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05/11/2009

A questão da água – uma outra leitura

Luís Amaro

Hoje em dia é lugar-comum dizer que existe um problema da água – escassez, faltas de distribuição e tratamento, preços, entre outros. O panorama, à escala mundial, é aterrador: segundo as Nações Unidas mais de mil milhões de pessoas não têm acesso a água, tout court, e este número aumentará para o dobro nos próximos dez anos.

A juntar a este panorama dantesco mais de 1,1 milhões de pessoas não têm acesso a água potável. Disto resulta que 180 milhões sofrem de doenças relacionadas com a má qualidade da água e, destas, pelo menos dois milhões morrem de cólera, diarreia, tifóide e hepatite; mais de quatro mil crianças morrem diariamente por doenças relacionadas, exclusivamente, com a insalubridade da água sendo a segunda maior causa de doenças de crianças até aos cinco anos; um jovem morre em cada oito segundos por causa de ingestão de água contaminada.
Se a escassez de água afecta, maioritariamente, os países pobres, no que diz respeito à contaminação ela é transversal a toda a humanidade; basta dizer que nos Estados Unidos mais de 230 milhões de pessoas, num total de 281 milhões, estão expostos a água contaminada incluindo a engarrafada.
Estes números são demasiado escandalosos quando se sabe que bastam 20 litros diários de água por criança para satisfazer as necessidades básicas. Estamos, portanto, face a dois problemas: a inexistência ou escassez de água e a sua má qualidade.
No planeta existe água mais que suficiente para satisfazer as necessidades da humanidade no imediato e a longo prazo (de toda a água existente no planeta, 40 milhões de km3 são água doce). Resultado dos enormes desequilíbrios, em graus de desenvolvimento, de que sofre a humanidade, produto das políticas coloniais e neo-coloniais e de rapina do imperialismo, o consumo da água apresenta disparidades enormes e imorais.
Basta dizer que um canadiano, por exemplo, consome diariamente seis vezes mais água que um indiano e 30 vezes mais que um keniano do meio rural; que qualquer de nós em Portugal consumimos 33 vezes mais água que um moçambicano e 22 vezes mais que um angolano. Estas discrepâncias nada têm a ver com os recursos aquíferos destes países mas sim com a continuação do subdesenvolvimento e miséria que lhes são impostos pelos agentes do imperialismo, nomeadamente o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.

A água – o petróleo do século XXI

Actualmente o mundo gasta 10,7 mil milhões de euros em projectos relacionados com a água e este valor tende a aumentar, respondendo aos apelos «humanitário» das grandes multinacionais da água.
O Fundo Europeu para o Desenvolvimento (EDF) é o principal instrumento de financiamento deste tipo de projectos (9,9 biliões de euros no período 2008-13) através do PPIAF e do Banco Mundial com vista à privatização ou liberalização – como gostam de baptizar o crime – do comércio da água não só na Europa como no mundo. O envolvimento da UE na privatização da água é total, sendo a mais fiel colaboradora do Banco Mundial.
Os 10,7 mil milhões de euros são uma verba superior à que gastam Portugal e Espanha em despesas militares e iguala o valor do Canadá na mesma rubrica.
Estimativas apontam para 201 mil milhões de euros o que é gasto anualmente na indústria da água. Tudo isto é apetecível para a gula voraz do capitalismo; as possibilidades de lucros, a maior parte deles ilegítimos mesmo numa óptica estritamente capitalista, são colossais e fazem jus ao título da revista dos senhores do capital, a Fortune, quando afirma que «a água é o petróleo do século XXI».

Crimes e resistência

O maior obstáculo à prossecução dos objectivos criminosos do capital é a resistência que as populações têm feito à privatização da água, como elucida uma recente sondagem aos portugueses feita pela Marktest e encomendada pelo STAAL, na qual 69% dos inquiridos se afirmam contra a privatização ou gestão privada do abastecimento de água. Outras sondagens em vários países apontam para valores semelhantes.
Em todo o mundo o usufruto da água sempre representou para os povos um direito inalienável, muitas vezes protegido por legislação; a Antiga Roma proibia «a propriedade privada da água de uma fonte, rio ou natural canal»; nos países muçulmanos, e seguindo os ensinamentos do Profeta que proibia a sua venda, o direito à água, mesmo para irrigação, está plasmado no Código Civil Otomano de 1870; nos tempos modernos, na União Soviética, toda a água era propriedade da comunidade, na China, a Lei da Água de 1988 define-a como propriedade de todo o povo e, na Bolívia, a actual constituição determina que «...os recursos hídricos e os seus serviços não podem ser objecto de apropriação privada» (art.º 337).
A partir de 1989, com o governo de Margaret Tatcher, começou a histeria de privatizações – que em Portugal teve, e tem, fiéis discípulos e entusiastas seguidores, entre eles o actual inquilino de Belém. Começando pela privatização da água em Inglaterra e no País de Gales através da venda pública das acções, depressa a febre privatizadora se estendeu aos países da Europa Ocidental e ao Mundo. Em Inglaterra e no País de Gales, em relação a 1989, a água aumentou 450%, os lucros das companhias 692% e os ordenados dos respectivos presidentes aumentaram 708%; o número de pessoas que se viram privadas de água por falta de pagamento subiu 177% e a Associação Médica Britânica responsabiliza a privatização da água como sendo causadora do aumento, em seis vezes, do número de pacientes com disenteria.
Em França depois da privatização os preços subiram 150% e é o próprio governo que revela que «cerca de 5,2 milhões de pessoas consomem água infestada de bactérias»; em Saint Etienne, o preço da água subiu 124% nos dois anos que se seguiram á privatização.
No Equador, a multinacional americana Bechtel (um dos novos proprietários do Iraque) depois de um contrato para o abastecimento de água em Guayaquil deixou 21% da população com água imprópria para consumo e provocou um surto de Hepatite A.
Na África do Sul, a privatização da água entregue a um grupo de companhias trabalhando com o Banco Mundial, foi a causadora da maior epidemia de cólera que vitimou perto de 300 pessoas e infectou 250 000.
Em Cochabamba, na Bolívia, o Banco Mundial recomendou ao governo da oligarquia, em 1999, que autorizasse a privatização da água: as contas mensais da água passaram para 14 euros num país onde o salário mínimo mensal era, na altura, de menos de 70 euros e os 14 euros era o suficiente para alimentar uma família de cinco pessoas durante duas semanas. Ou água ou comida...
A resistência da população provocou numerosas manifestações populares com dezenas de prisões, o assassinato de um jovem à queima-roupa e a declaração do Estado de Sítio. Por fim a oligarquia recuou e as massas conquistaram as suas reivindicações. A luta valeu a pena. Hoje o governo progressista boliviano dirigido por Evo Morales, repôs a legalidade: a água é de todos, portanto, não negociável.
Sobre a apregoada capacidade técnica e eficiência da gestão capitalista, esta tem sido um desastre financeiro para os países ou regiões que a aceitam, ou são obrigados a aceitar. É evidente que esta situação provocou e provoca um sentimento de indignação e revolta um pouco por todo o mundo; os povos não se resignam e a luta pela defesa da água pública tem crescido em todos os quadrantes forçando, nalguns casos, à renacionalização da água ou à sua remunicipalização como está a ser o caso em muitas regiões de França (Grenoble depois de retomar o controlo da água fornece-a hoje aos mais baixos preços de todo o país) ou na Holanda onde o governo, por pressão popular, proibiu a privatização da distribuição de água. Entretanto este mesmo governo promove a sua privatização em países terceiros...

Tudo gente séria...

Recentemente – segundo Maude Barlow, presidente do Conselho dos Canadianos – o Banco Mundial tem vindo a forçar os países mais pobres da América Latina a privatizarem os seus serviços de abastecimento de água e está a cooperar abertamente com transnacionais da água como a Vivendi e a Suez Lyonnaise des Eaux, para que estas instituam «direitos» de lucro no terceiro Mundo.
Se não conseguem a privatização, pura e simples, enveredam por outros caminhos que vão dar ao mesmo objectivo: exercendo pressão sobre países e instituições, interferindo abertamente na discussão democrática de vários países, criando uma rede de instituições fantasmas cujo objectivo é exaltar as vantagens da privatização, a maior parte das vezes debaixo do manto da chamada livre concorrência ou da eficiência da gestão capitalista e da lei «natural» dos mercados.
Também se compra quem é vendável, alastrando a corrupção a todos os níveis do poder político e tendo como central de comando das operações o lobby da água em Bruxelas, camuflado sob a vaga denominação de consultores.
Os contratos a seguir às privatizações são a maior fonte de corrupção na Grã-Bretanha e continua a ser alimentada pelas iniciativas privatizadoras, tendo a polícia registado, em 1996, «130 casos de corrupção muito séria» segundo o Guardian, estimando-se o valor das luvas em 1996 de 597 milhões de euros anuais. Na região de Paris foi estabelecido o valor das mesmas: 2% de todos os contratos são pagos aos maiores partidos políticos da região.
Como se vê é tudo gente séria...

E nós por cá?

A Trilateral é uma associação internacional do grande capital, cujo objectivo a longo termo é, de facto, o governo do mundo. Não é a única mas por interesse da análise conduzamos a nossa atenção para esta gente.
Formada em 1973, é constituída por 390 cidadãos proeminentes como se auto-intitulam.
A maior parte dos seus membros são presidentes de grandes multinacionais norte-americanas, europeias, da Ásia-Pacífico, e ex-membros de governos e parlamentos como Zbigniew Brezenzinski, George Bush pai, Bil Clinton, Henry Kissinger, Dick Cheney e outros; desde a administração Carter, todos os presidentes ou vice-presidentes dos USA, com excepção da actual, eram membros da Trilateral, como foram sete dos doze secretários de Estado e nove dos doze secretários da Defesa, tendo Barak Obama nomeado para o governo onze membros da Trilateral.
Por aqui já se está a ver que tipo de instituição é esta. Tudo isto teria um interesse relativo, não fora o facto de, juntamente com esta gente, estar fina flor do capitalismo português: Estela Barbot, na AEP na altura, Braga de Macedo ex-ministro das Finanças; António Carrapatoso, presidente da Vodafone; Vasco de Mello, na altura presidente da CIP e João Menezes Ferreira ex-deputado socialista. Todos eles membros efectivos do Grupo Europa da Trilateral, a que se juntaram para organizar a reunião de Lisboa a 25-27 de Abril de 1992, ou numa base de colaboração, Pinto Balsemão, António Mexia, José Roquete, Miguel Cadilhe, Ferro Rodrigues, António Vitorino, Valente de Oliveira, António Borges, Rui Mateus, João Cravinho e o imprescindível Durão Barroso, entre outros. Este albergue espanhol que é o Grupo Português da Trilateral dá um retrato exacto de quem são estes patriotas e democratas de pacotilha, do nível de compromissos e das suas profundas inter-relações.
Mas voltemos à água antes que nos afundemos em retóricas desviantes.
Como resultado das várias reuniões da Trilateral sobre as privatizações em 29 de Abril de 1997 reuniu um grupo constituído por Teresa Gouveia, ex-ministra do Ambiente, João Joanaz de Melo, da Geota, o jamais Mário Lino, na altura presidente das Águas de Portugal e administrador do IPE, Pedro Serra, presidente do Instituto da Água, a que se juntaram João Baú, presidente da EPAL, Frederico Melo Franco, presidente da Luságua, e João Bártolo administrador do IPE, hoje presidente da Generg, um consórcio da Fundação Oriente e apoiante da candidatura de Francisco Louçã à presidência da República.
Da dita reunião saiu um documento que foi entregue a Jorge Sampaio, então Presidente da República, a Almeida Santos e a António Guterres.
O documento era claro como... a água, e nele se afirmava «ter como pressuposto a definitiva empresarialização do sector da água» e defendendo a promoção de um sector privado nacional e a «reformulação do modo de intervenção no mercado da EPAL, tendo como objectivo a respectiva privatização»; e mais à frente: «o prazo para desencadear as operações deverá ter em conta o posicionamento estratégico dos grupos portugueses».
Por aqui se vê que, no caso português, não são necessárias muitas manobras para privatizar. As multinacionais que já têm interesses em Portugal, nomeadamente através de empresas espanholas ou ditas espanholas, já têm as suas peças neste tabuleiro do crime organizado que é o comércio internacional da água.
A nível do governo central, a medida mais provável a ser tomada pelos gestores do capitalismo em crise - que é a verdadeira função e razão de ser do PS - é a dispersão das acções em Bolsa das Águas de Portugal, apesar dos desmentidos do ministério do Ambiente cujo último patrão – Nunes Correia – foi, também ele, consultor do Banco Mundial num projecto ligado à água (Prosam), ou através da privatização de serviços municipalizados levada a cabo por autarcas rendidos, ou vendidos, ao sacrossanto altar do capital... E eles abundam.

Que fazer?

Seria cegueira ou ingenuidade, ou ambas as coisas, pensar que esta pilhagem da água é coisa lá de fora...
O que se pretendeu demonstrar – com o frontispício de uma nova leitura – é que a investida é global e que os seus promotores não brincam em serviço, por um lado, e, por outro e no nosso caso, quem vai conduzir a investida privatizadora já está no poleiro ou para lá caminha.
Resta-nos o caminho da luta, alertando as populações para o que está em jogo, mobilizando-as e organizando-as para a defesa da água pública.
Noutra frente da batalha, a do Poder Local, os autarcas comunistas e os seus aliados vão, seguramente, resistir a toda argumentação que, sob as mais diversas camuflagens, pretende de facto a privatização da água. Um dos argumentos mais difundidos é que o poder local não tem meios financeiros e técnicos para resolver o problema... Interessante, pois foi o mesmo argumento utilizado, pelos progenitores dos actuais apóstolos da liberalização, quando diziam, em 1974, 75 e quase até aos anos 80, que as câmaras não tinham meios para resolver o abastecimento de água às populações.
As câmaras de gestão comunista arranjaram os meios e levaram a água a mais de 95% das habitações, número esse ainda não alcançado hoje pelas gestões socialistas, sociais-democratas e quejandas em muitas autarquias do País.
Conseguiu-se na altura e vai conseguir-se hoje, assim haja a compreensão política do problema, o qual é, também, de carácter ideológico e de verdadeira eficácia gestionária ao serviço das populações.
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Fontes:
Banco Mundial; Center for Public Integrity; Confederation of Construction; Specialist Environmemtal; Working Group;; Eurostat; FAO-Aquastat; Instituto de Geografia da URSS; Organização Mundial da Saúde; ONU; Public Service Institut; PSIUR - Universidade de Greenwich; STAAL; Stockolm Peace Institut; União Europeia; World Water Vision; Imprensa escrita nacional e estrangeira.
Avante - 05.11.09

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