Correia da Fonseca
Parece que um dirigente do PS acusou o governo PSD/CDS de “dirigismo cultural”. É um bom tema. Porque há dirigismo e dirigismo. Os apoios do Estado a actividades culturais obedecem a escolhas, sejam elas explícitas ou não. E se, como agora se prepara, os apoios se aproximam do zero, não é essa igualmente uma forma de dirigir a cultura, neste caso condenando-a ou ao mercado ou à ruína?
1. Se não estou em erro, aconteceu durante um serviço noticioso da RTPN agora crismada de RTP Informação em obediência à tradição sempre um pouco patusca que manda mudar as designações para fingir que se mudou alguma coisa de relevante. De qualquer modo, a imprecisão da minha memória quanto a este ponto não me parece importante porque os noticiários dos diversos canais portugueses em muito pouco diferem entre si, todos se alimentando basicamente do que veio escrito em dois ou três jornais alcunhados «de referência». E, curiosamente, não é raro que as informações mais interessantes não nos sejam dadas pelo jornalista que apresenta o noticiário, antes passando em legenda no rodapé do ecrã. Foi exactamente isso que aconteceu relativamente a uma informação que me feriu especialmente a atenção: segundo ela, Francisco de Assis acusou a secretaria de Estado da Cultura de «dirigismo cultural», decerto a propósito de algum critério selectivo na atribuição de apoios. O laconismo da informação não permitia saber pormenores quanto ao sector ou aos sectores onde esse dirigismo terá sido visível, mas o que mais me interessa não é a satisfação dessa eventual curiosidade: o que mais me interessa é a objecção subjacente de que os apoios do Estado a actividades culturais não devem obedecer a escolhas, designadamente quanto à avaliação do seu grau de qualidade, pois que tais avaliações sempre ficarão expostas a acusações de radicação ideológica. Mais e pior: ao abrigo dessa sempre possível acusação, será possível reivindicar apoios públicos para obras que de facto façam a apologia, encoberta ou não, do racismo, do colonialismo ou do nazifascismo. Ou do neoliberalismo, que quase sempre transporta na bagagem alguma forma soft daquelas pestes.
2. Porém, acresce que com razão ou sem ela suspeito de que a fórmula utilizada por Assis radica numa velha infecção há muito disseminada em sectores que reivindicam para si próprios o monopólio do democratismo e sobre ele edificam um edifício de propaganda anticomunista muitas vezes centrada num anti-sovietismo não apenas primário mas também e sobretudo falsificado tanto quanto se lhes torna necessário. É que, na verdade, a prática governativa da União Soviética incluiu, em matéria de política cultural, uma permanente escolha, por vezes talvez inevitavelmente excessiva, a que bem se pode chamar dirigismo, aliás com boas razões: num país que também na área cultural se deparava pelo menos com duas tarefas, a de possibilitar a fruição cultural a uma vasta população secularmente privada dela e a de evitar que certos produtos culturais contrabandeassem propaganda política hostil à gigantesca transformação social em curso, isto é, propaganda anti-soviética, Era, assim, forçoso «dirigir», isto é, escolher, mesmo pagando o preço de expor essa opção à argumentação de que se trataria de um caso exemplar de despotismo. Acusação esta que de resto encontraria aparente fundamentação em possíveis excessos e inevitáveis erros pois, ao que consta, a bancada que nos Céus está reservada aos que, agindo, nunca erram, ainda se encontra vazia.
3. Não foi contudo um homem político soviético ou, mais amplamente, de formação comunista, mas sim um dirigente francês do socialismo dito democrático, quem há uns anos lembrou reiteradamente ao seu país e ao mundo que «governar é escolher». Suspeito de que o homem, já há muito falecido, se arriscaria hoje a sofrer a acusação de «dirigista» por parte de Francisco de Assis, este aparentemente convencido de que é preciso de tudo para fazer um mundo, nesse amplo material se incluindo eventualmente a inépcia, o charlatanismo ou a fraude. Há, porém, quem esteja convencido precisamente do contrário, sobretudo talvez quando se trate da acção de um sector governativo que se ocupa da cultura, isto é, de um caminho de acesso ao entendimento da vida e do mundo. É certo que a necessidade de escolha que emerge dessa função fundamental (infelizmente reduzida no actual governo português à situação apendicular de uma secretaria de Estado) implica a exposição à acusação de dirigismo, especialmente possível se vinda da parte de quem ainda não se libertou de reflexos decorrentes da militância anti-soviética que curiosamente sobrevive ainda hoje, vinte anos depois da derrota da URSS. A averiguação das raízes dessa sobrevivência mereceria uma reflexão demorada, mas é claro que essa é uma outra questão. Que excede o tema desta nota e também o espaço para ela disponível.
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