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02/11/2009

BPN continuou a dar prendas ao poder nas vésperas de o escândalo rebentar

Cristina Ferreira

Um ano depois da nacionalização, a megafraude no Banco Português de Negócios está à vista. A crise internacional revelou-a. O papel do Banco de Portugal continua a suscitar dúvidas.

Entre as qualidades do ex-presidente do Banco Português de Negócios (BPN), José de Oliveira e Costa, havia uma que transparecia: a sua determinação em exercer o poder de forma incontestada. Fazia-o à semelhança de um soberano absoluto, mesmo quando os sinais equívocos de uma suposta prosperidade deixavam de brilhar.
Nas vésperas da sua saída do BPN, em Fevereiro de 2008, a crise financeira já estava a correr. No Reino Unido, o Northern Rock tinha falido, em Portugal, o Banco de Portugal (BdP) apertava o cerco, exigindo a clarificação das relações dentro do grupo Sociedade Lusa de Negócios (SLN), o que levou os accionistas a tentar reduzir os poderes do presidente.
Mas Oliveira e Costa mantinha-se firme e geria o património como sempre havia feito: com à-vontade. Dois meses antes de deixar o grupo, entregou aos colaboradores uma lista com os nomes dos destinatários dos presentes de Natal. Na sua maioria gente colocada ao mais alto nível da hierarquia do Estado.
Em Dezembro de 2006 e de 2007, tal como já acontecera em anos anteriores, Oliveira e Costa deu indicações para enviar presentes ao Presidente da República, ao primeiro-ministro e aos ministros e secretários de Estado mais poderosos (Finanças, Obras Públicas, Ambiente, Economia, Saúde e Desporto). A lista contemplava ainda os líderes do PSD e membros do grupo parlamentar. Mas não só. Aos supervisores que tutelavam as empresas financeiras da SLN, como o BdP ou o Instituto de Seguros de Portugal, o então CEO mandava prendas. E o mesmo com gestores públicos e privados, advogados e jornalistas.

Baús e salvas de prata
Nada de inédito. A prática é seguida por muitas empresas no Natal. "É um hábito que existe. Acontece em todo o mundo e não é de agora. É quase um cumprimento", explicou ao PÚBLICO um gestor de uma instituição financeira. "O código de conduta deve ser claro ao estabelecer a fronteira entre o que é razoável receber (ou enviar) e valores excessivos". O BPI, por exemplo, costuma oferecer livros de arte e é igual para todos, desde os titulares dos órgãos sociais aos jornalistas. A CGD doa a instituições sociais a verba que seria para as ofertas de Natal.
Mas no BPN a lista de presentes destacava-se pela abrangência e diversificação dos produtos: perfumes, vinhos do grupo (Raposeira, Tapada de Chaves, Murganheira), até prendas mais caras, como grandes e pesados baús contendo produtos, ou caixas e taças de prata. O valor das ofertas era tanto mais elevado quanto o cargo ocupado por quem os iria receber. Isto, se os recebesse de facto, pois as prendas podem ter sido devolvidas.
Em plena crise, porém, as listas de prendas do BPN contrastam com a mudança adoptada por outras empresas. No fim de 2007, "muitas empresas reduziram ao limite os seus gastos redundantes e as ofertas de Natal encaixam aqui", diz um responsável de marqueting de um grande banco português.
A lógica subjacente à constituição da lista de ofertas natalícias replicava em parte o modo como Oliveira e Costa desenvolveu o grupo: centrado na sua figura, a quem cabia articular as relações entre os investidores, na sua maioria pequenos e médios empresários com negócios que iam desde a construção civil até à venda de rações para animais. E era neste eixo que se desenvolvia o BPN, uma estrutura de capital pulverizada, fraca, e com muitos dos próprios accionistas com dívidas ao banco.
Por sua vez, o BPN detinha posições em sectores que se estendiam da saúde ao agro-alimentar, passando por oficinas de reparação de automóveis, cujo contributo para os lucros era irrelevante. Em simultâneo, Oliveira e Costa sobressaía ao remunerar os depósitos dos clientes com taxas acima dos dois dígitos. Os rivais desconfiavam.

Negócios com política
O grupo tinha ainda outra particularidade: tinha uma base política forte, sustentada em ligações pessoais, o que ajudou a alavancar os negócios. Nos órgãos sociais estavam altos dirigentes do PSD no activo (como Dias Loureiro, Daniel Sanches, Arlindo de Carvalho e Rui Machete, todos ex-ministros), e que desempenhavam um papel determinante na instituição. Mesmo Oliveira e Costa havia sido secretário de Estado dos Assuntos Fiscais num dos governos de Cavaco Silva.
É bom de ver que a promiscuidade entre a actividade financeira e os interesses accionistas era grande, com uma excessiva exposição do banco aos negócios dos accionistas. Como alguns dos accionistas se financiavam no próprio banco e tinha dívidas volumosas ao próprio BPN, ficavam nas mãos da administração. Tudo isto tornava o grupo num pólo de atracção de negócios obscuros e tentaculares.
A operação de Porto Rico é um exemplo. A compra de duas empresas tecnológicas com sede naquele paraíso fiscal, transacção intermediada por Dias Loureiro, revelou-se ruinosa e obrigou o grupo a assumir perdas de 40 milhões de euros. Do lado vendedor estava Abdul El-Assir, libanês, amigo de Dias Loureiro e devedor do próprio BPN. Meses depois de a sua participação no negócio ter sido revelada, Dias Loureiro renunciou em Maio ao cargo de conselheiro de Estado do Presidente da República.

O papel da crise mundial
Foi a falência do Lehman Brothers, em Setembro de 2008 - que levou ao fecho do mercado de crédito e fez emergir uma crise inédita - que pôs a nu as fragilidades do BPN. Com problemas de capital e liquidez, a recuperação só era possível se os accionistas estivessem dispostos a injectar fundos. O que não aconteceu.
É neste contexto conturbado que ocorre a nacionalização, há um ano. A decisão tem repercussões políticas e gera polémica na oposição. O que foi central, porém, não foi a questão política (ligações ao PSD), mas a megafraude delineada pelo ex-CEO. Semanas antes da intervenção do Estado, o PÚBLICO divulgou que o BPN tinha já insuficiências financeiras de 800 milhões de euros.
Mas seria possível ter tomado outra decisão? Quem decide sabe que há um interesse superior acima da instituição e que é o interesse público que se materializa nos efeitos colaterais de uma falência. Ao Estado cabe defendê-lo. E em Novembro de 2008 o sentido da urgência da resposta a dar no BPN era grande. Correspondeu à necessidade de travar o efeito sistémico que a falência teria no sector e visou igualmente dar indicação aos mercados de que o Governo impediria a queda do sector.
Sabemos agora que a fraude no BPN existia, independentemente da crise internacional.
Há quem continue a questionar como foi possível o BdP não ter detectado que estava em curso uma megaburla. Mas a pergunta que todos fazem é se sem crise mundial Oliveira e Costa ainda estaria no activo.
Público.pt - 02.11.09

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