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03/02/2011

O desemprego em Portugal num contexto de crise financeira: números e desafios

Frederico Cantante

A qualificação da população é o principal factor competitivo das economias nas sociedades actuais. E, nesse sentido, afigura-se também como uma variável decisiva para a compreensão do aumento do desemprego em Portugal.

O debate público em Portugal nos últimos dois anos tem sido marcado, de forma bastante veemente, por números, nomenclaturas e instituições associado(a)s ao campo financeiro[1]. A crise de 2008 trouxe consigo para a ribalta mediática indicadores estatísticos, conceitos e agentes desse campo até aí na penumbra do debate público. Quantos de nós conheciam a escala alfabética por meio da qual o risco da nossa dívida era classificado? Quantos estavam a par dos juros da dívida soberana portuguesa, no mercado primário e secundário? Quem conhecia a centralidade das agências de notação (rating) nos processos de financiamento das economias nacionais? Certamente muitos menos do que após a derrocada do sistema financeiro norte-americano e mundial.
A crise iniciada em 2008 concentrou o âmbito do debate público e político. Uma boa parte das perspectivas que em Portugal têm discorrido sobre as causas da crise financeira no país e sobre as medidas a adoptar para dela se sair caracterizam-se por autonomizarem o problema financeiro. A crise financeira é por elas equacionado enquanto realidade em si cuja possibilidade de superação depende essencialmente da diminuição dos défices anuais do Estado e do endividamento externo do país. Combate-se um problema financeiro recorrendo a medidas de cariz financeiro. Noutros casos, a abordagem ao problema financeiro entrecruza-se com a análise do campo económico. As medidas de austeridade afectam a actividade económica, mas a superação dos défices orçamentais e do endividamento externo estão dependentes do crescimento da economia portuguesa. A este nível emergem normalmente dois conceitos quase mágicos: “exportações” e “produtividade”. Como fazer a economia portuguesa crescer? “Aumentando as exportações e a produtividade”. Porquê? “Porque o país importa mais do que exporta e além disso tem uma baixa produtividade” (e, já agora, “leis laborais muito rígidas”). Importa, no entanto, sublinhar que a pertinência dessa lógica de pensamento é aplicável tanto a Portugal como à maior parte (totalidade?) dos países do mundo. De facto, a relevância do equilíbrio da balança comercial e a melhoria da qualidade/quantidade do trabalho produzido são verdades que antes de o ser já o eram.
A este tipo de narrativa quase circular, que prescreve e repete estratégias de desenvolvimento económico academicamente correctas, mas desfocadas dos mais sérios problemas estruturais da economia portuguesa, interessa opor uma análise do mercado de trabalho focada no principal factor de produção e competitividade das economias num mundo que se estrutura essencialmente em torno do conhecimento: o capital humano. O exercício que aqui se ensaiará é o de olhar para a economia portuguesa a partir daqueles que, embora queiram participar no processo de produção de riqueza, estão excluídos do mesmo: os desempregados. É nesse grupo que se revelam, em grande parte, os problemas e desafios que se colocam à economia e à sociedade portuguesa e, portanto, à capacidade do país para fazer face aos seus problemas financeiros no médio e longo prazos.
Desde há mais de dez anos que a taxa de desemprego em Portugal tem vindo a aumentar. Até 2008, de forma relativamente gradual. Mas, nos últimos dois anos, essa tendência agudizou-se. Entre o 3º trimestre de 2008 – período que marca o início das falências dos bancos e seguradoras norte-americanas – e o período homólogo de 2010 o número de desempregados em Portugal estimados pelo INE a partir de uma amostra representativa da população portuguesa aumentou 40,5%. Isto é, um crescimento de cerca de 175 mil desempregados, que fixou a taxa de desemprego nos 10,9%. Esta é a consequência mais relevante e o dado mais revelador dos efeitos na economia portuguesa da crise financeira iniciada em 2008. É a consequência mais relevante porque é um factor determinante no condicionamento da capacidade de geração de riqueza do país, porque tem implicações directas na diminuição das receitas do Estado e da Segurança Social, bem como no aumento das despesas com a protecção social, mas sobretudo porque multiplica o risco de pobreza dos indivíduos e famílias por ele afectadas.
O aumento acentuado do desemprego durante a crise financeira e económica pode também ser usado, tal como foi referido, como fonte de revelação de alguns dos principais problemas que se colocam à economia portuguesa. Embora a taxa de desemprego em Portugal seja mais baixa nos grupos etários mais velhos, foi sobretudo entre os activos com mais de 35 anos que se verificou um aumento mais pronunciado do número de desempregos entre o 3º trimestre de 2008 e o período homólogo de 2010. Quer na faixa etária dos 35-44 anos, quer na dos 45-64 anos, este indicador aumentou mais de 50% no intervalo em causa. Estes são os grupos etários que apresentam uma menor qualificação escolar relativa e que, neste sentido, se assumem como a grande maioria dos 419 mil desempregados estimados pelo INE que, no 3º trimestre de 2010, não tinham ido além do 9º ano de escolaridade. No intervalo temporal em análise, o número de desempregados com este perfil escolar aumentou 40%, um valor portanto muito próximo da variação homóloga para o total de desempregados.
No entanto, foi na categoria dos concluíram no máximo o ensino secundário/pós-secundário que se verificou um aumento relativo mais pronunciado do número de desempregados entre os dois trimestres mencionados. Embora em termos absolutos esta categoria tenha uma expressão bem menor do que a registada pela que integra os desempregados que não foram além do 9º ano, entre o 3º trimestre de 2008 e o período correspondente de 2010 o número de desempregados com este perfil escolar aumentou cerca de 85%. Ora esta é uma categoria de desempregados principalmente composta por indivíduos com idades até aos 34 anos.
O aumento do desemprego nos últimos dois anos parece assim ter incidido sobretudo em dois grandes grupos de trabalhadores: um primeiro mais velho e com qualificações escolares baixas ou muito baixas; um outro composto por activos mais jovens e com qualificações intermédias. Este diagnóstico, que é aproximativo e não esgota o conjunto de variáveis de caracterização sociográfica passíveis de serem convocadas para este tipo de análise, permite identificar problemas específicos que se colocam ao mercado de trabalho e à economia portuguesa. De facto, um país que não quer assentar as vantagens comparativas da sua economia nos baixos custos da mão-de-obra disponível necessita de elevar de forma muito decisiva o perfil escolar da população activa. Além de a mão-de-obra em Portugal ser comparativamente desqualificada ao nível das suas habilitações formais, os dados disponíveis indicam que os níveis de literacia da população portuguesa com menores qualificações escolares se situam bastante abaixo dos valores médios registados nos países da OCDE para as populações que detêm esse tipo de perfil habilitacional. Ou seja, estamos perante um tipo de mão-de-obra pouco preparada para fazer face a desafios laborais mais complexos e exigentes. Apesar de as competências e os níveis de literacia serem variáveis entre a população que tem baixas qualificações escolares, não há dúvida de que a situação de desemprego dos activos que têm este tipo de perfil se deve sobretudo à sua falta de preparação para a produção de bens e serviços a preços comparativamente vantajosos. Este é o principal problema estrutural da economia portuguesa que, sendo muito anterior à crise financeira e económica, foi por ela potenciado e evidenciado.
Não é também novidade o facto de a taxa de desemprego dos que concluíram no máximo o ensino secundário/pós-secundário ser superior ao valor desse indicador para o total da população activa. Mas não deixa de ser significativa a amplitude da variação do número de desempregados com esse perfil escolar entre os terceiros trimestres de 2008 e 2010, quando comparada com o verificado para o total da população activa. Os níveis de escolarização secundária ou pós-secundária da população activa portuguesa afiguram-se bastante baixos no contexto dos países da União Europeia. E, no mercado de trabalho interno, o número de trabalhadores com este tipo de habilitação escolar é bastante reduzido. Como explicar então que o número de desempregados com qualificações intermédias tenha aumentado quase 85% em dois anos e apresente uma taxa de desemprego a aproximar-se dos 12%? Duas hipóteses de resposta podem ser sumariamente avançadas.
Embora nos últimos anos se tenha procurado inverter esta tendência, a verdade é que o principal roteiro para a frequência do ensino secundário em Portugal – mesmo para os alunos que não planeiam prosseguir os estudos terciários – têm sido os cursos científico-humanísticos. Até que ponto a destituição de competências profissionais específicas da maior parte da população com habilitações escolares intermédias pode explicar uma hipotética desadequação deste tipo de mão-de-obra face às competências laborais exigidas no mercado de trabalho? Mas, por outro lado, não poderá este fenómeno estar também associado à incapacidade de aproveitamento das competências detidas pelos trabalhadores com qualificações intermédias por parte de empregadores que apresentam eles próprios níveis de escolaridade abaixo do verificado para o total da população empregada?
Nesta aproximação sumária às tendências do desemprego nos últimos dois anos, interessa sublinhar um terceiro fenómeno, que é talvez um dos principais problemas que o país vai ter de enfrentar nos próximos anos: o aumento do tempo de permanência numa situação de desemprego. No 3º trimestre de 2010 mais de metade da população desempregada estava nessa situação há mais de 12 meses: 32,8% no grupo etário dos 15-24 anos; 53,8% no grupo dos 25-49 anos e 72,9% no grupo dos 50-64 anos. Por outro lado, entre o 3º trimestre de 2008 e o período homólogo de 2010, o número de desempregados nessa situação num intervalo temporal entre os 12-24 meses e há 25 ou mais meses aumentou, respectivamente, 62,8% e 55,2%. Os resultados agravam-se nos escalões etários mais velhos, mas não deixam de impressionar entre os mais jovens. Ou seja, por um lado, os mais velhos têm grandes dificuldades em reentrar no mercado de trabalho; por outro, o acesso ao primeiro emprego ou a reintegração no mercado de trabalho em fases iniciais do trajecto profissional são problemas com que os trabalhadores mais jovens têm amiúde de se defrontar.
A introdução da problemática das baixas qualificações dos trabalhadores e empregadores portugueses é um dado nevrálgico para a compreensão das dificuldades económicas do país e dos impactos no mercado de trabalho da crise financeira. A qualificação dos portugueses e a sua adequação às oportunidades laborais existentes ou emergentes é o ponto fundamental no combate ao desemprego e à promoção das possibilidades de crescimento da economia portuguesa. A hipotética redução dos salários ou a flexibilização da lei laboral são medidas cujo efeito no curto prazo é discutível e no médio e longo prazo em nada contribuem para a sustentabilidade e competitividade da economia portuguesa. Uma política económica que eleja este tipo de factores como os pilares fundamentais das vantagens competitivas de Portugal coloca o país numa batalha desigual com países como a China e ignora o facto de as remunerações médias em Portugal serem já bastante reduzidas e de o país apresentar, no contexto da União Europeia, o terceiro valor mais elevado no que à precariedade dos vínculos laborais diz respeito. Relativamente a este último indicador, 23,2% da população empregada em Portugal no 3º trimestre de 2010 tinha contratos de trabalho a termo certo ou outro tipo vínculos laborais mais precários, nomeadamente os contratos de prestações de serviços baseados nos “recibos verdes”, o trabalho sazonal sem contrato escrito e os biscates.
Para ser competitivo com países que não assentam a sua economia nos baixos salários e na desregulação das relações laborais, Portugal tem de garantir que a sua população activa disponha do conhecimento e das competências necessárias ao aumento do volume e qualidade dos seus produtos e serviços. A melhoria das competências formalmente atribuídas e dos níveis de literacia de empregados e empregadores é a principal estratégia para o país criar emprego numa economia global que se estrutura e evolui a partir do conhecimento. Os vários tipos de incentivo dados às empresas e a aposta em sectores que potenciem os recursos naturais do país são factores importantes para se pensar as suas estratégias de desenvolvimento económico. Mas sem o aumento das habilitações formais e das competências da população empregada actualmente e da que integrará no futuro o mercado de trabalho qualquer estratégia política nessa área será insustentável.
[1] Este texto foi originalmente publicado no jornal Le Monde Diplomatique (edição portuguesa), nº 51. Contém, no entanto, alguns aditamentos. O título e o lead (editados pela redacção do jornal) foram também alterados. 

http://observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/index.jsp?page=projects&lang=pt&id=114

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