Anselmo Dias
O país está armadilhado, não no sentido de caçar animais, mas no sentido de extorquir, ainda mais, o factor trabalho.
Tal estratagema, montado pelo bloco central de interesses, é transversal a todas as relações sociais, começando na exploração desenfreada das relações laborais e acabando na tentativa de lavagem ao cérebro da população fazendo crer que a crise que o País atravessa começou no dia tal, às tantas horas, no andar X, do edifício Y, em Wall Street, Nova Iorque, EUA.
Tal crise, qual onda hertziana, propagou-se rapidamente, atingindo de supetão o território lusitano, levando o primeiro-ministro a declarar que o mundo mudou de uma forma tão dramática e repentinamente, só comparável, segundo decorre da sua própria ficção, à ficcional mudança havida nos tempos bíblicos, nos primórdios da Humanidade, quando no paraíso uma maldita serpente, ao serviço do demónio, instigou Eva a dar uma dentada no fruto proibido. A mudança, nos termos descritos por Sócrates, tem, pois, esta dimensão bíblica. Nem mais, nem menos, caros leitores.
A crise, vinda de fora, demoníaca, infernal, qual malformação derivada da falta de ética, aí está, diz ele, tese repetida pelos seus companheiros e respectivas companhias.
Quanto a nós, a crise em Portugal tem uma outra explicação.
Sem pôr em causa os evidentes e notórios efeitos da crise do sistema capitalista internacional, convém, sobre o assunto, pôr os pontos nos «is».
A crise no nosso País é uma crise instalada há muito tempo, é estrutural, endémica, tão endémica quanto o tempo das presidências e da governação de Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio, Cavaco Silva, António Guterres, Durão Barroso, Santana Lopes, José Sócrates e respectivos acólitos, comitivas e interesses, sobretudo estes.
A crise em Portugal tem uma explicação material, objectiva, tem responsáveis e tem rostos, associados todos eles aos interesses dos negócios dos grandes accionistas das grandes empresas.
A explicação reside na opção por um modelo de desenvolvimento implementado à revelia do espírito e da letra da Constituição, quer na sua redacção inicial, quer, inclusive, no texto actual.
A explicação reside na implementação de um modelo de desenvolvimento baseado no endeusamento do livre funcionamento do mercado, em oposição a um modelo que há 35 anos propugnava a existência de uma organização económica e social alicerçada na planificação, tendente à construção de uma economia socialista, através da adequada transformação das relações de produção.
O horror à planificação, contrariando o texto da Constituição, contribuiu para formatar os comportamentos daquelas personagens ao livre funcionamento do mercado, na convicção, abençoada pelos idólatras do neoliberalismo, de que este modelo era o alfa e o ómega das relações económicas, ou seja , o fim da história quanto à produção e à circulação de bens e serviços.
O resultado está à vista.
Um país endividado. Um país, pelas práticas de direita, de mão estendida, estigmatizado, curvado aos interesses dos agiotas. Um país submetido aos ditames das grandes potências, como se Portugal não fosse um Estado livre, soberano e independente e fosse, apenas, um mero protectorado do eixo franco-alemão e dos burocratas de Bruxelas. Um país deficitário, cujos défices correspondem à soma dos défices políticos derivados da opção de um modelo de desenvolvimento que desprezou a produção em benefício da «economia de casino».
O que sobrou do investimento desbaratado, do investimento não produtivo, do jogo bolsista, da especulação, do assalto aos dinheiros públicos, do «gamanço legal» perpetrado pela oligarquia reinante e seus apaniguados, o que sobrou de tudo isto faltou, naturalmente, no investimento produtivo na agricultura, nas pescas, nas indústrias, na investigação científica e na cultura.
Dos muitos exemplos que poderíamos dar relativamente às causas que determinaram o número e a amplitude dos défices vejamos o caso de alguns aspectos ligados à agricultura.
Alguns exemplos do défice alimentar
1. Sector hortícola
Entre 2000 e 2009 importámos produtos no valor de 1447 milhões de euros e exportámos produtos no valor de 611 milhões de euros, ou seja, tivemos naquele período um défice acumulado de 836 milhões de euros. Em termos anuais, o défice superou sempre os 55 milhões de euros, tendo havido, em 2007, um recorde negativo na ordem dos 120 milhões de euros.
Os produtos que mais contribuíram para esse défice foram a batata de conservação, a cebola de consumo e o tomate, provenientes sobretudo de Espanha, França e Alemanha.
2. Sector frutícola
Entre 2000 e 2009 importámos produtos no valor de 3825 milhões de euros e exportámos produtos no valor de 1212 milhões de euros, ou seja, tivemos naquele período um défice acumulado de 2613 milhões de euros. Em termos anuais, o défice superou sempre os 225 milhões de euros, tendo havido, em 2008, um recorde negativo na ordem dos 290 milhões de euros.
Os produtos que mais contribuíram para esse défice foram a banana, a maçã, o ananás e a laranja, produtos que no seu conjunto representam cerca de 60% dos frutos comprados no estrangeiro, designadamente em Espanha, Costa Rica, Brasil, Equador e França.
Acresce ao défice atrás referido as importações de melão e da uva de mesa.
3. Sector do azeite
Embora o Observatório dos Mercados Agrícolas e das Importações Agro-Alimentares não tenha, no estudo a que tivemos acesso, quantificado em euros o valor do comércio internacional, aquilo que resulta dos dados disponíveis evidencia um défice sistemático ao longo dos anos.
(Abrimos aqui um parêntesis para recordar o seguinte: quem não se lembra do estímulo dado por Cavaco Silva, enquanto primeiro-ministro, à destruição do nosso olival?)
Com efeito, na área do azeite o País é deficitário, com as importações sempre a subir até 2006, período a partir do qual, derivado dos grandes investimentos feitos pelos espanhóis no Alentejo, tem havido dois movimentos:
- uma diminuição das importações;
- um aumento das exportações. Contudo o saldo é negativo, isto num país que representa apenas 2% do total do azeite produzido mundialmente, enquanto que aqui ao lado, em Espanha, essa quota é de 40%, ou seja, cerca de 20 vezes mais. É obra.
4. Sector pecuário
No conjunto da produção agrícola a produção animal representa um pouco mais do que 1/3 do total, assim subdividido:
- leite e lacticínios, 11,4%
- suínos, 8%;
- aves e ovos, 6,8%;
- bovinos, 5,8%;
- ovinos e caprinos, 2,1%.
Vejamos cada um destes sectores.
4. 1. Sector do leite e lacticínios
O nosso País é deficitário nesta área tendo, em 2008, havido um preocupante défice de 227 milhões de euros. Para esse défice muito contribuíram os produtos com alto valor acrescentado, como sejam os queijos e os leites fermentados.
Os nossos maiores fornecedores são a Espanha, a Bélgica no caso da manteiga e a Alemanha e a França no sector dos queijos.
Registe-se que na última década é notório que, em valores despendidos com as importações, estas têm vindo a crescer nos iogurtes, queijos, requeijão, manteiga e soro de leite.
4. 2. Sector da carne de suínos
Entre 2000 e 2007 importámos carne de suíno no valor de 1595 milhões de euros e exportámos produtos no valor de 67 milhões de euros, ou seja, tivemos um défice acumulado de 1528 milhões de euros em oito anos. Em termos anuais, durante aquele período, o défice superou sempre os 152 milhões de euros, tendo, em 2007, atingido o preocupante valor de 224 milhões de euros.
Esta drenagem de dinheiro tem revertido para Espanha, de longe o principal fornecedor de carne suína a Portugal, tendo aquele país, em 2007, atingido uma quota de 94% do total das nossas importações.
4. 3. Sector da carne de aves e ovos
Entre 2000 e 2007 importámos carne de aves no valor de 269 milhões de euros e exportámos produtos no valor de 35 milhões de euros, ou seja, tivemos um défice acumulado de 234 milhões de euros em oito anos. Em termos anuis, durante aquele período, o défice superou sempre os 16 milhões de euros, tendo havido, em 2007, um recorde negativo na ordem dos 46 milhões de euros.
A Espanha é o nosso principal fornecedor, com uma quota de mercado na ordem dos 50%, a que se seguem a Itália e a França.
Quanto aos ovos, no período atrás referido importámos cerca de 71 milhões de euros e exportámos 46 milhões de euros, ou seja, tivemos um défice de 25 milhões de euros.
O nosso principal fornecedor, como não podia deixar de ser, é a Espanha.
Embora em termos financeiros o défice comercial não seja muito vultuoso vale a pena reproduzir parte de um texto elaborado pelo Observatório dos Mercados Agrícolas e das Importações Agro-Alimentares:
«A capacidade de alojamento de ovos em Portugal tem vindo a diminuir devido aos imperativos das regras da Comissão Europeia, segundo as quais os avicultores são legalmente obrigados a cumprir as deliberações tomadas no sentido da defesa do bem estar animal, da saúde pública e do ambiente, pois, devido à grave crise de mercado registada até 2005, os produtores ficaram descapitalizados, não tendo capacidade para reestruturar as explorações. Isto origina uma diminuição da produção e, consequentemente, das exportações. Deste modo, para manter os níveis de consumo, as importações crescem».
4.4. Sector da carne de bovino
Entre 2000 e 2007 importámos carne de bovino no valor de 1945 milhões de euros e exportámos produtos no valor de 10 milhões de euros, ou seja, tivemos um défice acumulado em oito anos de 1935 milhões de euros. Em termos anuais, durante aquele período, o défice superou sempre os 140 milhões de euros, tendo havido, em 2007, um recorde negativo na ordem dos 355 milhões de euros.
Estamos a falar de um dos maiores défices na área alimentar, cujo maior fornecedor é a Espanha, com uma quota de mercado próxima dos 50%, a que se segue a Holanda com uma quota de cerca de 21%.
4. 5. Sector da carne de ovino e caprino
Entre 2000 e 2007 importámos carne de ovino e caprino no valor de 227 milhões de euros e exportámos produtos no valor de 5 milhões de euros, ou seja, tivemos um défice acumulado em oito anos de 222 milhões de euros. Em termos anuais, durante aquele período, o défice superou sempre os 23 milhões de euros, tendo havido, em 2000, um recorde negativo na ordem dos 30 milhões de euros.
Os nossos maiores fornecedores são a Nova Zelândia e a Espanha.
Conclusão
Os exemplos atrás referidos não esgotam nem o universo dos produtos que integram o défice alimentar nem, tão pouco, a sua dimensão económica.
Com efeito, não falámos do peixe, nem dos cereais, nem dos múltiplos produtos importados inseridos na cadeia agro-alimentar, que enxameiam as prateleiras das grandes superfícies.
Contudo os exemplos constantes neste artigo evidenciam, todos eles, três aspectos importantes:
- são bastante vultuosos;
- são estruturalmente constantes;
- são predominantemente de origem europeia.
Como já em anteriores artigos dissemos, importámos em 2009 produtos alimentares e animais vivos no valor de 6079 milhões de euros, enquanto as exportações se quedaram por 2371 milhões de euros, ou seja, o défice alimentar equivale a 3708 milhões de euros (Nota: estes valores não integram as bebidas alcoólicas e o tabaco).
Trata-se de um valor muito vultuoso que, a somar aos défices na área da energia, dos produtos químicos e farmacêuticos e do material de transporte explicam, objectivamente, aquilo que as vozes dominantes na comunicação social procuram ocultar, ou seja, a umbilical relação entre a produção e o défice orçamental e a dívida pública.
Tais défices emanam da sub-produção de bens transaccionáveis, facto que explica um vastíssimo conjunto de problemas colaterais, considerados «as causas» pelas vozes do dono, quando, em nossa opinião, são meras «consequências».
Sem que haja uma clara vontade política no desenvolvimento das nossas forças produtivas vocacionadas quer para a exportação de produtos com incorporação de média e alta tecnologia, quer para a produção substitutiva das importações, sem que isto seja feito, o caminho que nos indicam é o caminho da recessão, é o caminho para o abismo.
Parafraseando uma frase muito em voga há umas décadas a propósito do défice orçamental e da dívida pública, diríamos: «É a economia, estúpido!»
É a economia, mas não só.
É também o «gamanço», ou sejam, os casos de polícia, não os da GNR ligados aos roubos numa qualquer capoeira pelos chamados «pilha-galinhas», mas os da Polícia Judiciária no que diz respeito aos roubos de «colarinho branco» em tudo o que é sistema financeiro e grandes negócios.
O País tem, pois, à sua frente várias batalhas, três das quais são cruciais:
- A batalha sem tréguas contra os interesses da oligarquia, capitaneada por um reduzido grupo de famílias que tomaram conta do poder político e cujo domínio nos sectores estratégicos da economia deve regressar, nas condições que o povo vier a definir, ao sector empresarial do Estado, designadamente na área da banca, dos seguros, dos combustíveis, da electricidade e das comunicações.
- A batalha contra a corrupção e contra o poder que a mesma tem na dissolução do exercício do poder democrático;
- A batalha pela produção nacional, com especial destaque para o sector agrícola.
Sector agrícola que, a curto prazo, estaria em condições de propiciar resultados positivos sem a necessidade de grandes recursos, quer financeiros quer tecnológicos, como serão os que se exigem em outros sectores altamente deficitários, como sejam os casos dos combustíveis, dos produtos químicos e farmacêuticos e do material de transporte.
Sector agrícola que, a ser desenvolvido, induziria efeitos positivos, quer na indústria quer nos serviços.
Sector agrícola que, a ser potenciado, evitaria a colossal drenagem de recursos financeiros para o estrangeiro, a par da melhoria do défice orçamental e da dívida pública.
Sector agrícola que, a ser desenvolvido, teria efeitos positivos na redução do desemprego, no aumento das receitas em sede de IRS, IRC e IVA, na melhoria dos saldos do sistema público de Segurança Social, na fixação de pessoas no interior do País, evitando a dramática desertificação, designadamente dos distritos cujas fronteiras confinam com a Espanha.
Sector agrícola que devia ser defendido das garras predadoras das grandes superfícies, cujo poder negocial esmaga os preços agrícolas e agro-alimentares tipificado, a título de exemplo, na absorção de 71% no preço final da maçã «golden delicious», de 70% do preço final nos produtos hortofrutícolas e de 63% no preço final da pêra-rocha
É um fartar vilanagem que ajuda a explicar as fortunas dos senhores Belmiro de Azevedo, Alexandre Soares dos Santos, entre outros, personalidades muito envolvidas na recente reeleição de Cavaco Silva, um homem que se reclama do povo, e que teve como chefe do estado-maior da sua recente campanha eleitoral um alto dirigente do grupo Jerónimo Martins, substituindo o da última eleição, proveniente do BPN.
Sector agrícola, cujo progresso, tendente à satisfação das necessidades alimentares dos portugueses, teria efeitos na ultrapassagem da vulnerabilidade estratégica do nosso País, sabido como se sabe a forma como os Estados Unidos utilizam, por exemplo, a nível planetário, os cereais como arma alimentar no contexto da sua estratégia de domínio.
Portugal precisa não só de produzir alimentos para o nosso dia-a-dia como para garantir uma estratégica reserva alimentar tendente a fazer face a qualquer eventualidade, seja no plano dos conflitos, seja numa qualquer calamidade, seja no combate à formação especulativa dos preços.
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Fontes:
- Estatísticas do Comércio Internacional, INE;
- Observatório dos Mercados Agrícolas e das Importações Agro-Alimentares.
http://www.avante.pt/pt/1940/temas/112380/
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