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06/11/2009

Um muro que caiu sobre a esquerda

Renato Godoy de Toledo

No dia 9 de novembro de 1989, caía o Muro de Berlim. Com o acontecimento, o mundo vê o começo do fim do bloco soviético, a vitória do capitalismo encampado pelos EUA e a maior crise ideológica da esquerda socialista mundial.

O muro que separava Berlim em duas partes, a oriental da República Democrática da Alemanha (RDA) e a ocidental da República Federal da Alemanha (RFA), fora construído na madrugada do dia 13 de agosto de 1961. A separação física consolidou a condição de Berlim ocidental como um enclave capitalista dentro do território socialista.

Tal enclave adveio da divisão feita pelos países aliados na 2ª Guerra Mundial, após a derrota do nazi-fascismo. A União Soviética (URSS) ficou com o leste da Alemanha, enquanto os aliados capitalistas, Estados Unidos, França e Reino Unido, partilhavam o oeste – porção historicamente mais desenvolvida e industrializada do país. A capital Berlim, no entanto, também foi dividida entre as quatro nações. A sede do governo da RFA ficou em Bohn, a da RDA, em Berlim oriental.

A solução drástica de levantar um muro para isolar a parte capitalista de Berlim acabou sobrepondo o fato de as primeiras medidas “separatistas” terem partido do lado ocidental, que proclamou a RFA em 1949, impedindo qualquer esforço de reunificação. Ainda em 1949, a RFA filia-se à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), organismo internacional militar das potências capitalistas que persiste até hoje, mesmo com o fim da Guerra Fria.

Razões econômicas

As diferenças econômicas entre Berlim oriental e ocidental eram evidentes, com ampla vantagem para o lado capitalista. A RFA gozava de maior poder econômico por estar do lado mais desenvolvido do país e por contar com aliados que saíram menos devastados da guerra do que a URSS. Apesar de terem sido os principais protagonistas na derrota do nazi-fascismo, os soviéticos perderam cerca de 50 milhões de habitantes e tiveram sua infra-estrutura debilitada pela longa guerra.

Assim, Moscou tinha pouca capacidade de investimento na reconstrução da Alemanha Oriental, enquanto os EUA, que não tiveram qualquer resvalo em seu território, puderam capitanear recursos para reconstruir o lado capitalista europeu, sobretudo a maior vitrine da Guerra Fria, a Alemanha Ocidental.

O bunker capitalista em pleno território socialista também era usado como centro de espionagem e de provações ao lado inimigo. Motivado pelas disparidades econômicas e políticas, o governo soviético ergueu o muro repentinamente, dando apenas algumas horas para os cidadãos de Berlim ocidental escolherem de qual lado queriam ficar.

Para o historiador Augusto Buonicore, membro do Comitê Central do PC do B, a construção do muro teve eficácia “duvidosa” e serviu para inflar a propaganda anti-comunista no ocidente. Já Valério Arcary, historiador e dirigente do PSTU, afirma que a construção do muro foi uma autodefesa econômica da RDA e da burocracia que a dirigia. “A Alemanha ocidental estava tendo um boom econômico do pós-guerra com financiamento dos EUA. Por outro lado, o regime da RDA já era, a partir de 1953, uma ditadura monolítica e o muro foi uma forma da burocracia se proteger do crescimento do padrão de vida no lado ocidental”, diz.

Diferentes teses

O Muro de Berlim veio abaixo após diversas manifestações de cidadãos da Alemanha oriental em prol de liberdades democráticas e de uma equiparação econômica ao ocidente. A pressão começou surtir efeito no governo da RDA. Seu líder máximo, Erich Honecker, viu-se obrigado a renunciar aos cargos que ocupava no governo central no Partido Socialista Unificado da Alemanha, que dirigia da o país. Dias depois, o muro caiu. Mais tarde, Honecker foi expulso do partido e condenado pela Justiça por ordenar que soldados da RDA atirassem contra quem tentasse ultrapassar os limites estabelecidos pelo muro.

Tais manifestações e a queda do Muro foram analisados de diversas formas pela esquerda mundial.

Para as correntes mais alinhadas a Moscou, tratava-se de um movimento reacionário, pró-EUA, que visava restaurar o capitalismo. Já algumas correntes anti-stalinistas e trotskistas apontavam o movimento como um brado dos trabalhadores contra a burocracia e com potencial para conduzir a RDA a um rumo realmente socialista.

Para Valério Arcary, historiador e dirigente do PSTU, o fato de parte da esquerda ter se entusiasmado com a vitória dos alemães do oriente sobre a burocracia da RDA não significa que esses grupos tenham aplaudido a restauração capitalista.

“Quem julga os processos da luta de classes pelos seus resultados confunde o que realmente aconteceu. As massas não saíram às ruas pedindo a volta do monopólio. Elas pediam melhorias no padrão de vida. O processo teve uma derrota histórica – a instauração do capitalismo –, mas ela não é resultado da ação das massas. É um resultado da longa decadência das economias pós-capitalistas [da URSS e do Leste Europeu]. A alternativa histórica de uma nova revolução socialista foi derrotada. De fato, houve uma revolução democrática, mas a restauração capitalista veio como uma contra-revolução”, avalia Arcary.

Imaginário socialista

Para o dirigente do PSTU, o processo poderia ter tido desfecho diferente se fosse desencadeado na década de 1970, por exemplo. “Diversos acontecimentos mostravam que o socialismo ainda estava presente no imaginário dos trabalhadores do Leste Europeu. Em muitas greves contra a burocracia, os trabalhadores cantavam A Internacional, o socialismo era majoritário entre os trabalhadores. Depois, as ideias socialistas perderam espaço entre os trabalhadores da região”, lembra Arcary. Entre esses acontecimentos, o historiador cita a Primavera de Praga, em 1968, quando trabalhadores e estudantes, que apoiavam as reformas democráticas do PC Tcheco, foram reprimidos por tropas soviéticas.

Augusto Buonicore critica a visão de que no fim dos anos 1990 havia um movimento revolucionário anti-burocrático em curso. “Várias correntes de esquerda comemoraram o fim dos regimes ditos socialistas na URSS e no Leste Europeu. Algumas foram ainda mais longe e defenderam a derrubada de Fidel Castro e a realização uma 'revolução política e anti-burocrática' em Cuba. Ingenuamente, achavam que era isso que estava ocorrendo no Leste Europeu. Não conseguiam ver que o que ocorria ali era uma contra-revolução, sob uma roupagem democrática e libertária. Nesses países, restabeleceu-se o capitalismo na sua forma mais degenerada. Houve um retrocesso em toda linha – quer no campo social, quer no político”, rebate.

Para ele, um exemplo desse retrocesso é o crescimento de pequenas elites de magnatas nos países do Leste Europeu e a miséria de parte de suas populações.

Natureza de Estado

A avaliação sobre o processo de derrubada do muro é influenciada sobre o que cada setor da esquerda pensava sobre o Bloco Soviético. Para as agremiações ligadas à 4ª Internacional – fundada por Trotsky com base na oposição aos rumos da URSS –, por exemplo, tais estados eram considerados degenerados e nem de socialistas poderiam ser chamados, já que a burocracia consolidou-se como uma nova classe proprietária.

Arcary considera-os como “pós-capitalistas”. “Existiam duas grandes interpretações: uma teoria mais influente, liberal, e outra de uma tradição marxista. Ambas concordavam em dizer que aqueles estados eram socialistas. Somente a 4ª internacional afirmava que aqueles eram estados pós-capitalistas, com algumas medidas de transição, é um hibrido histórico. Não existem estados puros, são sempre formações complexas. Ali combinavam-se fatores capitalistas e pós-capitalistas”, afirma.

Para Augusto Buonicore, o Bloco Soviético era composto por estados em transição ao socialismo e cumpriram importante papel na luta dos trabalhadores e em seu imaginário, durante o século 20. “A União Soviética e o Bloco Socialista, apesar de seus limites, cumpriram um papel fundamentalmente positivo na história do século 20. Eles deram importante apoio aos processos de libertação nacional e de transição ao socialismo. A sua simples existência levou que a burguesia de vários países fizesse importantes concessões – econômicas, políticas e sociais – aos trabalhadores”, diz, referindo-se à consolidação do Estado de Bem-Estar Social.

Crise existencial

Com a queda do Muro de Berlim, a esquerda socialista perdeu a sua maior referência, com o princípio do fim do campo socialista. Mesmo para os críticos do modelo soviético, a derrocada do socialismo do Leste Europeu coincidiu com a fragilização e confusão de suas organizações. “A esquerda revolucionária foi atingida por uma onda oportunista, muito parecida com o social-patriotismo depois da 2ª Guerra, formada por movimentos na América Latina como os Tupamaros e Montoneros. Houve um giro à direita impressionante. Foi devastador. A esquerda mundial ficou irreconhecível, abateu-se em uma confusão ideológica. A crise atingiu inclusive tendências anti-stalinistas. O socialismo deixou de ser referência mundialmente. Mesmo com as aberrações do stalinismo, a URSS animava as inspirações igualitárias de parte da classe operária. As novas gerações não têm mais essas referências socialistas” explica Arcary..

Para os Partidos Comunistas, a crise veio com força ainda mais devastadora, como explica Augusto Buonicore: “Infelizmente, uma parte dos Partidos Comunistas, diante do impacto da crise do socialismo, abandonou suas tradições, símbolos e programas. Passou a rejeitar em bloco toda a rica história do movimento comunista internacional e da própria URSS. Veja o caso do Partido Comunista Italiano, que era o maior partido do ocidente, virou PDS e acabou desaparecendo. No Brasil, o PCB virou PPS, que agora ameaça de se unificar com o PSDB. Sinais que vivíamos e ainda vivemos tempos bicudos”, analisa.

Leste devastado

Quase 20 anos após o fim da experiência socialista no Leste Europeu, a região encontra-se em condições sociais e econômicas muito aquém daquela que os moradores de Berlim oriental sonhavam, ao pedir a derrubada do muro. Tal cenário também é válido para a Alemanha oriental, com nível de desenvolvimento abaixo do restante do país. Segundo pesquisa divulgada pelo jornal Der Spiegel, 57% dos alemães orientais enxergam mais pontos positivos na RDA do que negativos. “Pouco a pouco, a alegre sensação de unificação foi sendo substituída pelo trágico sentimento de anexação. Na Alemanha unificada, o alemão oriental era visto como um cidadão de segunda categoria. Esse já era o sentimento de 72% deles em 1997. O número parece ter crescido desde então. Poucos anos após a euforia da derrubada do muro, os orientais já consideravam que em vários quesitos a sua situação era melhor no socialismo. Entre eles: educação, saúde, previdência social, habitação e igualdade das mulheres”, relata Buonicore.

A piora na vida dos moradores do Leste Europeu levou a um fenômeno de “reciclagem” na política da região, tendo muitos líderes das antigas repúblicas soviéticas voltando ao poder em partidos social-democratas. “Os sonhos daqueles que pediam a reunificação da Alemanha foram completamente frustrados. Houve uma restauração selvagem do capitalismo. Não é à toa que os ex-Partidos Comunistas e seus líderes voltaram ao poder em alguns países”, conclui Arcary.

Brasil de Fato - 06.11.09

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