Correia da Fonseca
Voltaram recentemente algumas vozes, faladas ou escritas, para o caso tanto faz, a preconizar a privatização da RTP, ou melhor, da RTP1, a fatia mais apetitosa da velha Radiotelevisão Portuguesa, agora integrada numa empresa mais ampla que lhe manteve a sigla mas também absorveu a rádio pública, como aliás bem se sabe. A proposta de privatização da TV estatal, no todo ou na sua melhor parte, é quase tão antiga como a própria presença da televisão em Portugal, assemelhando-se a uma espécie de doença crónica que surge na sua máxima força de quando em quando, por surtos, talvez como a gripe. E tem vírus próprios, naturalmente. Um deles será o da inveja, não porque a posse de um canal de televisão seja garantidamente um património que permita arrecadar bons dividendos financeiros, longe disso, mas porque a inveja é, na nossa pequenina pátria, um relevante motivador de manobras e acções, geralmente más. Mais poderoso, porém, será um outro vírus: o que fundamentadamente assegura aos cobiçosos que a TV é arma poderosa no combate político e ideológico, nessa área permitindo embolsar dividendos verdadeiramente preciosos que não se contabilizam em euros nem sequer em dólares. Tudo isto é bem sabido, só sendo aqui recapitulado por uma questão de método, digamos assim, e a propósito das tais vozes agora surgidas. De resto, da acção da TV na luta ideológica bem sabem os comunistas e os que com eles estão no projecto de uma sociedade diferente e melhor: tem vindo a ser cada vez mais rara a presença nos televisores de quem exprima o pensamento da mais corajosa e consistente Esquerda, excepto nos breves minutos tornados obrigatórios pela presença de deputados comunistas na AR. E entre aquela curiosíssima espécie biológica de aparecimento recente, os chamados «politólogos», reconhecidos como sábios da Ciência Política, não se pressente que sequer um deles tenha ouvido falar do marxismo e considere a possibilidade de uma sociedade alternativa ao capitalismo selvático que continua a julgar-se senhor do planeta por todos os séculos dos séculos, amen.
Património nosso
Volta a haver por aí, pois, sinais de recidiva da velha maleita que se revela pelo desejo de ver o canal principal da RTP, pelo menos esse, entregue às maravilhas que os privados são capazes de obrar. Como muitos estarão recordados, em tempos Emídio Rangel garantiu, enquanto director da SIC, que poderia «vender» presidentes da República como quem vende qualquer outro artigo de transacção corrente; e ainda há poucos meses a drª. Manuela, que foi deputada do CDS-PP e era agora uma espécie de presidente executivo da TVI, esforçou-se imenso por «vender» a destituição do actual PM. A verdade é que nem Rangel vendeu nenhum PR nem Manuela conseguiu melhor que destituir-se a si própria ainda que por mãos alheias, mas estes dois exemplos ilustram talvez, por majoração, o sentimento de poder político/ideológico sentido pelos que mandam em canais de televisão. E, à escala internacional, há o caso, já confirmado pela prática, do poder de Berlusconi, consta que em tempos inspirador do dr. Balsemão, que em dia já distante se terá sonhado como o Berlusconi português. Ora, lucros contabilísticos à parte, a posse da RTP1 poderia proporcionar momentos de grande felicidade a quem a empalmasse, com perdão da palavra demasiado plebeia. Ora, se a necessidade aguça o engenho, a ambição estimula a manobra, pelo que talvez seja conveniente que se mobilizem os portugueses para impedir que o País seja esbulhado no todo ou em parte da televisão que é de todos os cidadãos mesmo quando é medíocre e esquece deveres. É que a mediocridade e a amnésia culposa têm cura bem mais fácil que a anulação de um roubo, e a eventual privatização da TV pública seria de facto como o roubo de um património colectivo. Convém notar que os ares estão favoráveis à pilhagem. Repete-se que a RTP é muito cara, escamoteando que só o é porque se afasta de funções que lhe cabem e se aplica a macaquear mal a mediocridade das privadas. Lembra-se que a alienação da TV daria uns dinheiros úteis para a redução do défice, o que seria um pouco como recorrer à prostituição para reforçar um orçamento doméstico. Mas o facto é que estão aí sinais de recidiva. Mais ainda que tomar a vacina contra a gripe A, será necessário defender o País da ameaça desta outra doença.
http://www.avante.pt/noticia.asp?id=32025&area=33
À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.
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