À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

18/07/2010

A TV do Futuro Com Sabor a Ranço

Correia da Fonseca

Aconteceu em Lisboa, a maioria das gentes nem terá dado por isso mas o facto foi notícia na TV, sobretudo na SIC, e já adiante se entenderá porquê: um punhado de entendidos reuniu-se para anunciar o que será a televisão do futuro, não do futuro situado a grande distância temporal um pouco à maneira de novos Júlios Verne, mas sim um futuro mais próximo deste Verão escaldante, a começar previsivelmente lá para o Natal.

É claro que o tema, enunciado apenas muito globalmente, se mostrava de extremo interesse para os que teimam em sonhar com uma TV que não seja chupeta para adormecer adultos nem pista falsa para desencaminhar crianças e jovens.

Porém, nem era preciso esgravatar sequer um poucochinho para perceber que o objectivo da importante reunião não teria nada a ver com tais preocupações: logo foi sumariamente explicado que se tratava de proclamar o óbito da TV tal como a temos conhecido e o advento de novas formas tecnologicamente inovadoras. Mais exactamente: o fim dos televisores que talvez possamos designar por «tradicionais» ou «clássicos» e a sua substituição por nova geração de aparelhos.

Já a HD, Alta Definição, habita as nossas casas, dizem-nos agora que poderemos ter televisão em relevo no sapatinho natalício ou pouco tempo depois dessa santa quadra. Não tendo participado do conclave por óbvia insuficiência de condições e fiando-me apenas no que o meu televisor me contou, fiquei convencido de que o relevo anunciado será parente muito próximo do relevo cinematográfico que tem vindo a ser apresentado nos últimos meses em filmes de mérito abaixo do duvidoso.

Porque sou velhíssimo e obsoleto, recordo-me de que há muitos, muitos anos, ainda eu não teria na cara barba que se visse, assisti na sala de um cinema de Lisboa a uma curta-metragem apenas demonstrativa do que se anunciava como sendo o iminente «cinema em relevo».

O filmezinho era uma chatice insignificante, e com razão ou sem ela pareceram-me ridículos os espectadores munidos de óculos de cartolina e «lentes» de duas cores a esforçarem-se por ficarem maravilhados perante um avanço supostamente tecnológico que não era avanço e não tinha nada de maravilhoso. Aliás, a novidade sumiu-se então rapidamente e por longo tempo, tendo regressado agora apoiada em maiores trunfos, designadamente os que a informática disponibiliza.

A julgar pelo pouco que ouvi agora ao meu televisor, o relevo que para já nos é prometido não anda longe desse ridículo já histórico, e de isto de tal modo que aponta inevitavelmente para uma aflitiva necessidade de «refrescar» o mercado mesmo à custa da repescagem de velharias.

É certo que, paralelamente, o discurso dos sapientes ou, talvez melhor, dos promotores de vendas, acentuam o óbvio: que os territórios da informática rasgam os horizontes da comunicação/informação (muitas vezes confundindo com duvidosa inocência estas duas funções próximas mas não sinónimas), que a tecnologia actual já permite o acesso a centenas de canais de TV, que a «velha» televisão quase só é consumida por gente velha embora simultaneamente garantam que não irá desaparecer.

Parece, pois, que o negócio agora no limiar do nosso quotidiano consistirá em acrescentar uma pincelada de «novidade» a um produto que deixou de ser atraente enquanto, ao lado, outros produtos multiplicam alternativas e eventualmente seduzem não apenas porque são «novos» mas também e talvez sobretudo porque permitem que cada qual escolha a programação que deseja, construa a «sua própria TV». Esta possibilidade, reconheça-se, parece ser altamente democrática: levará mais longe aquela democratíssima regra que manda dar ao público telespectador os conteúdos que ele prefere.

Sabe-se, porém, que ao abrigo desta sábia orientação a TV foi conduzida ao nível mais rasteiro e os telespectadores desabituados de pelo menos tentarem saborear programas que lhes alargassem o gosto e ampliassem entendimentos. A TV à la carte é, de facto, o passaporte para a ignorância auto-satisfeita e esclerosada.

Temos, pois, que o futuro agora anunciado se reparte entre uma falsa inovação muito adequada aos sectores mais basbaques do telepúblico e uma fórmula estimuladora da autolimitação do gosto e estranguladora de oportunidades que possam geram curiosidades culturais ou apetências de aberturas informativas.

Não são boas perspectivas, não será boas notícias. Os mais velhos, e também os mais lúcidos, ainda lembram talvez com nostalgia a designação da TV como «janela para o mundo».

Na verdade, nunca chegou a sê-lo. Mas anuncia-se agora que poderá ser cada vez mais uma estreita fresta para um pátio interior. Eventualmente em relevo e com óculos pelintras a condizer.

http://www.odiario.info/?p=1673

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