À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

17/02/2011

Fome e fartura

Anabela Fino

«Não há fome que não dê fartura» é ditado popular de muita sabedoria, seja porque acalenta esperanças de que melhores dias virão, seja porque à laia dos oráculos se presta a interpretações várias, que é a melhor forma de sempre acertar. Fartura de quê, podemos perguntar, sabendo que o que queremos mesmo é fartura que mate a fome, quando a mais das vezes o que se vê é fartura de mortos de fome... E que fome é essa de que fala o ditado, pergunta-se ainda, sem grandes dúvidas de que a fome popular é regra geral a dos estômagos vazios, mas sem perder de vista de que nem só de pão vive o homem, forma de dizer que há muitas outras fomes a saciar. Veja-se por exemplo o caso da informação, a fome que dá e as indigestões que provoca, como sucede agora com o caso do Egipto. Andaram os portugueses anos a fio a pensar que aquilo era só pirâmides, museus, bazares, hotéis, areias e camelos, e eis que agora – graças à fartura de notícias depois de tanta falta delas – se descobriu enfim os egípcios, não dez nem cem nem mil ao serviço dos turistas, coisa por todos tida como natural, mas milhões deles de todas as idades e credos, que não tendo morrido de fome apesar de a maioria estar numa situação crítica, abaixo do limiar da pobreza, se cansaram de tanta fome, injustiça, exploração e repressão e vieram para a rua dizer «basta!». Até parece que foi coisa de momento, como se o todo não fosse feito de muitas partes, pequenas e grandes, que no caso quer dizer lutas, protestos, greves, repressão... de que nunca houve eco nas notícias, que isto da fome tem que se lhe diga, sobretudo quando os ditadores são amigos da muito democrática civilização cristã e ocidental que por acaso também é quem distribui as notícias. E se é verdade – e notória – a falta de muita informação nesta fartura dela, como seja o escamoteamento de cumplicidades antigas com o regime agora caído em desgraça –, não é menos evidente a forma expedita como se insiste no afastamento (embora apressado e atabalhoado) das potências ocidentais daquele que foi a face mais visível do regime, com o propósito de fazer crer, com fartura de informação, que tudo está a mudar ainda que o essencial se mantenha.
O mesmo se poderia dizer de Portugal no que toca à situação económica, assunto por tradição e conveniência remetido para a esfera dos especialistas, excepto quando se trata da espinhosa tarefa de dizer uma coisa e o seu contrário para melhor convencer os que de tanta fome já desesperam da fartura de que ainda não chegou a hora de alargar o cinto. Vem Sócrates e diz que a Europa é fixe, tecendo louvores à estratégica económica que afinal não sabe muito bem o que é, como confessou na Assembleia da República. Vem Teixeira dos Santos e não esconde o desapontamento, a Europa é fixe ma non tropo, sobretudo depois de a Alemanha, Holanda e Áustria sentenciarem que os «mercados estão calmos» e não há necessidade de reforçar para já o fundo de resgate europeu, que é uma forma de dizer – é a fartura de informação – que Portugal se amanhe com a sanha dos «mercados» que cobram juros de usura a Portugal. E vêm outros, muitos, dizer todos os dias com abundância de pormenores que é pena, é duro, é mesmo violento, mas é preciso pedir mais sacrifícios aos trabalhadores e do povo. Tanta fartura em tempo de fome é capaz de fazer mal.

http://www.avante.pt/pt/1942/opiniao/112705/ 

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