À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

04/11/2010

O sistema financeiro ao serviço dos défices

Anselmo Dias

Neste momento há uma ampla convergência de opiniões quanto ao facto de estarmos perante um gravíssimo retrocesso social, seguramente o maior da nossa história recente. Contudo, tal convergência de opiniões já não é tão ampla quanto à caracterização da sua natureza.
Há quem defenda que a actual situação é apenas conjuntural.
Há quem defenda que a actual situação é eminentemente estrutural, ou seja, reflecte o nosso modelo de desenvolvimento, sendo por isso anterior à última crise do sistema capitalista, embora agudizada pela agiotagem dos mercados financeiros.
É em abono desta última tese que desenvolvemos os temas que a seguir pomos à consideração.

Image 5989
Em 2006, antes da crise do chamado «suprime» nos EUA, a pretexto do aumento da longevidade dos portugueses o PS inventou um chavão, «o factor de sustentabilidade», no sentido de encurtar o número de anos em que o reformado beneficiaria da respectiva prestação, procurando assim adequar, tanto quanto possível, o início da reforma à data do falecimento.
A par disto, o PS entendeu que a actualização das reformas não pode superar a taxa da evolução da economia, ou seja: se, por exemplo, a economia crescer abaixo dos 2% o aumento das pensões mais baixas não pode exceder a taxa de inflação e as pensões mais altas terão de ficar congeladas.
Entretanto, no passado dia 29 de Setembro, no seguimento dos pretextos atrás referidos, o PS, agravando o que já era grave, determinou o congelamento de todas as pensões a partir de 1/1/2011, a pretexto do controlo do défice orçamental.
No futuro, estamos certos, caso não haja uma ruptura democrática com tal política, outros pretextos irão ser invocados pela política de direita com vista à acentuação das desigualdades sociais em Portugal. Um desses pretextos, seguramente, estará conectado com a dívida externa.
O PS, ou o PSD, em nome da amortização da dívida e do pagamento de juros invocarão a drenagem de milhões de euros destinados aos credores para justificarem a continuada penalização das reformas.
Posteriormente ao pagamento do «calote» virão, sucessivamente, outros pretextos, eventualmente o aumento do preço do barril de petróleo e de outras matérias-primas, a que se seguirão outros argumentos, mesmo que ridículos; por exemplo, a cotação internacional das alcagoitas, tudo isto canalizado num único ponto: diminuir o valor real das pensões arrastando, por essa via, muitos pensionistas para o universo da pobreza.
Acrescem aos pretextos destinados a prejudicar os reformados os pretextos destinados à redução salarial dos trabalhadores do activo, a começar pelos trabalhadores da função pública e do sector empresarial do Estado e a estender-se, conforme os desejos da CIP, ao sector privado.
É o vale tudo em nome da resolução transitória dos défices (défice orçamental, défice público, défice externo, etc.).
É o vale tudo em nome de circunstâncias derivadas de uma causa que é omitida, ou seja, omite-se a existência de um modelo de desenvolvimento inadequado às necessidades do país, inadequação que não resultou de algo moldado por uma qualquer ventania ou de um outro qualquer fenómeno natural, mas antes foi moldado pela prática política de pessoas concretas, ligadas a partidos concretos e subordinados a interesses concretos: os interesses dominantes das classes dominantes.

A omissão ao serviço da desinformação

Com efeito, nada é dito quanto à origem da causa maior que explica a miríade de défices que afectam a nossa economia, o que, por sua vez, serve de pretexto para atacar os direitos dos trabalhadores e dos beneficiários da segurança social, razão pela qual no início deste artigo defendemos a convicção de que estamos perante um conjunto de factos de natureza estrutural.
A causa primeira diz respeito à destruição do nosso aparelho produtivo, na área da indústria transformadora e do sector primário (agricultura e pescas) e à sua substituição por um sistema que subalternizou os bens transaccionáveis com incorporação de média e alta tecnologia.
Sem perder de vista a importância nuclear destes sectores destinados ao consumo interno, à exportação e ao equilíbrio das nossas contas externas, há que salientar, também pela negativa, entre outros, os seguintes aspectos:
1.º – a especulação financeira por via das transacções em bolsa, cujas oscilações nada têm a ver com a economia real, ou seja, com a saúde económica das respectivas empresas, o que nos leva a caracterizá-la como a «economia de casino».
Quem, a este propósito, não se lembra das jogadas levadas a cabo durante a gestão de Jardim Gonçalves na valorização virtual do valor das acções do BCP, levando muita gente a investir as suas poupanças e a endividar-se, comprando gato por lebre?
Quem não sabe que, na obtenção dos mesmos resultados especulativos de Jardim Gonçalves, houve, no estrangeiro, bancos que fizeram o contrário, ou seja: criaram a ideia, junto da opinião pública, da quebra eminente do valor das respectivas acções para, alcançada na bolsa a mais baixa cotação possível, as comprar a baixo preço para em momento oportuno voltar a vendê-las a preços inflacionados?
Quem, igualmente, não sabe das falcatruas, a ser pagas por todos nós, levadas a cabo no «banco laranja», o BPN de Oliveira e Costa e no BPP de João Rendeiro?
2.º – a transformação da actividade bancária numa actividade de sanguessugas, por via da conjugação dos elevados juros, associados à agiotagem no que concerne a taxas e serviços aplicados quer às famílias quer às empresas, sobretudo as micro e as pequenas empresas, de que resulta, por parte da banca, a escandalosa drenagem de milhões de euros dos clientes para os bolsos dos grandes accionistas do sistema financeiro.
A banca, patrona dos governos do bloco central, e patroa de futuros e ex-ministros e afins, tem, por outro lado, no que diz respeito à dimensão da dívida ao estrangeiro, as maiores culpas.
Os banqueiros, na ansiedade de ganharem dinheiro a qualquer título, esmagaram brutalmente a remuneração dos depósitos levando muitos depositantes a desinteressar-se pela poupança, isto sem falar da poupança que os banqueiros portugueses exportaram para os off-shores, conforme resulta daquilo que se vai sabendo em torno do processo «Furacão». Mercê do atrás referido, associado ao consumismo e ao uso e abuso no crédito à habitação, não admira que a taxa de poupança dos portugueses, em 2009, em percentagem do rendimento disponível, tivesse sido fixada em cerca de 8,8%, ou seja, menos de metade da média verificada na Alemanha e na própria Espanha.
Havendo menos poupança, associada ao delírio consumista através de uma publicidade extremamente agressiva e conjugada com a destruição do nosso aparelho produtivo, resta ao país recorrer ao crédito externo com todas as consequências financeiras conhecidas, sem esquecer uma questão fundamental: a soberania nacional.
Quando um país, mercê de políticas erradas, é obrigado curvar-se, a estender a mão aos credores externos, solicitando novos créditos para resgatar créditos antigos, sujeitando-se às draconianas condições de amortização da dívida e pagamento de juros, quando tudo isto acontece é a soberania nacional que está em jogo.
3.º – o parasitismo das grandes empresas por via da fixação de preços especulativos nas áreas da electricidade, dos combustíveis, das comunicações; sectores que os portugueses, em tempo oportuno, como em 1975, não deixarão de integrar no sector empresarial do Estado.
Os preços impostos por estas empresas não reflectem a cotação das matérias primas nem dos factores de produção, antes são uma espécie de imposto feudal a reverter para os respectivos accionistas, o que explica uma parte importante da enorme concentração capitalista em Portugal.
Com tal extorsão aos consumidores não é de admirar o volume de investimentos feitos no Brasil pela PT e pela GALP e, pasme-se, pela EDP, nos próprios EUA, isto quando em Portugal há falta de recursos.
4.º – a terciarização da economia por via da densificação dos centros comerciais, dos serviços de segurança, dos call-center e da actividade turística, actividades onde, simultâneamente, se verifica elevadas taxas de rentabilidade do capital próprio e onde são aplicados salários extremamente baixos.
O arrolamento atrás invocado, a título de exemplo, apenas serve para ilustrar que, para além da destruição do nosso aparelho produtivo, há um vasto conjunto de factores colaterais que em circunstância alguma deve ser esquecido. Ele ajuda a compreender a natureza e a dimensão dos nossos défices, um dos quais passamos a referir de seguida.

O comportamento da banca ao serviço da dívida externa

A dívida externa, em Junho do corrente ano, estava oficialmente avaliada em 501 409 milhões de euros, valor correspondente a cerca do triplo de toda a riqueza produzida num ano em Portugal.
É uma verba muito vultuosa, explicada pelas políticas de direita em consonância com os interesses dos nossos banqueiros, os homens que têm assento directo nos conselhos de ministros sem necessidade de mera representação, dada a «dança de cadeiras» entre a banca e o Governo e entre o Governo e a banca.
Há dúvidas quanto a isto?
Quem tiver dúvidas que analise o percurso dos primeiros-ministros, dos ministros, dos secretários de Estado, dos chefes de gabinete, dos deputados do PS, CDS-PP e, sobretudo do PSD, desde a respectiva entrada na vida política até aos dias de hoje e vejam, no plano do «ganho-pão», as respectivas conexões com o sistema financeiro, sobretudo com o BPN, BPP, BES, BCP, BPI, Santander-Totta e respectivas empresas satélites.
Pois bem, é através dessa cumplicidade entre as políticas de direita e a maximização dos lucros dos bancos que o sistema financeiro, com a permissividade do PS e do PSD, implementou, como já atrás referimos, uma gravosa política na área estratégica, quer na obtenção dos depósitos, quer no investimento.
O que é que a banca faz com o dinheiro obtido pelos depósitos dos residentes em Portugal e com os empréstimos externos?
O que é que faz? Investe em sectores produtivos na actividade industrial no sentido do aumento da produção, tendente à substituição das importações por produção nacional e à produção destinada ao incremento da exportação? Investe na agricultura e nas pescas com vista a resolver o grave défice alimentar? Investe no âmbito tecnológico e na investigação científica em ordem a recuperar o nosso atraso em áreas tão sensíveis do conhecimento?
A banca privada é uma apátrida, não tem pátria, não tem valores éticos (vejam o BPP, BPN, BCP e os multiformes casos do BES) e rege-se apenas, lembrando o conhecido filme «Cabaret», por money... money... money...
É em nome do lucro garantido, rápido e vultuoso que a banca, ao longo dos anos (a maior parte da presente década) canaliza os seus investimentos, cerca de 84%, em cinco sectores, a saber: habitação; actividades imobiliárias, alugueres e serviços prestados às empresas; construção; comércio por grosso e a retalho, incluindo o comércio automóvel e consumo.
O resto é paisagem.
Considerando os meses homólogos de Janeiro entre 2000 e 2010 a percentagem dedicada à indústria transformadora, no conjunto do total do crédito concedido, não ultrapassou, em termos médios, os 7,6%.
Uma vergonha!
Mercê desta relação assimétrica na selectividade e na concessão do crédito não é de admirar que tenhamos de comprar lá fora muito daquilo que podíamos produzir cá dentro, acentuando, dramaticamente, o equilíbrio da balança comercial.
A este propósito, os dados disponíveis reportados à última década (2000-2009) dizem que a diferença, na área dos bens transaccionáveis, entre as importações e as exportações atingiu um valor equivalente a cerca de 162 mil milhões de euros, realidade que é omitida pelo Governo e pelas vozes do dono a fim de ocultarem o elevado preço que estamos a pagar pela destruição do nosso aparelho produtivo.
Entretanto, a banca, pela sua política de crédito, ao retrair, entre nós, a produção de bens transaccionáveis, fomenta as importações, garantindo o emprego nos países que nos vendem aquilo que não produzimos.
Acresce a este crime lesa-pátria uma distorção anacrónica na selectividade do crédito.
Vejamos um caso. Há, em Portugal, devido à ligação umbilical entre a banca e os construtores civis, cerca de 400 000 casas devolutas, integrando uma parte significativa de casas novas por vender.
Quanto é que custa ao país a imobilização do capital associado a tal facto? Só em Lisboa existem cerca de 50 000 fogos por vender cujo valor, estimado a preços de mercado, deve orçar cerca de 7500 milhões de euros. Quantas dezenas de milhares de milhões estão, pelas mesmas razões, imobilizados a nível nacional?
O livre funcionamento do mercado tem destas coisas: investe enormes massas financeiras em produtos imobilizados em vez de investir na rotatividade do capital, designadamente na produção de carne, na captura de peixe, na produção agrícola, na fabricação de máquinas, instrumentos e ferramentas, na construção e montagem de veículos, na indústria farmacêutica, enfim em tudo aquilo que enquadra a dimensão e a natureza do consumo em Portugal.
Um governo que permite à banca (privada e pública) canalizar cerca de 40% do crédito total para o saturado mercado habitacional e menos de 1% para a agricultura e pescas é um governo subalternizado aos interesses do seu mandante: a oligarquia financeira.

As responsabilidades da banca pública

No meio de tudo isto impõe-se uma referência à Caixa Geral de Depósitos, o banco do Estado.
Cabe a esta instituição impedir o efeito nefasto da banca privada na destruição da poupança, obrigando o recurso aos empréstimos externos por forma a resolver os problemas de investimento.
Cabe a esta instituição transformar os depósitos, devidamente remunerados, em bom investimento produtivo, conforme os exemplos já atrás referidos.
Cabia tudo isto, desde que a Caixa Geral de Depósitos fosse gerida segundo critérios de boa gestão, no respeito pelo interesse dos clientes, no interesse da economia produtiva e no interesse do Estado, por forma a que, da sua actividade, resultasse uma mais valia para a colectividade.
Mas não: a Caixa Geral de Depósitos é uma entidade colonizada pelos interesses estratégicos da banca privada, pelo que, no que diz respeito à captação de recursos e à política de crédito, não há diferença entre o público e o privado, a bem do BES, do BCP e outros.
Mas mais: a Caixa Geral de Depósitos, além de colonizada pela oligarquia financeira, é uma espécie de interface entre os quadros do PS e do PSD, a quem rotativamente cabe o acesso à respectiva gestão, generosamente bem paga no activo e na reforma, mesmo que, neste último caso, os titulares tenham meteoricamente desempenhado funções e mesmo que não tenham atingido a idade legal para a reforma.
A expressão «fartar vilanagem» aplica-se rigorosamente à Caixa Geral de Depósitos, quer pelas reformas aplicadas a Mira Amaral, um ardente paladino da austeridade, e a outros correlegionários, quer pela criminosa política de empréstimos a conhecidos especuladores, como recentemente aconteceu no controle accionista do BCP e como repetidamente aconteceu no processo das privatizações.
Emprestar dinheiro aos especuladores para comprarem e venderem acções e subtrair empréstimos às pequenas e médias empresas devia constituir um motivo de justa causa para a demissão imediata dos responsáveis por tal subversão de valores.
É evidente que os mandantes não vão por aí.
Caminho diverso é aquele que é apontado pelos comunistas. O caminho a seguir é aquele que pugna pela inserção da banca privada no sector empresarial do Estado. O caminho a seguir é aquele que exige que a atribuição da gestão do património público deve caber a gente séria e competente.
__________

Fontes:
- Jornal Público de 10/10/2010 e de 21/10/2010;
- Boletim Estatístico – 2010 – BdP, referido em 5/5/2010 por Eugénio Rosa;
- Boletim Estatístico – Junho 2008 e Setembro 2010 do BdP, referido em 5/10/2010 por Eugénio Rosa.
- www.Pordata.pt

http://www.avante.pt/pt/1927/temas/111112/
 

Sem comentários:

Related Posts with Thumbnails