A utilização do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para reduzir o défice orçamental, associada a uma privatização crescente dos serviços de saúde públicos, está a provocar a degradação dos serviços de saúde em Portugal. Um dos instrumentos mais eficazes para destruir o SNS é através do seu estrangulamento financeiro. É precisamente isso o que têm feito os governos de Sócrates. E não será o súbito amor de Sócrates pelo Estado Social, por puro oportunismo político para assim convencer a opinião pública de que é diferente de Passos Coelho, que pode e deve ocultar esta verdade.
Se analisarmos a política de Sócrates em relação ao SNS utilizando os próprios dados oficiais, rapidamente se conclui que este súbito amor de Sócrates pelo SNS não tem nada de verdadeiro. É mais uma mentira a juntar a muitas outras, de que são exemplos o compromisso de não aumentar os impostos, de não mexer nas deduções fiscais das despesas de saúde e de educação, de criar 100 000 postos de trabalho, de aumentar o investimento público, etc., etc.
Os serviços de saúde prestados à população pelo SNS são pagos na sua quase totalidade (menos de 1% é coberto pelas taxas moderadoras) por transferências do Orçamento do Estado, as quais são financiadas por impostos pagos pelos portugueses. Quando o PSD defende no seu pré-projecto de alteração da Constituição da República que só os muitos pobres é que não devem pagar a saúde, o que está verdadeiramente a defender, embora depois procure negar, é que a maioria dos portugueses pague duas vezes pelos serviços de saúde prestados pelo SNS: uma primeira, através de impostos como sucede actualmente; e a segunda, que pretende introduzir, que passe a pagar taxas correspondentes aos custos dos serviços, portanto pesadas, quando utilizar os serviços do SNS.
O Quadro I, construído com dados oficiais, já que são os constantes dos Relatórios que acompanharam os Orçamentos do Estado do período 2005-2010, mostra como Sócrates tem procurado estrangular financeiramente o SNS, para assim reduzir o défice orçamental.
Em 2010, diferentemente do que tinha acontecido nos anos anteriores, as transferências para pagar as despesas de saúde dos funcionários públicos (ADSE, Defesa Nacional e Administração Interna) foram incluídas nas transferências directas para o SNS (até 2009, inclusive, o OE transferia uma verba para estes serviços do Estado, e depois eram eles que tinham de pagar ao SNS. Em 2009, essas transferências directas para a ADSE, e para os serviços de saúde das forças armadas e das forças de segurança totalizaram 509 milhões de euros). Portanto, para que os dados de 2010 fossem comparáveis com os dos anos anteriores tivemos de retirar às transferências do OE2010 para o SNS aquela importância.
Após a correcção referida anteriormente, a conclusão que se tira dos dados oficiais constantes do Quadro I é a seguinte: as transferências do Orçamento do Estado para o SNS em 2010, em termos reais, são inferiores às de 2005 em 196,3 milhões de euros. A preços de 2010 o SNS recebeu menos 216 milhões de euros em 2010 do que em 2003. E utilizámos para fazer estes cálculos o aumento verificado no Índice de Preços no Consumidor entre 2005 e 2010, quando é sabido que o aumento de preços dos bens de saúde foi muito superior. É evidente que esta redução, em termos reais, associada a um aumento significativo das despesas do SNS, com excepção apenas das despesas com pessoal, está a criar graves problemas financeiros ao SNS e aos Hospitais EPE, como vamos mostrar seguidamente.
Artifício para reduzir o défice orçamental
Uma das «habilidades» utilizadas pelos governos de Sócrates para reduzir o défice orçamental tem sido a de não transferir para o SNS o que era necessário para cobrir a totalidade das suas despesas. No entanto, se isso fosse feito continuando os hospitais públicos integrados no sector público administrativo, os prejuízos destes hospitais aumentariam automaticamente o défice orçamental. Para evitar isso, Sócrates transformou os hospitais públicos em hospitais empresa (HEPE), passando a ser entidades jurídicas autónomas, o que determina que os prejuízos acumulados neles já não são considerados para o défice orçamental, embora estejam a provocar a sua degradação, já que têm cada vez menos meios financeiros para prestar serviços de saúde de qualidade à população. Os dados do Quadro II, que são oficiais, pois foram divulgados pela Administração Central do Sistema de Saúde, IPO, do Ministério da Saúde, mostram os elevados prejuízos acumulados pelos Hospitais empresa no período 2003-2010, devido precisamente a transferências cada vez mais insuficientes do OE para o SNS.
No período compreendido entre 2003 e o 1.º Semestre de 2010, os Hospitais EPE (Hospitais empresa) acumularam 1764,9 milhões € de prejuízos (operacionais) resultantes da prestação de serviços de saúde à população, ou seja, o Orçamento do Estado transferiu menos 1764,9 milhões € do que esses hospitais tiveram de suportar de custos pela prestação desses serviços. Para poderem continuar a funcionar estes hospitais tiveram de utilizar verbas destinadas a investimento para pagar despesas correntes, através do chamado Fundo de Apoio aos pagamentos do SNS criado pelo Governo de Sócrates e financiado com dinheiro do capital estatutário dos Hospitais EPE, e por meio do endividamento significativo dos hospitais à industria farmacêutica. É por esta razão que, em Junho de 2010, as dívidas do SNS às farmacêuticas atingiam 869 milhões de euros (586 milhões € eram dívidas com mais de 90 dias), sendo as dívidas dos hospitais de gestão empresarial (EPE) 749 milhões €, e as das unidades do sector público administrativo (SPA), que contam para o défice orçamental, apenas de 119 milhões €.
Recurso a serviços privados agrava ainda mais a situação financeira do SNS
Uma situação que está a contribuir para agravar ainda mais a situação financeira do SNS e dos hospitais EPE é a crescente privatização dos serviços públicos de saúde através do aumento significativo do recurso a aquisição de serviços prestados por empresas privadas, como revelam os dados oficiais constantes do Quadro III.
Apesar das críticas feitas pelo Tribunal de Contas de que a forma como são apresentadas as contas do SNS não permite fazer uma análise fundamentada da sua situação, já que os valores do SNS e dos Hospitais EPE não eram consolidados (são apresentados separadamente), o Governo persiste no mesmo erro, certamente com o objectivo de ocultar à Assembleia da República e à opinião pública as consequências da política que tem seguido em relação ao SNS. Por isso, tivemos de somar os valores do SNS e dos Hospitais EPE por rubricas de despesa para se poder ficar com uma ideia da verdadeira situação financeira do SNS.
E os dados oficiais obtidos mostram de uma forma clara uma evolução diferente das despesas de pessoal e das restantes despesas. Entre 2007 e 2010, as despesas com pessoal diminuíram em 7,9% (passaram de 4116 milhões € para 3793 milhões €; só no 1.º semestre de 2010 foram inferiores em 25 milhões € às de idêntico período de 2009), enquanto no mesmo período (2007/2010) as despesas com a compra de produtos farmacêuticos (medicamentos), materiais de consumo clínico e outros materiais de consumo cresceram 22,2% (passaram de 2694 milhões € para 3290 milhões €; só no 1.º semestre de 2010, relativamente ao período homólogo de 2009, aumentaram em 142 milhões €), e as despesas com aquisições de serviços a empresas privadas aumentaram 7,4% (passaram de 1794 milhões € para 1927 milhões €; só no 1.º semestre de 2010, relativamente a idêntico período de 2009, aumentaram em 47 milhões €). Portanto, a redução do pessoal de saúde e o subaproveitamento de muitos serviços e equipamentos tem determinado o recurso à aquisição de serviços a empresas privadas o que tem determinado um crescimento significativo destas despesas (entre 2007 e 2010, as despesas com aquisição de serviços externos aumentou em 133 milhões €, prevendo-se que este ano atinja o impressionante valor de 1927 milhões €), o que está a agravar ainda mais a situação financeira do SNS, mas a dar milhões de euros de lucros a privados.
Perante a degradação da situação financeira do SNS a solução de Sócrates é reduzir pessoal, cortar serviços e aumentar a percentagem dos preços dos medicamentos paga pelos portugueses, que é já das mais elevadas dos países da União Europeia, enquanto a de Passos Coelho é obrigar uma parte significativa dos portugueses a pagar duas vezes os serviços de saúde (através de impostos e por meio do aumento significativo das taxas a pagar ao SNS).
Portanto, são soluções, na prática, muito semelhantes, já que os portugueses seriam (estão a ser já) obrigados a pagar mais pela saúde, mas muito mais com a solução de Passos Coelho, e quem não tem dinheiro não teria acesso à saúde. E isto apesar da tentativa de Sócrates de manipulação da opinião pública para se diferenciar de Passos Coelho, e assim se manter no poder.
É fácil de compreender que face ao agravamento da situação financeira do SNS; perante a falência técnica em que já se encontram muitas empresas públicas de transportes colectivos (CP, Metro, REFER, etc.); devido ao cancelamento por parte do governo de investimentos essenciais para modernizar a ferrovia convencional que liga os principais centros populacionais e assim promover o desenvolvimento equilibrado do País tornando-o menos dependente do exterior, e face à continuação do agravamento vertiginoso da dívida externa (entre Março de 2009 e Março de 2010, a dívida líquida do País ao estrangeiro aumentou de 169 960 milhões € para 184 734 milhões € segundo o Banco de Portugal, ou seja, em +8,6%, portanto um crescimento muito superior ao do PIB a preços correntes), continuar a investir em auto-estradas de tráfego reduzido, em TGVs, etc., é, a nosso ver, dar provas de ainda não ter percebido a verdadeira situação em que o País se encontra, é arrastar os portugueses para ainda maiores sacrifícios, porque ninguém pode ter a falsa ilusão de que tudo isto se faz sem um preço e sem sacrifícios ainda maiores para a esmagadora maioria dos portugueses. Mais do que nunca é necessário uma utilização rigorosa dos recursos escassos do País naquilo que é essencial para defesa do bem estar da maioria da população (SNS, empresas públicas de transportes colectivos, apoio aos atingidos pelo desemprego, aos pensionistas com reformas de miséria) e para o desenvolvimento equilibrado e sustentado do País (investimentos na modernização da ferrovia convencional, na agricultura, na pesca, na indústria), o que é evidente que não está a suceder.
Numa situação destas, assistir como tem acontecido ao crescimento escandaloso dos lucros dos grupos económicos; à situação daqueles que apresentam sinais exteriores de riqueza mas que continuam impunemente a não pagar os impostos devidos; à prescrição de milhões de euros de dívidas ao fisco; e à fuga e evasão em larga escala por falta de meios para fazer uma fiscalização eficaz e uma recolha atempada de impostos, nomeadamente os descontos dos trabalhadores, cujo número continua a reduzir-se devido à obsessão do défice, é chocante em relação a um governo cujo 1.º ministro diz defender o Estado Social.
http://www.avante.pt/pt/1921/temas/110494/
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