À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

02/06/2011

A pontapé

Correia da Fonseca

As imagens foram repetidamente transmitidas, não decerto porque fossem excelentes mas porque repeti-las convinha: eram imagens que atrairiam telespectadores aos magotes, isto é, que tinham valor comercial, e que testemunhavam o repúdio da estação que as transmitia pela violência no contexto escolar/juvenil, o que indiciava preocupações éticas que ficam bem a qualquer canal. Depois, como sempre acontece quando a TV ou os media em geral revelam factos que provocam escândalo ou suscitam celeuma, vieram os especialistas ou equiparados a explicarem motivos, a esgravatarem raízes, a discutirem consequências. O caso não seria para menos, tratava-se de um caso de brutalidade chocante praticado por menininhas cujo aspecto decerto não se assemelha ao dos antigos espancadores da PIDE, também eles muito vocacionados para pontapear na cabeça, no ventre, nas costas. Haverá decerto quem não aprecie o aparentamento aqui feito entre jovens sem currículo e torcionários profissionais, mas parece verdade que um pontapé selvático é sempre um pontapé, independentemente da idade do pezinho que o desfere e do sexo de quem o comanda. Vieram, pois, os especialistas, alguns ou todos eles evocando os tempos rudes que vivemos, a chamada crise de valores, as responsabilidades dos pais ou da escola. Não estou certo de que nesse quadro de «análise técnica» tenham sido também referidos alguns conteúdos que por aí navegam nas ondas dos meios electrónicos de comunicação, mas é de crer que sim. Do que não recordo que tenha sido falado é da contribuição da TV para a admissão da brutalidade, ainda que extrema, como normal e aceitável forma de comportamento nas sociedades de civilização avançada em que estamos a viver.

Indutora de comportamentos

Para quem tenha memória, luxo que aliás vai faltando a um crescente número de pessoas acerca de um crescente número de assuntos, essa espécie de irresponsabilização da TV pela implementação de estados de espírito sociais, digamos assim, que encaram a violência com uma espécie de bonomia, como uma característica que não vale a pena questionar, pode surpreender. É que houve um tempo não exageradamente distante em que o tema da violência na TV e da consequente banalização da brutalidade como forma até um pouco apetitosa de comportamento, foi assunto abordado e debatido até na própria televisão, embora naturalmente não no prime time, este precisamente reservado para tempo de antena dado à violência em qualquer das suas modalidades, que são mais numerosas do pode supor-se. Eram conversas que não conduziam a nada de relevante, é certo, mas que mantinham a violência sob condenação e a televisão sob suspeita. Nelas se lembrava, designadamente, que sempre a televisão é uma fornecedora de modelos e uma indutora de comportamentos, característica que de resto explica e fundamenta a sua condição de líder dos suportes publicitários, o que é consensualmente reconhecido. Parece claro, assim, que entre os comportamentos induzidos pela TV (consumos, moda, até modalidades desportivas, entre outros) há-de destacar-se os que têm a ver com apetências instintivas ou próximas de o serem: violência, sexo, enriquecimento, afirmação social. Significativamente, estes caminhos não são estanques entre si: o sucesso social muitas vezes descrito nas estórias que a TV nos conta, sobretudo se são made in USA, é obtido muitas vezes «a pontapé», embora a expressão tenha neste contexto uma acepção figurada, e num certo sentido também os consumos de produtos ditos de gama alta constituem «pontapés» desferidos na luta concorrencial que é suposta ser «a lei da vida» nestas sociedades. De qualquer modo, o certo é que essas conversas que colocavam a TV como arguida do estímulo à violência na vida real desapareceram, e nem agora, no caso da agressão colectiva a uma jovem, vi que tivessem regressado. Poderá dizer-se que os jovens actuais vêem muito menos televisão do que a geração anterior, pelo que é improvável a influência sobre eles exercida pela TV nesta como noutras matérias. Será verdade, mas talvez apenas se estivermos a falar de influência directa. O caso é que os conteúdos da Net, bem como mais recentemente os das redes sociais, estão eles próprios contaminados pelos valores ou antivalores da «civilização televisiva», se é que esta expressão cabe, e por aí são introduzidos nas cabeças juvenis. Tendendo a produzir o modelo de jovem mais sintonizado com essa efectiva perversão que é a sociedade neoliberal.

http://www.avante.pt/pt/1957/argumentos/114856/ 

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