupo que regularmente chame a atenção para estes problemas.

Também se prende com o facto de em Portugal não existirem muitos dados estatísticos?

De facto, há alguma deficiência de informação. Acima de tudo, existe um grande desfasamento temporal entre os dados e a realidade. Se eu quiser caracterizar a desigualdade e a pobreza em Portugal hoje, só tenho dados de 2006. Este tem sido um dos aspectos que dificulta a utilização da informação estatística, não tanto para fazer o diagnóstico, mas para avaliar quotidianamente a política social. Os últimos dados que foram disponibilizados em Dezembro dizem respeito à informação estatística de 2007, que remete para rendimentos de 2006.

No final do ano passado divulgou alguns dados relativos a 2005. Nomeadamente que 20 por cento dos trabalhadores com maiores ordenados ganharam 45 por cento da massa salarial do sector privado. Ficou surpreendido?

Não. É uma tendência que já vem, pelo menos, desde o início dos anos 80. Temos tido um grande crescimento da desigualdade desde essa altura. Diga-se, em abono da verdade, que pela primeira vez os dados referentes já a 2006 permitem registar uma inversão dessa tendência. Os dados do Instituto Nacional de Estatística referente à distribuição dos rendimentos (não dos salários) mostram, pela primeira vez, uma ligeira diminuição da desigualdade. Se isso for uma tendência, é muito bom. Mas os nossos níveis de desigualdade são muito elevados.

Como se caracteriza a desigualdade em Portugal?

O grande motor da desigualdade tem sido a desigualdade salarial. Os salários representam 50 por cento (ou mais) dos rendimentos das famílias. Por outro lado – e este é um aspecto muito característico da nossa desigualdade nos últimos anos – regista-se um crescimento acima da mediana dos salários mais elevados. A nossa desigualdade tem sido agravada pela desigualdade entre indivíduos com maiores níveis de salário e rendimento.

Se olharmos para um por cento dos salários mais baixos, verificamos que têm crescido acima da média. De alguma forma os nossos salários mais baixos têm tido uma evolução positiva. Agora, essa evolução não se compara com o que acontece na parte superior. Nos salários dos indivíduos de maior rendimento, os um por cento mais ricos têm um crescimento muito maior. Em 2005, um por cento dos trabalhadores mais ricos têm sete por cento da massa salarial. Em 1985 era 4,6 por cento. Se olharmos para os um por cento dos salários mais baixos, também há uma evolução, mas pequena. Passaram de 0,3 por cento para 0,4 por cento. Temos aqui uma transferência da massa salarial da parte média da distribuição para a parte superior. É aqui que se tem vindo a ter ganhos muito grandes.

Estamos a falar de altos quadros?

Sim. Para grande parte dos trabalhadores portugueses, os nossos salários são muito inferiores à média europeia. Mas o salário dos dirigentes de topo das empresas (que hoje estão aqui e amanhã em Madrid ou em qualquer país do mundo) não é negociado tendo em conta o mercado de trabalho português. Estão noutro campeonato. São padrões que não são os nossos.

Quem ganha menos, permanece muito tempo nessa situação.

Nós não temos uma evolução negativa dos salários. Isso raramente tem acontecido. A generalidade das pessoas consegue ter níveis de crescimento positivos, embora pequenos. O que acontece é que o nosso crescimento dos rendimentos tem sido profundamente desigual.

Uns evoluem a velocidade de cruzeiro. Outros a passo de caracol...

Diria que uns vão a velocidade supersónica (risos).

Em que sectores há mais desigualdade salarial?

Em 1985 tínhamos 11 por cento de trabalhadores de baixos salários. Neste momento temos 13 por cento. Quando comparamos este limiar com o salário mínimo, verificamos que em 1985 um indivíduo que ganhasse o salário mínimo não era um trabalhador de baixo salário. Em 2005 isso não acontece. Quem recebe o salário mínimo é um trabalhador de baixo salário.

Repetindo a pergunta: quais são os sectores onde esta situação é mais visível?

O estudo foca trabalhadores que têm um emprego a tempo inteiro e salário completo. São os sectores mais tradicionais, quer industriais, quer de serviços. Utilizando os quadros de pessoal do ministério da segurança social, este estudo não tem em conta a função pública. Mas a identificação é standard. O diagnóstico não é muito diferente de há 20 anos atrás. Acontece o mesmo com a pobreza. São os idosos isolados, as famílias numerosas, as famílias monoparentais. Na desigualdade salarial são os sectores mais tradicionais como o têxtil e o pequeno comércio.

A qualificação tem aqui um grande peso?

Imenso. Se quisermos tentar perceber onde é que a diferenciação é maior, é claramente na educação. É a educação que separa os indivíduos mais pobres dos não pobres, dos de baixo salário dos outros. Não há uma única solução para a pobreza ou para a desigualdade. Mas seja qual for a solução passa pela educação. É inquestionável.

Quem tem um curso de economia terá mais oportunidades...

A percentagem de licenciados pobres é insignificante. Começamos a ter em algumas áreas de formação em termos de saídas profissionais. E começa a ser significativa a existência de licenciados que trabalham em funções abaixo das suas qualificações. É preciso corrigir os erros, mas é necessário relativizar. No quadro da pobreza em Portugal ainda é um factor muito insignificante. Ainda é um factor de diferenciação.

Há muitos licenciados a ganhar o mesmo há muito tempo.

Há situações em que, mesmo nos sectores mais dinâmicos como a banca, os jovens licenciados entram a ganhar - não diria mal face a média dos nossos ordenados – mas baixos para o nível de formação que têm.

E é uma tendência crescente?

Acontece nos sectores mais dinâmicos, Geralmente jovens licenciados são usados como mão-de-obra barata e descartável numa primeira fase de emprego. Penso que será um fenómeno com tendência a acentuar-se.

Claro que comparando com a média...

É preciso relativizar. Em grande medida ser licenciado ainda é uma grande protecção contra as situações de pobreza, mas isso não significa que não haja dificuldades.

Quais são as causas da pobreza em Portugal?

Há muitas. Portugal tem uma característica que não é muito comum aos restantes países europeus. A emergência de novas formas de pobreza, ligadas à concentração urbana ou à toxicodependência, surge quando os factores mais tradicionais de pobreza já estavam resolvidos. Em Portugal infelizmente, a nova pobreza nasce quando ainda não tínhamos resolvido a pobreza tradicional, mais rural. Temos duas placas tectónicas de pobreza que se sobrepõem, dificultando a identificação das suas causas e das políticas sociais necessárias para a combater. São precisas várias formas de combater a pobreza e vários actores.

Há um debate tolo sobre quem deve resolver este problema: se o Estado, se a sociedade civil. Têm de ser os dois. Por um lado, o Estado não se pode demitir das suas responsabilidades de através da política social e económica contribuir para uma sociedade mais justa. Por outro lado, o papel das instituições da sociedade é muito importante.

Significa que por si só o rendimento social de inserção (RSI) não vai resolver o problema.

O RSI é fundamental para acudir às situações de pobreza extrema. Todos os indicadores que têm sido apontados até agora mostram que o RSI é fundamental para reduzir a intensidade da pobreza. (...) Ninguém deixa de ser pobre por o receber. Não diminui a percentagem de pobres, mas sim o défice de recurso dos mais pobres entre os pobres.

Mas é preciso reduzir a incidência da pobreza. São necessárias medidas dirigidas aos sectores dos mais pobres entre os pobres. O complemento de solidariedade para idosos já é uma medida para diminuir a taxa de pobreza.

Refere que o combate ao desemprego não garante uma diminuição da pobreza em Portugal. A maioria da população mais pobre está empregada. Isso é fruto da desigualdade de rendimentos?

O combate ao desemprego e a criação de empregos com maiores níveis de qualificação constitui uma vertente fundamental para o combate à pobreza nas suas várias dimensões. No entanto, constituindo uma condição necessária ela não é suficiente. Em 2005 11,3 por cento da população empregue vivia em condições de pobreza e 34 por cento dos pobres era trabalhador por conta de outrem. Assim não basta criar empregos é necessário que esses empregos possibilitem um nível de recursos suficientes para uma vida digna e fora do âmbito das situações de pobreza. Claro que a desigualdade desempenha, em particular no caso dos pobres empregues, um aspecto fundamental do próprio fenómeno da pobreza. A riqueza presentemente criada se distribuída de forma mais equitativa reduziria substancialmente as situações de maior precariedade.

É frequente levantarem-se vozes preocupadas com a (pouca) produção de riqueza, mas não com a sua distribuição. As prioridades devem inverter-se?

Penso que mais do que falar em prioridades é importante que se considere como um todo o processo de criação da riqueza e da sua distribuição. Muitas vezes ouve-se dizer que é preciso criar primeiro a riqueza para depois esta poder ser distribuída. Não concordo com esta ideia. O modelo económico de criação de riqueza que existe é ele próprio criador de desigualdades e de pobreza. A actividade produtiva e o trabalho em particular devem ser encarados não somente numa perspectiva de eficiência mas também de equidade. Estou convencido que é possível caminharmos para um modelo que seja simultaneamente mais justo e mais eficiente.

Que medidas o Governo poderia tomar para lutar, de facto, pela erradicação da pobreza?

Por um lado, torna-se necessária uma política social capaz de articular medidas de tipo “corrector” com medidas “preventivas” da geração de novas desigualdades e de novos tipos de exclusão. Uma política social que articule políticas universais, com políticas selectivas dirigidas aos grupos sociais mais vulneráveis, que conjugue medidas que privilegiem colmatar o ‘défice de recursos” da população mais pobre com medidas visando o reconhecimento e a efectivação dos direitos. Mas mais uma vez gostaria de reafirmar que não bastam medidas específicas para combater situações extremas de pobreza. O combate efectivo e sustentado no tempo à pobreza implica um modelo económico mais justo, uma política fiscal com maior capacidade redistributiva, o conjugar de diferentes tipos de políticas.

Quem paga o preço pela economia pouco produtiva de Portugal são sempre os mesmos. Maior produtividade traz menos pobreza?

O baixo nível de qualificação, e consequentemente de produtividade, de largos sectores da população constitui inequivocamente um dos factores explicativos da pobreza. Geralmente neste âmbito refere-se muito a produtividade do factor trabalho. Estou convencido que a necessidade de maiores níveis de qualificação coloca-se tanto do lado dos empregadores como dos empregados e, em certa medida é injusto colocar sempre o ónus do lado dos trabalhadores. No entanto, das poucas certezas que nós temos na análise da pobreza em Portugal, é a de que a aposta na formação e na qualificação constitui o elemento determinante para a redução sustentada da pobreza e da desigualdade.

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