Claudio Katz
O impacto econômico da crise já é visível em toda a região. Diluíram-se as expectativas de um estancamento da crise, sendo que as defesas monetárias e fiscais são insuficientes para frear o efeito do terremoto financeiro.
É verdade que a força dos bancos é hoje menor, mas as expatriações de capital são ainda mais intensas. A superprodução golpeia a indústria internacionalizada, e o barateamento das commodities reverte em crescimento. Além disso, as tentativas de reativação econômica na América Latina colidem com a existência de recursos inferiores aos das economias centrais.
A expectativa de benefícios geopolíticos consecutivos à crise esquece que o impacto inicial dos anos 30 foi demolidor e que a crise dos anos 70 terminou sufocando os ensaios de autonomia periférica. Esta margem de independência enfrenta, atualmente, um nível superior de internacionalização da economia e depende de acontecimentos políticos imprevisíveis.
Existe uma crise de dominação estadunidense, mas já se vislumbra uma contraofensiva. O caráter efêmero ou duradouro do declínio norteamericano não está definido, já que a primeira potência preserva uma liderança militar que é aceita por seus competidores.
As classes dominantes da região atuam com estratégias próprias, especialmente no sul do continente, e não se verifica o tipo de sujeição neocolonial que impera na África. Um eventual cenário multipolar apresentaria sinais opressivos e acentuaria a associação das elites locais com as potências hegemônicas.
O Brasil já comanda essa opção através de empresas multinacionais que suscitam conflitos com os países vizinhos. Com a militarização, a ocupação do Haiti e a geopolítica da UNASUR, o Itamaraty busca ocupar o espaço aberto pela crise estadunidense, sem chocar-se com o gigante do Norte.
Esta política subimperialista consolida a desaparição da velha burguesia nacional. Além disso, ilustra como os setores dominantes investem no exterior seu capital excedente, gerado por uma acumulação interna restritiva. É também importante reconhecer a existência de formações semiperiféricas, de forma a superarmos as simplificações do esquema centro-periferia.
Os capitalistas do México, Brasil e Argentina recebem os socorros que deveriam destinar-se aos desamparados. Os governos social-liberais e neodesenvolvimentistas convergem em um estatismo favorável aos poderosos e não coordenam seus programas anticrise.
É evidente que os povos sofrerão duros embates se não assegurarem a resistência ao choque que se avizinha. Há que se preparar para enfrentar o desemprego e a pobreza com medidas de expropriação dos banqueiros, suspensão do pagamento da dívida e nacionalização dos recursos naturais.
As condições políticas para implementar esta virada estão dadas em vários países. Ainda que a direita busque recuperar terreno, já perdeu as principais batalhas. Os governos nacionalistas radicais poderiam adotar um programa contundente, reforçando a aliança com Cuba e revitalizando a ALBA. A luta contra o neoliberalismo exige ações contra o capitalismo, numa perspectiva socialista que supere a mera regulação do sistema atual.
O impacto da crise mundial sobre a América Latina suscita três tipos de discussões: a incidência econômica imediata, os efeitos políticos de largo prazo e as medidas sociais requeridas para enfrentar o descalabro financeiro.
ESPECULACÕES PÓS-DESMORONAMENTO
No terreno econômico, a crise produziu uma queda generalizada das Bolsas e fugas de capital, que contraíram o crédito. A depreciação das matérias primas conduz à recessão, o desemprego se expande e esgota-se o crescimento com desigualdade que predominou nos últimos cinco anos.
Também a esperança em uma dissociação da crise se diluiu, e cai a expectativa de evitar o tremor mundial, por havê-lo sofrido antecipadamente durante a década passada. Já se mostra insuficiente a proteção esperada de três escudos – reservas substanciais, menor dívida em relação ao PIB e superávit fiscal.
Essas barreiras provavelmente teriam compensado os desmoronamentos localizados que prevaleciam até setembro de 2008. Mas o desmoronamento financeiro assumiu uma dimensão muito superior desde essa data. Desta vez a América Latina é receptora do tsunami. Suporta de fora a comoção que protagonizou em repetidas oportunidades. Que gravidade terá este golpe em comparação a outras regiões da periferia?
Alguns economistas estimam que o efeito creditício será mais agudo na América Latina do que nas economias centrais, pela fragilidade local dos mercados acionários. Mas esperam uma incidência manejável nos bancos, que limparam majoritariamente seus balanços durante os desmoronamentos anteriores. Também avaliam que as entidades financeiras encontram-se menos contaminadas com títulos tóxicos (hipotecas) e operações especulativas (securitização, derivados). A reduzida gravitação do crédito na região reduziu a envergadura dessas transações.
Outros diagnósticos destacam que a situação fiscal parece melhor aqui do que a da Europa Oriental. Também estimam que a retração das exportações será mais digerível que na África, mesmo que seja mais impactante do que na Ásia. Atribuem esta adversidade à grande concentração de vendas numa limitada cesta de produtos básicos.
Mas o principal problema destas avaliações é o seu caráter efêmero. Elas surgem e desaparecem da crônica jornalística com assombrosa velocidade. Um dia se coloca a América Latina fora do vendaval e no dia seguinte no centro da tormenta.
Algumas estimativas apresentam, além do mais, um tom suspeitosamente oblíquo, tendencioso. O FMI, por exemplo, considera que Argentina, Venezuela e Equador enfrentam maiores ameaças de suspensão dos pagamentos do que México, Chile ou Colômbia. Estas mensagens estão, em realidade, contaminadas de ressentimento contra os governos contestadores e os devedores infratores. Nenhuma caracterização séria surge destas especulações.
TRÊS EFEITOS
A América Latina recebe, em primeiro lugar, a crise de superacumulação global que gerou a concentração de capitais fictícios na esfera financeira. Dado o reduzido alcance do endividamento pessoal na região, este impacto não se traduz, ainda, em bancos corroídos por empréstimos irrecuperáveis.
Mas a quebradeira gerou uma necessidade de liquidez nas economias centrais, que provoca fortes reduções de fundos. Especialmente os bancos estrangeiros transferem recursos da América Latina para as suas casas matrizes. Estas repatriações já afetam a um quarto do total de recursos manipulados por essas entidades nas economias emergentes.
Também os segmentos internacionalizados das finanças regionais são vulneráveis ao desmoronamento global. Alguns fundos privados de pensão – enlaçados ao vaivém especulativo mundial - acumulam perdas que ameaçam a sua sobrevivência (especialmente no Chile).
A América Latina experimenta, em segundo lugar, a superprodução de mercadorias, que caracteriza a crise atual. Este excedente foi desencadeado pelo modelo de competição mundial em torno a salários descendentes, modelo generalizado pelo neoliberalismo. O efeito deste desequilíbrio se verifica particularmente nos setores mais globalizados da indústria regional. O setor automotivo sofre, por exemplo, o mesmo excesso de produtos que golpeia as economias centrais.
Este excedente de produção é dramático no México, que exporta veículos conjuntamente aos Estados Unidos e Brasil, e que enfrenta uma destruição de empregos equiparável ao registrado na primeira potência. O panorama é igualmente problemático na Argentina, apesar da extraordinária rentabilidade que tiveram as montadoras nos últimos anos.
O ajuste industrial que sacode a América Latina é imposto pelas empresas transnacionais, que reorganizam sua produção em escala mundial. No atual clima sombrio já não se escutam elogios à globalização neoliberal, nem enaltecimentos a qualquer tipo de investimento. As terríveis consequências da produção mundial integrada – sob os princípios da competição e da rentabilidade - começam a surgir.
Mas a maior ameaça para a região provém de um terceiro impacto mundial: a abrupta queda dos preços das matérias primas. Este desmoronamento reverte o crescimento do último quinquênio, que se apoiou em uma significativa melhoria dos termos de intercâmbio (33% em comparação com a média da década anterior). Essa conjuntura permitiu, inclusive, alcançar volumes de exportação superiores à dívida externa em 2006 e 2007.
A mudança na tendência, porém, afeta agora as balanças comerciais e os orçamentos públicos. O crescimento consecutivo a 5,5% por ano desde 2003 ficou para trás. O PIB de 2008 se desacelerou a 3,3% e todas as estimativas de 2009 estão sendo ajustadas para baixo.
Muitos economistas sustentam que a América Latina poderá suportar o furacão se adotar medidas audazes de reativação keynesiana. Estas iniciativas já estão sendo adotadas para aumentar a liquidez, expandir o crédito público e subvencionar a indústria. Os debates sobre a sua efetividade e suficiência ganharam destaque.
Acontece, porém, que essa viabilidade depende da magnitude da crise e não tanto do acerto dos corretivos. As políticas monetárias e fiscais anticíclicas incidem dentro de certos limites. Podem reanimar a demanda ou deter a queda da produção em um quadro recessivo, mas têm pouca influência em uma depressão tão rápida.
Por enquanto o colapso financeiro golpeia com maior fúria as economias centrais, se bem que Estados Unidos, Europa Central e Japão contam com recursos superiores para tentarem uma resposta. Podem ensaiar reativações com o apoio do Tesouro e emitem os dólares, euros e ienes que a América Latina utiliza. Além do mais, lá eles aumentam o déficit fiscal, ao mesmo tempo em que, aqui, a região continua atada às normas do superávit.
Em síntese, na flutuante conjuntura latinoamericana tende a estreitar-se a margem das políticas macroeconômicas que visam frear o vendaval.
BENEFÍCIOS EM LONGO PRAZO?
O cenário que emergirá da crise dependerá de desenlaces políticos imprevisíveis e autônomos da tormenta econômico-financeira. Basta recordar que a depressão de 30 foi resolvida com uma guerra mundial e que a União Soviética se desmoronou pela implosão de um regime, para perceber quão forte é a incidência dos acontecimentos políticos.
A América Latina se encontra em um ponto de cruzamento de tendências geopolíticas contraditórias determinadas por três processos: a autonomia regional, a postura dos Estados Unidos e o perfil do Brasil.
Na primeira área, a da autonomia regional, alguns analistas estimam que a atual adversidade trará efeitos favoráveis, caso se repita o que ocorreu nos anos 30. Recordam que a débâcle do entreguerra gerou condições propícias para a gestação dos processos posteriores de industrialização.
Mas esquecem que o impacto inicial da grande depressão foi uma dolorosa depreciação das matérias primas. A substituição de importações só apareceu depois, como consequência do protecionismo e da guerra mundial, e se desenvolveu em uma região que pôde manter-se à margem desse conflito.
A única comparação apropriada, até o momento, é com o choque adverso que inicialmente gerou a grande depressão. Ninguém pode predizer o que sucederá posteriormente. Uma eventual reprodução do contexto do pós-guerra choca-se não somente com a ausência de confrontações bélicas interimperialistas, mas também com a maior internacionalização da economia hoje.
É verdade que alguns traços de autonomia regional já apareceram na América do Sul, antes da explosão atual, especialmente na área financeira. No último quinquênio de crescimento se registraram compras de títulos públicos e reduções do endividamento, que guardam certo paralelo com o ocorrido logo depois da grande depressão. Mas se esta atenuação da carga financeira continuará, isso já é uma incógnita.
O importante é perceber que um desmoronamento econômico no centro do capitalismo não amplia necessariamente as margens de ação da periferia. A crise dos anos 70 demonstrou que pode ocorrer exatamente o contrário.
Inicialmente aquele choque coincidiu com um marco favorável para o Terceiro Mundo. A derrota do Vietnã havia abalado a capacidade de intervenção estadunidense, e o encarecimento das matérias primas melhorava as rendas da periferia, no novo marco que rodeava a OPEP. Um bloco de 77 a 125 países Não Alinhados propunha o estabelecimento de uma Nova Ordem Econômica Internacional. Promovia estabilidade de preços para as matérias primas, maior acesso aos mercados desenvolvidos, transferências de recursos ao Sul e participação da periferia nas decisões da ONU.
Mas este curso foi abruptamente bloqueado nos anos 80 com a ofensiva neoliberal. Mediante aumentos de taxas de juros e cortes da demanda de insumos que provocaram a depreciação dos produtos básicos, as grandes potências retomaram o seu controle do Terceiro Mundo.
A América Latina sofreu o brusco aumento de seu endividamento, e, ao invés de obter um consolo como o do pós-30, padeceu de um desmoronamento equivalente ao da grande depressão. O breve alívio das desigualdades internacionais foi substituído por uma nova etapa de polarização global, que perdurou até o fim do século XX.
Este antecedente ilustra quão circunscrito e frágil pode resultar um período de autonomia periférica. Podem ser ponderadas as numerosas diferenças que distinguem a etapa atual da conjuntura dos anos 70, comparando, por exemplo, o velho papel da União Soviética com o papel recente da China. Mas é impossível definir se estas mudanças serão vantajosas ou desfavoráveis para a periferia. Mais especulativo ainda é pressagiar um cenário de nova industrialização autônoma para a América Latina.
MULTIPOLARIDADE OPRESSORA
A aposta em um beneficiamento latinoamericano com a atual crise se apoia na previsão de um cenário multipolar. Muitos analistas estimam que a região poderia aproveitar a mutação do marco global para adotar políticas mais autônomas.
Este período de maior dispersão ou equilíbrio entre forças capitalistas do planeta é certamente uma possibilidade. Mas é fundamental sublinhar que tal quadro não favoreceria, por si mesmo, às maiorias populares. A verdade é que fortaleceria as classes dominantes locais vinculadas às potências hegemônicas. Esta hipótese é omitida pela tese multipolar.
Uma maior ascensão geopolítica da China, Índia ou Rússia seguramente incluiria sérios conflitos com os capitalistas do centro, mas tenderia essencialmente a promover a associação com estes setores. Estas alianças se forjaram durante as últimas duas décadas e deram lugar a escancaradas compras de ativos nas economias avançadas por parte das multinacionais emergentes.
Estas mesmas tendências têm persistido após a explosão global e se verificam no financiamento asiático do déficit estadunidense. A ativa participação oriental no resgate dos bancos estadunidenses e a transferência de empresas quebradas a proprietários dessa origem formam parte deste mesmo processo.
Nas últimas décadas a dominação global esteve em mãos de uma tríade de potências encabeçadas pelos Estados Unidos. O imperialismo clássico - de países que derrotam e subordinam os seus rivais por meio da guerra - foi substituído pelo imperialismo coletivo. Os Estados Unidos vêm conduzindo nas últimas décadas um poder compartilhado com a Europa e o Japão. Um eventual cenário multipolar surgiria da incorporação de novos associados a esse consórcio. Remodelaria a opressão e obstruiria a emancipação popular.
A CRISE DE DOMINAÇÃO ESTADUNIDENSE
A localização central da crise na economia estadunidense agrava os problemas que enfrenta a primeira potência mundial na América Latina. Estas dificuldades derivam de fracassos políticos militares extrarregionais (Oriente Médio) e rebeliões anti-imperialistas na região.
Do falido projeto da ALCA se registra uma perda de posições do gigante do Norte, que deu lugar à paralisação dos Tratados de Livre Comércio. A confirmação da atual guinada protecionista limitaria adicionalmente o alcance desses convênios. Qualquer aumento significativo dos tributos na principal economia do continente faria os TLCs tropeçarem.
A crise atual golpeará especialmente aos sócios fronteiriços dos Estados Unidos. México enfrenta a queda do mercado que absorve 90% de suas exportações, em um explosivo contexto de retorno de emigrantes, deterioração social e crime organizado. O velho sonho com o Nafta se transformou em pesadelo. Também caiu a expectativa estadunidense de tomar a PEMEX [estatal petroleira do México], ao lado do desmoronamento de várias multinacionais mexicanas dependentes da economia estadunidense.
Mais grave é a situação dos pequenos países centroamericanos atados ao envio de remessas. A escassa significação passada dos emigrantes latinos na economia do Norte (1,7 milhões em 1970) contrasta com a sua enorme força atual (17,4 milhões em 2005). A repatriação - que já produz desemprego massivo na metrópole - afetará diretamente as relações dos Estados Unidos com estas nações.
O contexto político que enfrenta o Departamento de Estado dos EUA é ainda mais adverso na América do Sul. Como resultado de grandes traumas políticos e sociais, grande parte dos governos tem tomado distância de sua velha subordinação ao Norte. Durante o ano passado os Estados Unidos ficaram à margem das negociações para emendar dois graves conflitos: a incursão militar da Colômbia no território equatoriano e o frustrado golpe direitista na Bolívia. Teve que suportar, além disso, a inédita expulsão de dois embaixadores (Venezuela e Bolívia), que até agora não retornaram a seus cargos.
Alguns analistas estimam que este marco obrigará aos Estados Unidos a atenuarem o seu controle sobre a América Latina. Consideram que o Departamento de Estado adotará uma postura mais condescendente (ou menos ambiciosa) em relação ao futuro do continente. Supõem, especialmente, que Obama poderia também deslizar em direção a atitudes que “superem os vestígios da guerra fria”.
Mas, em realidade, o novo presidente não se dispõe a introduzir mudanças significativas na área. Retirará os presos de Guantánamo, mas não devolverá o território a Cuba, nem julgará Bush pelas torturas cometidas. Aliviaria as restrições para viajar à ilha, mas sem levantar o embargo, e buscará aproximações diplomáticas que evitem reconhecer a derrota imperial. Veremos se reduz o encobrimento ao terrorismo de estado na Colômbia e se atenua as provocações dirigidas à Venezuela e à Bolívia.
Dar continuidade a políticas imperialistas acordadas com os republicanos tem sido a norma de todas as administrações democratas. Seguramente Obama retomará uma combinação de cacetadas e afagos, com mais incidência diplomática (tradição de Clinton) do que com brutalidade descarada (herança de Bush).
As guinadas que o novo presidente deve encarar no plano interno não se projetam na política exterior. Um mandatário de cor – que inicialmente não representava o establishment - enfrenta um terremoto social sem precedentes desde Roosevelt, num contexto de transformações democráticas inéditas desde Kennedy. A crise interna obriga a mudar a agenda tradicional. Mas o roteiro para uma saída pela porta dos fundos se mantém sem variantes.
Há séculos os governos estadunidenses desenvolvem estratégias de sujeição baseadas na doutrina Monroe. Cedo ou tarde a primeira potência encarará uma contraofensiva, cujos sinais já se vislumbram na reativação da IV Frota. Com o pretexto do narcotráfico (ou do terrorismo), o Comando Sul de Miami ganha terreno. Já reúne mais funcionários civis dedicados à América Latina do que todos os departamentos diplomáticos e comerciais de Washington. As bases na Colômbia têm extensões no Peru e já existe uma nova hipótese de intervenção militar no México.
A primeira potência mundial perdeu na última década certa gravitação econômica, frente a seus competidores europeus. As empresas do Velho Continente deslocaram as companhias norteamericanas no montante dos investimentos externos.
Mas a União Europeia não deseja substituir o seu rival e tem se limitado a ensaiar tratados de livre comércio similares aos da ALCA. Teremos que ver, também, como a crise global afeta aos agentes espanhóis do avanço europeu. As companhias ibéricas têm que lidar com uma montanha de perdas, que as obriga a retirar-se e vender ativos.
É verdade também que os Estados Unidos tiveram que tolerar a primeira incursão comercial chinesa, a visita da marinha russa a Cuba e as viagens de funcionários iranianos à Venezuela. Mas estas presenças ameaçam a tradicional dominação estadunidense menos do que o faz a Europa. Nenhum dado corrobora, portanto, as teses da indiferença (ou a resignação) dos Estados Unidos frente à América Latina.
DECLÍNIO INEXORÁVEL?
Certos analistas atribuem o futuro desafogamento latinoamericano a um declínio estrutural e inevitável dos Estados Unidos. As versões mais vulgares deste enfoque são normalmente recolhidas pelos meios de comunicação. Têm sido enunciadas por futurólogos de instituições próximas ao Departamento de Estado e pressagiam a liderança da Europa ou da Ásia e a ascensão de novas potências (China, Rússia, Índia). Logo após o fracasso neoconservador de Bush, alguns sugerem datas para o fim da primazia estadunidense (o ano de 2025).
Estes prognósticos contrastam com o deslumbramento pró-Estados Unidos que prevalecia na década anterior e também com a euforia midiática que rodeou a ascensão de Obama. Os mesmos meios – que teorizam a agonia dos Estados Unidos - ressaltaram os atributos do novo presidente para restaurar o sonho americano. Neste sobe e desce, o fim do império e sua ressurreição se alternam com surpreendente velocidade.
Outros teóricos da decadência ponderam sobre esta regressão. Estimam que ela permitirá superar as desvantagens da dominação global no terreno econômico (menor produtividade) e político (crescente desprestígio). Com esta visão transmitem uma idílica imagem de renúncia estadunidense a suas prerrogativas.
Mas é demasiado absurdo apresentar o imperialismo norteamericano como vítima de uma supremacia indesejada. O Pentágono e o Departamento de Estado exercem um papel mundial opressor, a favor de empresas estadunidenses, e protegem os grandes lucros que essa dominação gera.
De uma óptica muito diferente, os analistas sérios buscam desenvolver a tese do declínio norteamericano na América Latina. Apresentam dados significativos do retrocesso tecnológico e produtivo da primeira potência e evidências de seu enfraquecimento para exercer a hegemonia frente a seus rivais.
Mas este enfoque contém um reconhecimento problemático: o domínio militar estadunidense persiste sem rivais à vista, e é tolerado pelos seus competidores. Esta ausência de substituto bélico (europeu ou asiático) é particularmente decisiva no esquema da escola sistêmica. Esta corrente associa cada etapa da história contemporânea com a existência de uma potência dominante ou em curso de exercer essa supremacia.
Como os candidatos a ocupar esta liderança não passaram na prova das últimas décadas (Alemanha nos anos 70, Japão nos 80, União Europeia nos 90), temos que ser mais cautelosos com os prognósticos sobre a China.
A supremacia norteamericana atravessa uma crise, cujo desenlace final é uma incógnita. Não está escrito em nenhum lado que terminará com a ascensão de um rival ou com a reciclagem da própria liderança. Resulta impossível determinar, neste momento, se os Estados Unidos atravessam um retrocesso pontual ou definitivo.
Mas a essência teórica deste problema é a controvertida noção de auge e decadência dos impérios. Esta tese de substituições cíclicas da supremacia mundial pressupõe uma filosofia de etapas predeterminadas da história. É um enfoque com raciocínio fatalista, que choca com o desígnio de protagonismo dos sujeitos sociais. A interpretação da história como um devir da luta de classes - em um marco de condições objetivas - é incompatível com a regra da dominação imperial substitutiva.
O NOVO PERFIL DO BRASIL
A atual discussão sobre a regressão estadunidense contrasta também com a imagem de uma superpotência impondo as suas prioridades à América Latina, que acompanhou os primeiros passos do neoliberalismo. Esta mudança indica uma crise do velho papel pretoriano do Pentágono, protegendo as frágeis classes dominantes, estados instáveis e elites pouco autônomas. Especialmente na América do Sul não se verifica atualmente o tipo de sujeição neocolonial, como o que impera, por exemplo, em várias regiões da África.
É incorreto ver as principais classes dominantes locais como fantoches de um império. Atuam como grupos de exploradores com interesses e estratégias próprias, num cenário que difere substancialmente do quadro semicolonial. Esta mudança de contexto é tergiversada por muitos teóricos da recolonização, que só ressaltam a reinserção subalterna da região no mercado mundial ou a reaparição de formas de sujeição pré-nacionais.
Por esta perspectiva se perde de vista não apenas o retrocesso da dominação norteamericana, como também a nova força do Brasil. Não há indícios de que este país venha a ser o grande candidato a comandar uma multipolaridade opressora na América do Sul.
Apesar do baixo crescimento dos últimos anos, as empresas transnacionais de origem brasileira têm se consolidado em toda a região. Apoderaram-se de 50% da principal atividade econômica uruguaia (a indústria de carne), comprando terras e controlando um terço de todo o processo. Tomaram várias firmas estratégicas da Argentina (especialmente Pecom e Loma Negra) e já manipulam 95% da soja exportada do Paraguai.
No início da década, a Petrobrás se apropriou de 45% do gás, 39% do petróleo e de todas as refinarias da Bolívia. No Peru dois conglomerados brasileiros controlam a maior parte das minas de zinco e fosfato. No Equador operam várias jazidas estratégicas e administram os principais projetos de obras públicas.
A expansão sulamericana das multinacionais brasileiras tem se sustentado no financiamento oficial (BNDES). Estes créditos cresceram mais do que os repasses feitos à região pelo FMI ou pelo Banco Mundial. As companhias do Brasil extraem matérias primas, dominam fontes de energia e abastecem mercados de consumo. Seu principal núcleo - Petrobrás, Gerdau, VM, Odebrecht, Friboi, Marfrig, Vale - opera com elevados níveis de internacionalização.
O principal projeto destas empresas é um conjunto de rodovias e hidrovias programadas no IIRSA (Infraestrutura Regional Sulamericana). Este plano envolve a todos os países vizinhos e está localizado prioritariamente na Amazônia. Auxiliará na exploração dos gigantescos recursos naturais dessa região.
A expansão multinacional brasileira se apoia também na agressiva diplomacia de negócios que o Itamaraty desenvolve. Esta política tem provocado numerosos conflitos. A Petrobrás se opôs às nacionalizações conduzidas por Evo Morales, e Lula buscou impor termos leoninos às indenizações em jogo. Também em relação ao Equador, Brasília chamou imediatamente o seu embaixador para que ele explicasse sobre os questionamentos oficiais que a empresa Odebrecht recebeu, por causa de represas construídas com problemas estruturais.
É provável que o próximo conflito envolva Itaipu, já que o Paraguai não tem tido soberania para manejar seus recursos hidroelétricos. É obrigado a vender a energia excedente por uma tarifa inferior ao preço de mercado, para saldar uma odiosa dívida com o credor brasileiro.
GEOPOLÍTICA DE DOMINAÇÃO
Para sustentar a política das corporações, o Brasil se militariza com tecnologia francesa. São construídos submarinos, aviões e helicópteros destinados a salvaguardar os interesses dessas companhias nas vastas regiões inexploradas do subcontinente.
Este correlato militar da expansão multinacional não se limita aos países fronteiriços do Brasil. Desde 2004 o país lidera as forças de ocupação que substituíram os marines no Haiti. Garante ali uma política neoliberal, que agrava a tragédia de fome, pobreza e emigração, utilizando os métodos policiais que ensaiou nas favelas. Estas ações têm facilitado a entrada das empresas brasileiras no Caribe.
A estratégia geopolítica em curso aponta para a conquista, desde a UNASUR, do desejado assento brasileiro no Conselho de Segurança. Com este objetivo o Itamaraty amplia o raio de alianças (agora com o México) e estimula a entrada de Cuba no Grupo do Rio.
Lula repete a mesma política de lobby que desenvolveu Felipe González, para posicionar as empresas espanholas na América Latina. Como busca garantir a estabilidade de negócios arbitrados pela diplomacia brasileira, rechaça as pretensões separatistas da extrema-direita sulamericana (Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija na Bolívia, Zúlia na Venezuela, Guayas no Equador).
O Brasil subordina inclusive a continuidade do MERCOSUL à sua liderança. Demorará a sair do papel a moeda comum e o parlamento regional até que tenha assegurada essa condição. Tampouco renuncia a estratégias unilaterais. Na última reunião da OMC abandonou os seus aliados do G20 para buscar um compromisso direto com os países desenvolvidos.
Mas a direção do bloco sulamericano requer neutralizar politicamente a Venezuela (dentro ou fora do MERCOSUL) e resolver os conflitos comerciais com a Argentina. Somente fortes benefícios geopolíticos podem atenuar as constantes queixas que os industriais de São Paulo fazem do vizinho do Sul.
Tudo indica, portanto, que o Brasil busca ocupar os espaços criados pela crise de dominação estadunidense. Mas aspira cumprir este papel sem chocar-se com a primeira potência mundial. Tratará de saltar um degrau dentro da coordenação hegemônica que prevaleceu desde o pós-guerra. As classes dominantes brasileiras pretendem assumir um papel mais visível, mas ao mesmo tempo mais integrado ao imperialismo coletivo.
Como responderão os Estados Unidos? Até agora predomina a indefinição. Em 2007, Bush assinou um acordo estratégico com Lula para desenvolver uma política comum de agrocombustíveis. O barateamento do petróleo e as disputas aduaneiras em torno ao etanol ameaçam este convênio. Muitos, porém, opinam que Obama poderia retomar este tratado, para associar o principal país sulamericano à dominação global.
SEMIPERIFERIA E SUBIMPERIALISMO
Em sua nova posição dominante o Brasil tende a jogar um papel subimperialista. Este papel está sendo gestado sob a cobertura de interesses regionais compartilhados e não será menos torturante para os povos do que a tradicional opressão exercida pelo imperialismo estadunidense ou europeu.
O conceito de subimperialismo surgiu nos anos 60 para retratar uma expansão do Brasil conectada às prioridades do Departamento de Estado dos EUA. Com o prefixo “sub”, Ruy Mauro Marini indicava o caráter tardio e periférico da nova potência e a sua associação subordinada aos Estados Unidos.
A denominação distinguia um papel imperial emergente (Brasil) de uma função já dominante (Estados Unidos, Grã-Bretanha, França). Também aludia a diferenças com imperialismos menores (Suíça, Bélgica, Espanha), imperialismos extinguidos (otomano, austro-húngaro) e imperialismos falidos (Rússia, Japão).
A expressão subimperialismo poderia erroneamente sugerir uma delegação do poder central a funcionários da periferia. Mas no caso brasileiro ela sempre ressaltou o processo oposto, de maior autonomia das classes dominantes locais.
A aplicação desse conceito para a região difere, por exemplo, de seu uso para o caso de Israel (que atua como que através de um mandato do Pentágono) e para o caso de subpotências como Austrália e Canadá, que atuaram sempre coladas ao eixo anglo-estadunidense. Uma analogia mais próxima ao Brasil seria o papel cumprido pela África do Sul na região austral do continente negro.
Há quarenta anos o subimperialismo brasileiro debutava como polícia anticomunista, nas ações de uma ditadura comprometida com a guerra fria. Na atualidade, o Brasil sustenta a ordem capitalista por conta própria (ocupação do Haiti), se abastece com munição da França e põe sérios limites à plataforma dos marines na Colômbia.
O acerto mais perdurável dos primeiros teóricos do subimperialismo foi captar a transformação das velhas burguesias nacionais (promotoras do mercado interno), em burguesias locais (que priorizam a exportação e a associação com empresas transnacionais). Marini denominou “cooperação antagônica” ao processo de internacionalização do capital local e polemizou com os autores que apresentavam essa virada como um acontecimento favorável ao desenvolvimento do país.
Esta guinada multinacional das classes dominantes foi consolidada nas últimas duas décadas e se cristaliza atualmente na expansão das empresas brasileiras em direção aos países vizinhos. Marini atribuía esta manobra para o exterior à estreiteza do mercado interno, afetado pela fragilidade do poder aquisitivo. Considerava, além do mais, que os grandes capitalistas brasileiros acentuavam a compressão do poder de compra, recorrendo a formas de superexploração dos trabalhadores.
Os seguidores desta tese têm ressaltado o agravamento contemporâneo destes desequilíbrios, na falta de um consumo de massas equiparável ao do fordismo nas economias avançadas. Estas carências impulsionam as multinacionais a investirem no exterior os capitais que sobram, o que gera uma restritiva acumulação interna.
Como resultado desta contradição o Brasil adota condutas subimperiais, antes de haver alcançado o poderio que tiveram as principais economias centrais nos séculos XIX e XX. Esta assimetria ilustra as modalidades contemporâneas que adota o desenvolvimento desigual e combinado.
A noção de subimperialismo contribui para a superação do simplificado esquema de centro-periferia e indica a variedade de relações que a polarização do mercado mundial produz. Retrata a existência de formações intermediárias, que alguns pensadores teorizaram com o conceito de semiperiferia.
Este termo alude a frequentes situações intermediárias da história do capitalismo. Indica o surgimento de potências desafiantes que alcançaram posições de liderança (EUA, Japão, Alemanha) ou falharam na perseguição dessa meta (Itália, Espanha, Rússia).
As semiperiferias têm sido subimperialismos (ou imperialismos) potenciais que prosperaram ou abortaram. Na América do Sul esta evolução se frustrou na Argentina durante a primeira metade do século XX, mas continua aberta para o Brasil. Múltiplas razões econômicas, políticas e sociais explicam esta evolução divergente.
As noções de semiperiferia e subimperialismo permitem captar o dinamismo contraditório do capitalismo. Este sistema periodicamente transforma as relações de força no mercado mundial. Uma fotografia congelada do centro e da periferia impede captar estas mudanças. Não permite compreender, por exemplo, mutações históricas tão surpreendentes como o salto realizado pela China nas últimas décadas.
Os dois conceitos intermediários também se chocam com a estreita classificação dos países latinoamericanos em colônias, semicolônias e capitalistas dependentes. Este modelo é particularmente insuficiente para uma região – que ao contrário do resto da periferia - conseguiu cedo uma emancipação do jugo colonial. Por ter se precavido de situações semicoloniais durante grande parte do século XX, o Brasil tende a saltar rumo a um estágio subimperial.
ESTATISMO PARA OS PODEROSOS
Enquanto a margem de autonomia, a reação estadunidense e o papel multipolar do Brasil são incógnitas abertas, o duro impacto imediato da crise já está à vista. A preocupação central de toda a região é atuar frente a um tsunami que prevê desemprego e pobreza.
As medidas que estão sendo adotadas nas três principais economias da região socorrem aos capitalistas, com os recursos públicos de que necessitam os desamparados. No México são queimadas reservas para compensar uma corrida contra a moeda nacional, o que poderia ser freada instaurando-se um severo controle de câmbio. No Brasil, o Tesouro pôs à disposição dos banqueiros 50 bilhões de dólares e os bancos públicos já anunciaram que absorverão as perdas das entidades privadas. Na Argentina decretou-se uma moratória dos capitais que fugiram, perdoando a evasão impositiva.
A mesma consideração oficial recebem os grandes industriais. No México foram incorporados a um megaplano de investimentos públicos. No Brasil obtiveram redução de tributos e ganharam medidas para sustentar a reativação das vendas. Na Argentina são particularmente agraciados os empresários da construção e os produtores de bens duráveis. Este mesmo auxílio ao capital se verifica no Chile e na Colômbia.
Estas orientações apostam numa reação positiva dos poderosos. Supõem que os fluxos governamentais de dinheiro induzirão aos capitalistas a manterem o nível de atividade. Mas esquecem que essa decisão depende da duvidosa preservação da rentabilidade. Os planos buscam sustentar também o consumo, mas sem medidas de redistribuição da renda. Só buscam incentivar o gasto da alta classe média, induzindo compras que dissuadam a reserva de divisas.
Por esse caminho agrava-se a emergência social, que já provoca as suspensões, as demissões e a desaceleração produtiva. Como não se introduz uma renda mínima equivalente à cesta básica familiar, a crise tende a golpear frontalmente o bolso do povo.
A proteção do grosso da população requereria destinar os fundos públicos à preservação dos salários, ampliar o seguro-desemprego e aumentar os gastos em saúde, educação pública e moradia. Mas o intervencionismo atual favorece as classes dominantes.
Na instrumentação deste estatismo, atualmente convergem os keynesianos e os neoliberais. Sobretudo os adoradores da privatização fizeram um vertiginoso giro pragmático. Agora questionam a sabedoria do mercado e aplaudem o gasto público.
A virada estatista igualmente preserva a variedade de matizes social-liberais (Tabaré, Lula) e neodesenvolvimentistas (Cristina Kirchner), que prevaleceram nos últimos anos. A nacionalização dos fundos de pensão, fato ocorrido na Argentina – para prevenir o colapso das aposentadorias e arrecadar fundos para a reativação - é um exemplo destas diferenças. As singularidades nacionais do intervencionismo obedecem especialmente à intensidade da luta social e à deterioração econômica e social precedente.
Mas a tônica dominante se dá em direção a uma convergência de políticas econômicas, que não implica em coordenação. Até agora cada governo atua por sua conta, especialmente no plano comercial. A política de salvar-se de costas para o vizinho é bastante visível nas desvalorizações competitivas e nos aumentos de tarifas alfandegárias. Se estas reações puseram em perigo a continuidade da União Europeia, também poderão conduzir ao naufrágio da integração sulamericana.
EXPERIÊNCIAS E ALTERNATIVAS
Em qualquer horizonte próximo os povos enfrentarão duros embates, caso não consigam consolidar sua resistência ao capital. Esta conclusão é a principal lição dos colapsos financeiros que a região padeceu na década passada. Essas débâcles desencadearam rebeliões que permitiram acumular importantes experiências políticas e sociais.
Os levantes populares reverteram na Bolívia um grande ciclo direitista, enterraram vários presidentes neoliberais no Equador, suscitaram na Venezuela uma acentuada polarização e conduziram na Argentina à histórica mobilização de 2001. Eles também geralizaram a batalha pela anulação das privatizações, pela nacionalização dos recursos naturais e pela democratização da vida política.
Os oprimidos da América Latina conhecem as dramáticas consequências da selvageria aos capitalistas e devem preparar-se para enfrentar a agressão social que acompanhará o novo socorro aos banqueiros.
Frente a este cenário os movimentos sociais, as organizações políticas comprometidas com a luta e os economistas radicais já debatem propostas alternativas. Em vários encontros têm sido fixadas as bases desta plataforma (Caracas, Buenos Aires, Pequim, Belém).
Estes programas rechaçam as medidas de regulação e controle estatal que socializam as perdas capitalistas. Chamam para a mobilização como forma de acompanhar e supervisionar como se utilizam os recursos públicos e denunciam as ameaças que afetam aos direitos populares.
As reivindicações que se têm esboçado priorizam a manutenção dos empregos, a proibição das demissões, a redução das horas de trabalho sem modificação do salário e a nacionalização das fábricas que fechem ou demitam. Estas medidas são necessárias frente à cumplicidade governamental com os cortes que os empresários estão fazendo de postos de trabalho. A intermediação estatal em negociações, para reduzir salários em troca da preservação de empregos, é outra cara do abuso social em curso.
Três medidas em debate são particularmente urgentes. Em primeiro lugar, a nacionalização sem nenhum tipo de indenização dos sistemas financeiros, para garantir o controle oficial do crédito na explosiva conjuntura atual. A salvação dos banqueiros deve ser substituída pela expropriação dos seus bens. Os Estados devem recuperar o custo de manter em funcionamento os bancos, absorvendo as propriedades de seus acionistas e administradores. A nova Constituição do Equador – que proíbe estatizar as dívidas privadas - brinda um fundamento para esta ação.
Enquanto se realiza um inventário das grandes fortunas há que se prevenir da fuga de capitais, mediante estritos controles de câmbio e fechamento das sucursais off shore. A abertura dos livros contáveis é também indispensável para conhecer a situação de cada entidade. Há que se antecipar ao agravamento do colapso, garantindo o funcionamento do setor que articula toda a atividade econômica.
A segunda medida impostergável é a suspensão, revisão e anulação das dívidas públicas externas e internas. Enquanto a crise apaga passivos multimilionários nas economias centrais, a América Latina continua pagando.
As cláusulas de risco sistêmico que se utilizam nos Estados Unidos para reajustar o montante das dívidas e os prazos de obrigações, não são utilizadas na América Latina.
É o momento de seguir o caminho que iniciou o Equador, ao colocar em marcha uma auditoria integral visando a esclarecer as fraudes dos passivos reais. A Comissão que revisou os títulos emitidos entre 1976 e 2006, encontrou um escandaloso aumento do endividamento (de 240 milhões de dólares em 1970 para 17.400 milhões em 2007). Também descobriu falta de registros e muitas renegociações fraudulentas, que levaram o Estado a pagar somas superiores ao recebido.
Se for realizada, de forma conseqüente, essa suspensão do pagamento da dívida ilegal, haverá um enorme impacto sobre a região. Substituirá o repetido default, por uma decisão soberana de colocar os credores no banco dos réus.
A terceira medida que a crise impõe é a nacionalização do petróleo, do gás e dos minérios. Permitiria preservar os recursos que a América Latina necessita para se proteger do tremor global. Este caminho já foi iniciado pela Venezuela e pela Bolívia. Evo decidiu recentemente nacionalizar uma petroleira (Chaco), que não havia cumprido com a transferência de ações para o Estado, como definido pelo governo. Ao denunciar o “caráter eleitoreiro” desta iniciativa, a direita evidencia a popularidade que tem este tipo de medida.
Mas as nacionalizações se adotam com muitas vacilações e recorrendo a equivocados pagamentos de indenizações. Em plena queda dos preços das matérias-primas estes desembolsos podem ser fatais.
O CONTEXTO POLÍTICO
A crise global modifica a percepção que habitualmente se tem da tomada de medidas drásticas. Em meio a um colapso que fraturou a ideologia neoliberal, ninguém se assusta com decisões de nacionalizar, estatizar ou suspender pagamentos de dívidas. É o momento de aproveitar este contexto para proteger a população latinoamericana, adotando decisões contundentes. Mas existem as condições para se adotar uma virada radical?
Certos analistas estimam que o contexto político se tornou desfavorável desde que a direita recuperou terreno eleitoral (Chile, México), assegurou um regime criminal (Colômbia), obteve vitórias setoriais (os sojeiros da Argentina) e sepultou as expectativas reformistas com vários governos (Brasil, Uruguai).
Certamente a direita prepara contraofensivas em todos os países. Mas até agora perdeu as grandes batalhas. Fracassou com o golpe de estado na Bolívia, falhou com a provocação da Colômbia sobre o Equador e não pôde consumar nenhum ensaio de separatismo regional. Também não conseguiu restaurar a unanimidade direitista dos anos 90, num marco de força progressiva dos avanços alcançados na consciência antiliberal e anti-imperialista .
Mas existem, ademais, vários governos nacionalistas radicais (Venezuela, Bolívia, Equador), que poderiam tomar em suas mãos a adoção de um programa popular frente à crise. Estes processos se distinguem das administrações centroesquerdistas (Tabaré, Cristina, Lula, Bachelet) em três planos: recorrem à mobilização popular, chocam-se com o imperialismo e as classes dominantes e buscam tomar medidas de redistribuição da renda.
A singularidade progressiva destes governos voltou a expressar-se frente ao massacre de Gaza. Evo e Chávez adotaram uma atitude exemplar de ruptura com Israel, que contrastou com a neutralidade diplomática de seus colegas sulamericanos. Sua postura se diferenciou também da criminosa cumplicidade que caracterizou a quase todos os governos árabes.
No Equador, Bolívia e Venezuela se consagraram, além disso, importantes avanços democráticos através de novas Constituições, aprovadas ao cabo de fortes disputas eleitorais com a direita. No Altiplano, por exemplo, se reconheceu o estado plurinacional, a separação da Igreja do Estado e a proibição de bases militares estrangeiras.
Mas os governos nacionalistas radicais enfrentam grandes dilemas. Eles mantêm o apoio popular, mas as concessões ao capital e a ausência de medidas radicais, entretanto, tendem a gerar um esgotamento. A crise global abre uma oportunidade para superar este desgaste com novos impulsos. A prioridade é neutralizar o golpismo da direita e impedir o retorno dos conservadores. Mas também é indispensável evitar um congelamento das transformações sociais, que estabilize a camada de opressores que germina dentro dos processos populares.
Na Bolívia os nacionalistas ganharam novamente as eleições com mais de 60% dos votos, mas a direita mantém sua força nas regiões adversas. Ao invés de aproveitar a derrota do putch separatista, optou-se por incorporar à Constituição várias demandas da oligarquia (especialmente o caráter não retroativo dos limites à propriedade agrária).
Na Venezuela persiste o vigor dos programas sociais e se tem obtido um contundente triunfo eleitoral, que reverte os resultados mais adversos de eleições anteriores. Mas ao mesmo tempo se consolida a “boliburguesia” [burguesia bolivariana] associada ao governo, que recicla a desigualdade social e recria a repudiada corrupção.
Também no Equador se consolida a soberania política, mas têm aparecido fortes tensões entre o governo e o movimento indígena, que legitimamente protesta contra a entrega de áreas de mineração à exploração transnacional.
Este é o momento de superar estas dificuldades radicalizando os processos nacionalistas, reforçando um eixo político-regional com Cuba e revitalizando a ALBA. Esta associação introduziu princípios de intercâmbio solidário, reafirmou critérios de ação anti-imperialista e projetou reformas sociais. Nos últimos meses incentivou a adoção de um sistema de compensação monetária e multiplicou os acordos com a zona do Caribe. Muitas medidas, entretanto, dependem de um financiamento petroleiro ameaçado pela crise.
A ALBA poderia cumprir um papel mais significativo no novo contexto, como âmbito de formulação e ensaio de respostas populares ao tsunami econômico. Uma decisão chave é o desligamento do CIADI [Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos, um organismo do Banco Mundial], iniciado pela Bolívia. É vital também a campanha para abandonar o FMI e o Banco Mundial, para sentar as bases de novos organismos de cooperação e solidariedade.
A ALBA tem buscado contra-atacar a paralisia que o Brasil impôs aos projetos do Banco do Sul e do sistema monetário latinoamericano (SUCRE). Tem se discutido muito as normas de funcionamento dessa entidade (voto por país ou proporcional ao capital aportado), assim como o volume e o destino dos fundos.
Mas enquanto persista a tendência das classes dominantes a protegerem-se individualmente do colapso financeiro, estas iniciativas não prosperarão. Só os oprimidos - que atuam sem a compulsão do lucro e da competição - podem garantir a unidade regional. A crise global cria novas condições para avançar em direção a esta meta.
UM PROJETO ANTICAPITALISTA
A América Latina cumpriu um papel de vanguarda na resistência contra o neoliberalismo, mas a crise atual projeta outro desafio: ocupar um papel avançado na batalha contra o capitalismo. Este sistema é o responsável pelos descalabros atuais e sua continuidade exigirá maiores sofrimentos populares.
Há só um caminho para pôr fim à exploração, ao desperdício e à desigualdade vigentes, que permitirá contra-atacar a miséria e a paralisação que o desmoronamento em curso projeta. Esta via exige adotar medidas antiliberais e anticapitalistas.
As respostas serão efetivas se facilitarem uma transição ao socialismo, oposta a todos os projetos de regular o capitalismo. O estatismo em voga tende a recriar a crise, ao cabo de penosas medidas de recuperação que são pagas pela população.
Duas perspectivas históricas diferentes estão em jogo em todos os debates do movimento social. O Banco do Sul, por exemplo, pode ser concebido em dois sentidos: num rumo socialista exigiria a utilização dos fundos dessa entidade para financiar a reforma agrária, melhorias para a população e cooperativas; o rumo capitalista induziria a respaldar as empresas locais, que disputam mercados com seus rivais extrarregionais.
O mesmo dilema determina alinhamentos diferentes para o Fundo Regional do Sul (sistema monetário de compensação de pagamentos). Poderia facilitar a redistribuição de renda ou imitar os mecanismos capitalistas de estabilização que reinam na Ásia e na União Europeia. O caminho socialista requer a saída do FMI e do Banco Mundial, enquanto que a via capitalista aponta para a ilusão de se democratizar estes organismos.
Somente a perspectiva socialista permitirá organizar uma economia a serviço das necessidades populares, com formas de planificação democrática que atenuem (e eliminem posteriormente), as traumáticas turbulências do ciclo capitalista. O socialismo do futuro não guardará nenhuma conexão com as fracassadas experiências de totalitarismo burocrático do século XX. Colocará em marcha a autogestão coletiva necessária para se forjar uma sociedade igualitária.
ODiario.info - 19.07.09
À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.
19/07/2009
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário