Anselmo Dias
O mote está lançado. O eficaz chefe da regulação do probo sistema financeiro português, Dr. Vítor Constâncio, já decretou, para que conste: os aumentos salariais não podem ultrapassar a fasquia de 1,5%.
Lançado o mote, segue-se o coro. Ei-los: o PS, os restantes partidos da direita, a CIP, a CAP, a Confederação do Comércio, os magnatas do turismo e demais associações patronais, os habituais comentadores, os ex-ministros e secretários de Estado ligados aos grandes negócios, todos eles, perfilados lado a lado, uma espécie de Mestres Cantores, a repetirem, quanto ao congelamento salarial, a ladainha do governador do Banco de Portugal.
Entretanto, a par de tal lenga-lenga quanto à moderação salarial, os lucros aumentam, o negócio da compra e venda de acções regressa aos bons velhos tempos da economia de casino, onde, no último ano, houve um crescimento em cerca de 34% no valor das 20 principais empresas cotadas em bolsa.
É evidente que a realidade consubstanciada na concentração de 66,5 mil milhões de euros nos accionistas de, apenas, 20 empresas, a brutal diferença de rendimentos e a má distribuição da riqueza produzida não faz parte do mote lançado pelo governador do Banco de Portugal.
Trata-se de uma realidade remetida para o Índex, para os assuntos proibidos, para o catálogo das coisas malditas que não devem ser ditas, escritas e divulgadas nos meios de comunicação social, porque, embora não haja, formalmente, o lápis azul dos coronéis da censura, há, convergentemente com os tempos do fascismo os interesses dos accionistas e tais interesses não podem ser beliscados.
Lançado o mote pelo governador do Banco de Portugal, afinado o coro e repetido à exaustão por tudo o que é meio de comunicação social a impossibilidade de aumentos reais do poder de compra dos trabalhadores portugueses, cabe-nos a nós a tarefa de repor a verdade dos factos, não com pretensão de dizer tudo como coisa acabada, mas dizer o suficiente, nesta fase de intenso ataque aos direitos dos trabalhadores, mobilizando-os para a a luta que há a travar.
Do muito que há a dizer queremos, apenas e só, salientar um aspecto, ou seja: divulgar junto dos trabalhadores a dimensão da taxa de rentabilidade dos capitais próprios das empresas, isto na perspectiva de provar que o patronato tem meios e recursos suficientes para suportarem aumentos salariais superiores aos recomendados pelo governador do Banco de Portugal.
Falemos, pois, da taxa de rentabilidade.
O que é isto?
Vamos supor que uma qualquer pessoa pretende investir um milhão de euros, num qualquer negócio.
Vamos admitir que após um ano de actividade esse investimento gera um lucro líquido de 100 000 euros.
Isto significa que a taxa de rentabilidade do capital próprio do investidor foi de 10%.
Se em vez de 100 000 o lucro equivalesse a 200 000 euros, isso significaria que a taxa de rentabilidade corresponderia a 20%.
A rentabilidade dos capitais próprios das empresas portuguesas
De acordo com os dados disponíveis do INE, reportados a 2007, a taxa de rentabilidade dos capitais próprios das empresas, com excepção do sector financeiro, foi de 10,17%.
Isto significa que comparativamente ao ano anterior houve uma melhoria dessa taxa em cerca de 6,6%, valor que supera aquilo que foram os aumentos médios salariais do sector privado da economia, facto que desmonta a hipócrita teoria de que é preciso primeiro criar riqueza para depois a distribuir.
Os dados atrás referidos não são homogéneos a todos os sectores e empresas.
Há diferenças que importa sublinhar.
Com efeito, desde há muitíssimo tempo (e só não vê quem não quer), no sector da hotelaria e restauração as taxas de rentabilidade são mais elevadas do que a média nacional, o mesmo acontecendo às actividades imobiliárias, ao aluguer e serviços prestados às empresas (maquinaria, transportes, segurança, limpeza, consultoria, contabilidade, etc), educação e saúde.
Em termos percentuais as maiores taxas de rentabilidade distribuem-se pelas actividades de serviços colectivos, sociais e pessoais, com valores na ordem dos 19,44%, a que se seguem a saúde, com 17,09%, e a educação, com 16,27%, o que comprova o apetite do grande capital pela privatização das funções sociais do Estado.
Esta pretensão foi recentemente defendida por um ex-ministro de um governo socialista, Daniel Bessa, que em entrevista ao jornal Público de 4 de Janeiro disse rigorosamente isto: «o Estado deve privatizar escolas e hospitais», opinião, reiterada, na televisão, no dia seguinte, por Nogueira Leite, personagem rendido às teses do PSD e ex-secretário de Estado também de um governo socialista, tese aplaudida de imediato por um dirigente do CDS-PP, o deputado Diogo Feio.
Eis, em toda a sua plenitude, a confluência ideológica e negocial (para os negócios) desta santíssima trindade que, não satisfeita com a destruição do sector empresarial do Estado, a pretexto da modernização da economia, vem, agora, a pretexto da resolução do défice, reclamar a privatização das funções sociais do Estado.
Mas voltemos ao tema que estávamos tratando, as taxas de rentabilidade: convém dizer que as percentagens atrás referidas dizem respeito a sectores.
Se desdobrarmos esses valores pelas empresas os resultados ainda são mais gritantes.
Com efeito, na base da listagem das 1000 maiores empresas publicada pelo Jornal de Notícias
de 11/12/2009, analisámos aquelas com mais de 1000 trabalhadores tendo sido retirada a conclusão da existência de um numeroso grupo de empresas com taxas de rentabilidade verdadeiramente leoninas.
Vejamos, a título de exemplo, algumas delas:
Taxas de rentabilidade entre 15% e 20%: Petrogal, EDP-Gestão de Produção de Energia, Pingo Doce, Mota-Engil, Soares da Costa, Continental-Mabor, Zagope-Construções e Engenharia, Securitas, Vedior-Psicoemprego;
Taxas de rentabilidade entre 20% e 30%: TMN, Vodafone, Dia Portugal-Supermercados, Siemens, Bosh Termotecnologia, Esegur-Empresa de Segurança, ITAU-Instituto Técnico de Alimentação, Humana, Adecco Recursos Humanos, TST-Transportes Sul Tejo;
Taxas de rentabilidade entre 30% e 40%: Worten-Equipamentos para o Lar, Sport Zone-Comércio de Artigos de Desporto, Gertal-Companhia Geral de Restaurantes e Alimentação, EDP-Distribuição de Energia (não confundir esta empresa com a anterior ligada à Gestão de Produção de Energia);
Taxas de rentabilidade entre os 40% e os 50%: Galpgeste-Gestão de Áreas de Serviço, Galp-Gás Natural, Companhia IBM Portuguesa;
Taxas de rentabilidade superiores a 50%: FNAC Portuguesa, Zara Portugal, Autsources-Prestação de Serviços.
A batalha da participação, da informação e do esclarecimento
Como se vê através dos exemplos atrás referidos, há empresas com vultuosos lucros e com elevadas taxas de rentabilidade.
É preciso divulgar esses dados, transmiti-los, por formulação acessível, aos trabalhadores, na perspectiva de potenciar a luta por salários mais elevados.
As actualizações salariais, em sede de convenções colectivas, têm de ultrapassar a ritualização das negociações, muitas vezes centradas unicamente nos negociadores, valorizando-se, como opção estratégica, a participação dos trabalhadores em todos os momentos, desde a fase de preparação da proposta a apresentar ao patronato, passando pelo acompanhamento constante das negociações, até ao momento da assinatura do acordo. E sempre que tal acordo não satisfaça, nunca deve ser perdida de vista a possibilidade da existência de cadernos reivindicativos no sentido de se obter aquilo que não foi conseguido na mesa das negociações.
As actualizações salariais, em sede de convenções colectivas, têm, também, de ultrapassar os parâmetros tradicionais da sua indexação apenas à taxa de inflação.
A ponderação do valor da inflação é importante, mas as actualizações salariais devem ter em conta outros indicadores, que devem ser transmitidos aos trabalhadores:
– seja a exigência de, em Portugal, o coeficiente entre os mais ricos e os mais pobres tender a aproximar-se da média europeia;
– seja a exigência de reverter para os trabalhadores uma parte da taxa de rentabilidade das empresas por forma a que, ao factor trabalho, corresponda uma maior quota parte da riqueza produzida.
A liberdade negocial propalada pelo Governo não pode ser uma liberdade similar àquela que os peixes têm dentro de um aquário: a liberdade de nadar circunscrita à reduzida dimensão do aquário.
A liberdade negocial não pode, pois, ser limitada predominantemente à dimensão da taxa de inflação, esquecendo um enorme espaço, ou seja, a multiplicidade de factores que envolvem as relações capital/trabalho.
A este propósito tem todo o sentido levantar a seguinte questão: que sentido faz a reposição do poder de compra circunscrito, apenas, a uma taxa de inflação de 1% ou 2%, quando, por exemplo, a FNAC beneficia de taxas de rentabilidade dos capitais próprios na ordem dos 58,5%?
E quando a Zara Portugal usufrui taxas na ordem dos 52,8%?
E quando a Galpgeste – Gestão de Áreas de Serviço, tem uma taxa de 48,6%?
Que sentido faz?
Importa esclarecer que estamos, apenas, a falar de um reduzido número de empresas. Se alargarmos o universo a outras de menor dimensão, a escandalosa rentabilidade dos capitais próprios não diminui, rentabilidade alicerçada nos baixos salários e na formação obscena dos preços dos produtos.
Os mais cépticos querem exemplos?
Vejam os 95,5% da BP Gest 24-Postos de Abastecimento-Lojas de Conveniência, empresa com 503 trabalhadores.
Vejam os 90,2% da Sierra Management Portugal-Centros Comerciais, empresa com 194 trabalhadores.
Vejam o que se passa na generalidade do mundo empresarial, não esquecendo que por baixo de muitas contas oficiais há muita manipulação, há muita engenharia financeira e contabilística para passar a ideia de um cenário virtual de prejuízos, por forma a justificar a fuga ao pagamento de IRC e ao pagamento de salários mais elevados.
Finalmente duas observações:
1.ª observação: Recentemente, no contexto da actualização do salário mínimo, a generalidade do patronato ligado às micro e pequenas empresas vociferou contra o aumento de 25 euros.
É tempo de este patronato passar a acertar no alvo certo.
É tempo de analisarem os lucros, em termos absolutos, e as taxas de rentabilidade das grandes empresas ligadas aos combustíveis, à electricidade, às comunicações, às taxas de juro impostas pelo sistema financeiro e reclamarem a formação justa desses preços, por forma a baixar o custo dos factores de produção, em vez de propalarem a impossibilidade de aumentar o salário diário dos seus trabalhadores em 80 cêntimos.
2.ª observação: Quantos e quantos desempregados não estão confrontados com um subsídio substancialmente diminuído, comparativamente ao salário real que usufruíam enquanto trabalhadores no activo?
Quantos e quantos reformados não são vitimas de idêntica situação?
É óbvio que a explicação principal reside, num caso e outro, nos baixos salários.
Há, porém, uma explicação adicional. E essa diz respeito
a sub-declaração salarial, entregue pela entidade patronal à Segurança Social.
Com efeito, por cada 100 euros devido ao trabalhador, a entidade patronal poupa 23,75 euros pela sub-declaração. Multiplicando este valor por milhares e milhares de trabalhadores estaremos, decerto, perante muitos milhões de euros, parte dos quais ocultos pelas faces ocultas espalhadas por esse país fora.
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Fontes:
–INE;
– Jornal de Notícias de 11/12/2009,
– Diário de Notícias de 31/12/2009;
– Jornal Público de 4/1/2010.
http://www.avante.pt/noticia.asp?id=32022&area=19
À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.
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