O sector automóvel tem grande importância no nosso País pelo peso no emprego industrial, com mais de 30 mil trabalhadores, mas também pelo peso no PIB e nas exportações. É um sector muito dependente da estratégia das multinacionais, particularmente no sector da montagem, em que a Auto-Europa representa 2/3 da produção de veículos de passageiros.
No que diz respeito aos direitos dos trabalhadores, o grande capital tem como alvos principais os salários, a regulação do tempo de trabalho, a precariedade, os ritmos e as condições de trabalho. É certo que são alvos sempre e onde o capital e o trabalho se confrontam. Nestas páginas abordaremos alguns aspectos desta ofensiva no que diz respeito ao sector automóvel no nosso País.
O rebentar da crise em 2008 levou a que as vendas de automóveis em todo o mundo atingissem o nível mais baixo dos últimos 15 anos, com quebras médias de 20%, facto que se prende com a diminuição do poder de compra, quer por via do desemprego e do corte nos salários, quer pelas restrições impostas ao crédito.
Para os trabalhadores do sector, o ano do 2009 ficou marcado por insolvências, despedimentos, congelamento de salários, recurso ao lay-off e encerramento de empresas.
Uma situação em flagrante contraste com os lucros significativos alcançados pelas empresas, se bem que nalguns sectores abaixo dos níveis a que estavam habituados. 23 empresas da área dos componentes automóveis no nosso País tiveram em 2009 cerca de 200 milhões de euros de lucro líquido, muito superior a anos anteriores.
A crise foi – e continua a ser – o argumento invocado para fazer baixar salários e direitos e para exigir apoios do Estado. Em muitos casos, os apoios e incentivos do Estado servem exactamente para fazer baixar os salários. Em Portugal, o melhor exemplo disso mesmo foi o recurso ao Plano de Apoio ao Sector Automóvel (PASA).
Lançado em Dezembro de 2008 pelo Governo PS, o PASA consistia num vasto conjunto de medidas para quatro eixos fundamentais: o «estímulo ao emprego e à qualificação», o apoio às «insuficiências financeiras», o «ajustamento do perfil industrial e tecnológico», o incentivo à procura. Destes, aquele que foi realmente aplicado foi o que diz respeito aos trabalhadores.
O PASA foi cobertura para impor o lay-off a milhares de trabalhadores durante o ano de 2009, em muitos casos passando para a Segurança Social parte dos custos salariais durante meses. O sector automóvel foi o que mais recorreu ao lay-off, com situações em que a Segurança Social foi verdadeiramente saqueada, sem que houvesse fiscalização.
Foi o caso da Renault /Cacia, que colocou 120 trabalhadores por dia em formação, mas que conseguiu manter a produção sem grandes oscilações porque a maior parte desses 120 eram chefias e pessoal administrativo. Empresas que impuseram o lay-off estão hoje com laboração contínua – como a Impormol, na Azambuja – ou a ultrapassar picos de produção – como a Schafflaer, nas Caldas da Rainha – mostrando que se procurou fazer pagar a crise exclusivamente aos trabalhadores.
A pressão para baixar salários, quer através do recurso ao lay-off, quer à contratação de trabalhadores com vínculos de trabalho precário substituindo trabalhadores efectivos, quer procurando fazer baixar o pagamento do trabalho extraordinário, é uma realidade, apesar de o peso dos salários não ser muito significativo na estrutura de custos do sector automóvel. A parte salarial na riqueza produzida é limitada, bem abaixo da média da restante indústria transformadora. Na Auto-Europa, por exemplo, os custos com pessoal não ultrapassam os 7,8%. A produtividade no sector automóvel cresceu em 2008 para 490 mil euros por trabalhador no nosso País.
O ataque à regulação do tempo de trabalho
Em 2010, são muitas as empresas do sector automóvel que estão a aumentar a produção e os ritmos de produção, mantendo a pressão para baixar salários, aumentar o tempo de trabalho, impor bancos de horas e adaptabilidade.
A chantagem é em muitas empresas colocada de forma crua: ou se deixa de pagar horas extraordinárias (por exemplo ao sábado), ou se recorre ao lay-off, ou a fábrica fecha. A chantagem até é fácil de desmascarar: é preciso produzir mais (e portanto há necessidade de trabalhar ao sábado) ou é preciso produzir menos (e isso «justificaria» ao lay-off)?!
A verdade é que, nos casos em que o patronato conseguiu impor os seus propósitos, a exploração atinge contornos mais próprios do século XIX do que do século XXI. Segundo a Comissão de Trabalhadores da PSA Peugeot Citroën, em Mangualde – onde a anterior maioria da CT assinou um «acordo» de completa venda de direitos –, a administração aplica um banco de horas que permite o trabalho todos os sábados de manhã, o prolongamento do horário das 23 às 24h e das 6h30 às 7h, sem qualquer tipo de remuneração, sendo os trabalhadores avisados de um momento para o outro que são necessários na fábrica dali a duas horas – o tempo máximo de que dispõem para se apresentar. Todas as faltas são consideradas injustificadas, excepto se a Segurança Social for envolvida directamente (casos da baixa ou da licença de maternidade ou paternidade), o que exclui até – imagine-se! – casos de morte de familiares. Com triste ironia, um trabalhador dizia: «só falta a pulseira electrónica». Tudo isto perante o silêncio da Autoridade para as Condições de Trabalho, que desde Fevereiro está a «apreciar» a validade deste «acordo».
É um exemplo extremo, mas que mostra que só a luta e a resistência dos trabalhadores pode pôr travão à exploração desenfreada. O objectivo do patronato de pôr em causa a contratação colectiva visa criar condições para impor a lei do mais forte nas empresas. No mesmo sentido vai a intenção, sempre renovada, de impor no plano da União Europeia a directiva do tempo de trabalho.
Precariedade – os trabalhadores como peças descartáveis
O recurso à precariedade faz parte do objectivo de baixar os custos com o trabalho, mas igualmente de limitar a capacidade reivindicativa dos trabalhadores.
De acordo com dados divulgados pelos órgãos representativos dos trabalhadores, refira-se os casos da Delphi, no Seixal, com 100 trabalhadores de empresas de trabalho temporário num total de 370; da Faurecia, em S. João da Madeira, em que entre os cerca de 2000 trabalhadores estão 289 temporários, a completar dois anos no mesmo posto de trabalho, recebendo o salário mínimo nacional; da Visteon, em Palmela, em que dos cerca de 1300 trabalhadores 200 são temporários; da PSA, com 100 trabalhadores temporários e 800 efectivos; ou os casos, já em julgamento, de trabalhadores na Renault que trabalhavam ciclicamente sete meses e iam para o desemprego três, para voltarem a ser contratados.
A Auto-Europa criou a sua própria empresa de trabalho temporário – a Auto-Vision People – para ceder mão-de-obra à casa mãe. Tem hoje já mais de 500 trabalhadores.
Ritmos e condições de trabalho desumanos
Na Renault, em 2009, 950 trabalhadores e alguns contratados produziam 1518 caixas de velocidade por dia. Em Junho de 2010, cerca de 1000 trabalhadores estão a produzir 2218 dessas caixas por dia.
Este é um exemplo emblemático do que se passa noutras empresas: uma enorme pressão para produzir mais com menos trabalhadores, com ritmos de trabalho elevadíssimos.
O sector automóvel, e particularmente o das cablagens e indústrias eléctricas, tem sido pródigo em doenças profissionais, com destaque para as tendinites, que têm lançado muitos milhares de trabalhadores, particularmente mulheres, para gravíssimas situações de saúde e mesmo incapacidade para o trabalho.
Num sector em que, de acordo com o Sindicato, são mais os dias perdidos em acidentes de trabalho e doenças profissionais do que em licenças de maternidade, que podem ir até seis meses, a prevenção deveria ser uma prioridade e uma imposição legal. Em sentido completamente oposto ao necessário, a alegada redução de custos na Visteon levou a que deixasse de haver na empresa consultas de ortopedia, tratamentos de fisioterapia e psicologia.
As deslocalizações como ameaça permanente
Em 10 anos, em apenas três grupos de cablagens instalados no Norte do país, cerca de 15 mil trabalhadores perderam os seus postos de trabalho na sequência de deslocalizações de fábricas dos grupos Yasaki Saltano, Lear e Leoni – que tem previsto o fim da produção em Viana do Castelo para 31 de Julho. Idêntica situação viveram e vivem os trabalhadores das fábricas da Delphi em Ponte Sôr e na Guarda – cujo encerramento foi anunciado esta semana. Apoiadas principescamente pelo Estado português e pela União Europeia, estas e outras empresas deixam atrás de si um rasto de destruição.
A chantagem permanente sobre os trabalhadores («se não querem estas condições, a produção pode ser entregue a outro país onde a mão-de-obra é mais barata») é inaceitável. Não é o preço do trabalho o factor decisivo quando decidem deslocalizar – ou não seria a Alemanha o maior empregador deste sector no plano europeu.
O caminho é a luta
Procurar impor um tal clima de medo aos trabalhadores que os impedisse de se organizarem e lutar é um velho objectivo do capital. As limitações à liberdade sindical, os despedimentos selectivos, a discriminação salarial, a promoção de estruturas paralelas de trabalhadores, são instrumentos conhecidos.
Os trabalhadores têm sabido resistir, exercer os seus direitos e lutar. Já durante este ano, estiveram em luta os sectores eléctrico, da metalurgia e da química, além de uma significativa participação nas manifestações de 29 de Maio e 8 de Julho. A luta dos trabalhadores impôs aumentos salariais significativos, como na Dura, na Webasto ou na Schnelcke. Os trabalhadores da Visteon impuseram a redução do lay-off para seis dias, quando a empresa propunha três meses. A denúncia da ilegalidade do banco de horas na Delphi no Seixal levou a que a empresa fosse condenada a uma multa de 100 mil euros.
Outro rumo, nova política!
É necessária uma nova política virada para a defesa do aparelho produtivo nacional, a defesa dos postos de trabalho e do emprego com direitos, o que implica:
- a defesa dos direitos dos trabalhadores, com a elevação dos salários, o combate ao trabalho precário e uma adequada prevenção no âmbito da higiene e segurança;
- um programa de industrialização do país, que aposte na produção nacional em substituição das importações, e que aproveite e desenvolva os sectores exportadores;
- o aumento do grau de incorporação nacional, nomeadamente ao nível da investigação e desenvolvimento (1);
- uma firme atitude por parte do Governo, que proteja os interesses nacionais na contratualização que é feita com as multinacionais, nomeadamente integrando o investimento estrangeiro numa estratégia de desenvolvimento nacional, estabelecendo critérios para a fixação de empresas e definindo penalizações em caso de deslocalização;
- uma aposta em equipamentos, investigação e desenvolvimento, na qualificação profissional e aproveitamento das economias de escala, de forma a elevar a produtividade.
Nota final: Muitas das informações referidas neste artigo foram recolhidas na Audição Pública sobre o sector automóvel que o PCP realizou no dia 29 de Junho. Virada para a situação dos trabalhadores, com a participação de eleitos na Assembleia da República e no Parlamento Europeu, a Audição contou com a presença de cerca de 40 dirigentes, delegados e activistas sindicais e de Comissões de Trabalhadores, directamente ligados a mais de 12 empresas.
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(1) Refira-se a este propósito que, no caso da Auto-Europa, apenas 10% dos fornecedores são portugueses.
1 comentário:
"Foi o caso da Renault /Cacia, que colocou 120 trabalhadores por dia em formação, mas que conseguiu manter a produção sem grandes oscilações porque a maior parte desses 120 eram chefias e pessoal administrativo."
É falso. Desafio-a a provar esta sua afirmação. Note que não sou nem chefia nem quadro desta empresa, mas acredito na verdade enquanto ferramenta da liberdade.
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