João Paulo Guerra
O menino a quem o Governo tirou este ano o abono de família, sem que ele compreenda porquê, não teve nada no sapatinho que deixou esquecido, como quem não quer a coisa, junto à chaminé.
Os filhos do casal desempregado que perdeu o subsídio de desemprego também não. A filharada de mãe solteira e só a quem retiraram o rendimento social de reinserção, que já não esperava nada, ainda teve menos: este ano teve fome. As crianças da família endividada foram para a cama mais cedo, surpreendidas e desenganadas quanto à generosidade do Pai Natal. O pai ainda esteve para ceder mais uma vez ao canto de sereia de quem lhe oferecia crédito à socapa no corredor de um centro comercial. Mas arrepiou caminho a tempo. Os filhos do casal que fechou a lojeca por não aguentar o pagamento da renda fizeram a consoada ao meio-dia: foram almoçar à cantina da escola, que se mantém aberta nas férias para ajudar os mais aflitos, onde se cruzou com a prole do par que vive com um salário mínimo.
O filho único do casal que vence vinte e oito salários mínimos, mais cartões de crédito, carros, combustível e despesas de representação foi passar o Natal a Londres com os pais, para se habituar à língua tal qual se fala e à cidade, para cujos arredores vai estudar no próximo ano lectivo. A filha do empreendedor de sucesso tão súbito como inexplicável olhou com enfado para a chave do carro desportivo topo de gama que os pais lhe deixaram nas dobras do guardanapo na ceia de Natal. A mulher olhou distraidamente para a jóia faiscante que o marido lhe ofereceu e o marido nem sequer teve tempo para desembrulhar a prenda da mulher porque o toque do telefone lhe soava a milhões. O ‘boy' ofereceu ao padrinho um emblema do partido cravejado de brilhantes.
Sem comentários:
Enviar um comentário