À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

27/08/2009

O outro lado da crise

Correia da Fonseca

Dia após dia, a televisão dá-nos notícias da crise. Talvez seja melhor grafar a palavra de outra maneira: da Crise. Dá-nos as notícias um pouco como que a conta-gotas. Tal como nos vem dando notícias da gripe. Isto é, da Gripe, a «A», a que começou nos porcos e, tanto quanto se sabe, já vai nos perus, não se sabendo por enquanto que mais bicharada virá a ser afectada, isto, já se vê, sem falar do Homem, «rei dos outros animais», como em tempos versejou um famoso poeta. Voltando, porém, à Crise, registemos que nos últimos dias a TV nos tem informado de que vai melhorzinha, ao contrário da Gripe, que ameaça intensificar-se. Assim, não há notícia de enormes falências, designadamente nos Estados Unidos, que é de onde soprou o furacão inicial: agora, tanto quanto a televisão nos permite saber, só tem havido falências relativamente pequenas, à escala portuguesa, com consequências no crescente aumento de gente desempregada, é certo, mas nada que pareça emocionar muitos os media lusitanos. Já lá vão os dias em que pessoas realmente importantes como os senhores Belmiro de Azevedo ou Américo Amorim perderam milhões quase de um momento para o outro, coitados. Ao passo que isso dos despedimentos desaba sobre a arraia-miúda ou, quando muito, arraia-média, se é que se pode dizer assim, o que evidentemente tem muito menos interesse mediático. De resto, já na passada segunda-feira a TV deu a boa notícia de uma subida geral nas bolsas, incluindo a bolsinha portuguesa, o que permite esperar que Belmiros, Amorins, similares e correlativos possam em breve recuperar boa parte do que perderam. É claro que não só os desempregados continuarão como estão como previsivelmente o seu número irá crescer, desenvolvimento este já friamente anunciado por competentes especialistas que aliás nesse sentido vieram à TV sentenciar. Mas «é a vida», como se dirá retomando aqui uma breve frase histórica do engenheiro Guterres, nem todos podem voltar a ter o que perderam e, como bem se sabe, isto temos de ser uns para os outros.

O sangue

A propósito dos que não podem recuperar o que perderam, a começar no emprego e sem que se saiba onde a perda pode ir acabar, justifica-se registar aqui uma notícia dada pela TV há uns três dias: a execução de hipotecas imobiliárias tem vindo a aumentar em flecha e a realização de leilões consequentes a essas hipotecas vem seguindo o mesmo caminho. A televisão foi discreta quanto à identificação dos que exerceram o seu direito de executar os imóveis em penhor, mas não ocultou que foram, como aliás é natural, os bancos a quem deixaram de ser pagas as mensalidades contratualmente previstas pelos que compraram com garantia hipotecária as casas onde habitar. Acabou aqui a informação, e isso é que eu estranharia se me sobrasse alguma remanescente ingenuidade quanto à TV que nos é servida: é que, parece-me, um elementar impulso de indagação jornalística poderia levar à busca de notícias sobre o que terá acontecido aos que tinham as casas presentes nos leilões. Na verdade, por aquelas informações ficou a saber-se que os bancos não puderam reaver normalmente o seu dinheiro (que pelo menos em parte até será o nosso, dos depósitos que neles teremos feito), o que é uma grande chatice, com perdão da palavra. Resta a razoável expectativa de que os leilões permitirão que a banca se reembolse do investimento feito com a “garantia real” que a prudente gestão impõe. Mas esse é apenas um dos lados da Crise no que diz respeito a este sector. É que há os que, com a execução da hipoteca, em princípio terão ficado sem tecto, sem lugar onde arrumar os tarecos (porventura adquiridos também a prestações há algum tempo não pagas), sem janelas onde assomar para ver quem passa ou olhar a paisagem que um dia pode ter decidido o risco da compra. São gente; e a gente viva, com pele, ossos, unhas e desesperos, são o outro lado da Crise, lado de que a TV não costuma dar-nos notícias. Contudo, aí é que está a humanidade que, neste como em qualquer outro caso, é o próprio sentido da notícia, o seu verdadeiro sangue, também na óptica de um jornalismo que quer ser mais que o mero débito de palavras áridas, secas, que ensinem pouco e não incomodem nada. Procurar esse outro lado pareceria ser uma preocupação inevitável e até urgente dos telenoticiários. É natural que fiquemos a perguntar por que diabo não é assim.
Avante - 27.08.09

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