José Carlos Pimenta
"Para frustração dos estudiosos, é sempre considerável a distância que separa as soluções arquetipicamente construídas e as realizações legislativas efectivamente conseguidas" (1). Além disso, as realizações legislativas podem não ter em conta a praxis social, ou só se adequar à praxis oculta.
1. "A apropriação indevida do alheio de forma velada é tão antiga quanto a humanidade" (2), dizem alguns de forma peremptória. Desse facto poderíamos tirar diversas conclusões, com diferentes graus de sensatez. Poderíamos concluir que sendo a propriedade privada o que permite haver apropriação do alheio, dever-se-ia acabar com ela. Poderíamos concluir que a sociedade não tem sabido, ao longo de milénios, regular as relações entre os seus cidadãos de forma a haver um respeito mútuo. Poderíamos concluir que já é uma situação "normal" que apenas carece de algumas brandas medidas de repreensão. Imperou no nosso país esta última opção, passando a vigorar como lei a partir de 2007: para um conjunto relevante de fraudes "extingue-se a responsabilidade criminal, mediante a concordância do ofendido e do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro, até à publicação da sentença da 1ª instância, desde que tenha havido restituição da coisa furtada ou ilegitimamente apropriada ou reparação integral dos prejuízos causados" (art. 206º, n.º 1, do Código Penal).
De facto não faltam justificações: há que desvalorizar os crimes patrimoniais face a outros bens jurídicos mais violentos; poupa-se dinheiro com o sistema judicial e prisional; acompanham-se as tendências de desvalorização da sociedade em favor do "indivíduo". Simultaneamente, desvalorizam-se as fraudes praticadas pelas empresas e os crimes de colarinho branco, agravam-se as desigualdades na cidadania e no usufruto de uma vida digna.
2. Mas será que o ponto de partida da análise está certo? Não está.
É exacto que sempre existiram fraudes, mas nos últimos trinta anos aumentaram em número, aumentaram em montantes apropriados, aumentaram em variedade, aumentaram na influência planetária. Se placidamente podemos considerar "normal" a fraude, é profundamente anormal este crescimento, assim como o da economia "sombra".
Curiosamente, esta legislação foi aprovada na antecâmara de um dos períodos mais dramáticos da actividade económica do último século, a crise que ainda vivemos. Uma crise que mostrou a fragilidade do sistema económico mundial aos conflitos de interesse, à especulação bolsista, às fraudes multimilionárias. Curiosamente, esta legislação foi aprovada numa década em que as fraudes (da económico-financeira à corrupção) se espalharam amplamente em Portugal.
É imperioso, urgente e possível estancar esse aumento, apesar de existir uma relação indissolúvel entre a organização económico-social da actual fase da globalização e esse empolamento fraudulento.
3. O defraudador não tem no seu horizonte a possibilidade de ser descoberto, ao mesmo tempo que procura encontrar para si, e para os outros, uma justificação credível, isto é, desculpabilizadora. Provavelmente não será a dureza das penas, em caso de detecção, que atenuará essas práticas criminosas mas o "conforto operacional" que a legislação actual permite é um elemento incentivador.
Quando a percepção da fraude aumenta a probabilidade da mesma e funciona como estímulo à sua generalização, o referido artigo do Código Penal pode traduzir-se num grande ensinamento: "não peça crédito, faça uma fraude". Só tem de preservar o capital, para a eventualidade de ser apanhado e "ter na manga" alguma informação dissuasora do ofendido manter a acusação. Se a sua fraude conduziu ao desemprego, não se preocupe. Os "terceiros" não têm expressão social e jurídica.
Referências:
1. DIAS, Jorge de Figueiredo, e Manuel da Costa ANDRADE. 1997. Criminologia. O Homem Deliquente e a Sociedade Criminógena. Coimbra: Coimbra Editora.
2. O ponto de partida foi o artigo "Burla e fraude deixam de ser crime", de Licínio Lima, Diário de Notícias, 2010-08-17.
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