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09/06/2010

A privatização do transporte ferroviário: O péssimo exemplo britânico

Luís Gomes

Dois dirigentes sindicais britânicos do sector dos transportes levaram, dia 26, em Lisboa, à Tribuna Pública do Sindicato dos Ferroviários da CGTP-IN e das Comissões de Utentes, um solidário testemunho sobre as nefastas consequências da privatização dos transportes, naquele país.

Os membros do Conselho Executivo do Sindicato Nacional dos Trabalhadores Ferroviários, Marítimos e dos Transportes, o National Union of Rail, Maritime & Transport Workers, RMT, Dave Letcher e o também convidado ao 9.º Congresso da JCP, em representação da Juventude Comunista da Grã-Bretanha, Mick Carty, recordaram ao Avante! como desde o início das privatizações dos transportes naquele país, os trabalhadores e os seus direitos foram os primeiros prejudicados.
O processo iniciou-se na década de 80, através de um «modelo de desregulação» do sector rodoviário, pela mão do governo conservador britânico de Margareth Tatcher. «A privatização foi apresentada como uma vantagem que traria mais competitividade e melhores serviços, mas o resultado foi o desaparecimento de muitas das linhas férreas que não eram rentáveis, embora fundamentais às populações», recordou o ex-motorista rodoviário e dirigente sindical, David Letcher.
A privatização do sector ferroviário «concretizou-se, tendo por base o dogma de que é necessário privatizar tudo».
O sector foi dividido em duas vertentes. Operações e infra-estruturas. «Foram criadas muitas operadoras, tendo algumas acabado por desaparecer por incapacidade de gestão». O desnorte foi tão evidente que a linha da costa Leste de Londres, de Kings Crossroad para Endinburg, foi privatizada, voltou a ser nacionalizada, foi de novo privatizada e regressou, mais uma vez, ao controlo estatal, sendo actualmente uma parceria público-privada», lembrou David Letcher.

Perigosa insegurança

«Os únicos beneficiados com estas privatizações têm sido os accionistas das empresas privadas, em prejuízo da segurança dos transportes», recordou Mick Carty, lembrando avarias e sinistros recentes, em que os comboios não foram devidamente inspeccionados e descarrilaram, provocando mortos e feridos.
Mick Carty recordou quatro acidentes, desde a privatização, que «provocaram mais de 160 de mortos».
Recentemente, na principal linha da costa Oeste, um comboio que ia de Londres para Glasgow descarrilou, tendo provocado, «por sorte, apenas uma fatalidade». «São acidentes decorrentes do desinvestimento na manutenção dos ramais e das linhas férreas», explicou.
As quatro maiores companhias ferroviárias privadas a operar na Grã-Bretanha também detêm as quatro maiores companhias rodoviárias particulares daquele país, recordou, salientando as características monopolistas no sector.
Com privatizações, «a segurança fica sempre comprometida, pois o objectivo do lucro é sempre prioritário, mais do que as próprias vidas de trabalhadores e de utentes», acusou David Fletcher.
Principalmente nas áreas rurais, onde não resultam lucros nos transportes, «desde a privatização que as empresas são compensadas financeiramente pelo Governo, com quantias muitíssimo superiores às que eram disponibilizadas, quando o sector era público».
Quando os serviços ferroviários são extintos, eles têm sido substituídos por serviços rodoviários, mas, «onde não foi rentável, também as companhias de autocarros desapareceram». Há também «o problema da sobrelotação, incluindo em viagens longas, decorrente da menor oferta, embora o tarifário não tenha parado de aumentar».
O sector «tem sido gerido através de contratos e sub-contratos cedidos pelo Estado a privados, que se comportam como predadores que adquirem um sector para obterem, no mínimo espaço de tempo, o máximo lucro e, rapidamente, desaparecerem», acusou David Fletcher.

Menos empregos e direitos

Recentemente, foram anunciados cortes de 27 milhões de libras na rede responsável pela manutenção da ferrovia britânica. «O Governo pretende concretizar esses cortes destruindo os direitos laborais», avisou David Fletcher. «As condições de trabalho na manutenção têm-se degradado significativamente e estão actualmente ameaçados mais 1500 postos de trabalho, e
a contratação colectiva está a ser destruída cada vez mais», adiantou.
O dirigente do RMT lembrou como as administrações adiam e dilatam os prazos de negociação.
A mesma multinacional alemã que, sendo pública, tem-se apropriado de sectores ferroviários fundamentais por toda a Europa, a DB - que pretende adquirir sectores fundamentais para a CP portuguesa – é, actualmente, uma das mais importantes na Grã-Bretanha, tendo adquirido, recentemente, a Arriva, importante operadora naquele país. «A sua administração recusa negociar com o RMT», acusou David Fletcher.
Na companhia de infraestruturas ferroviárias, Jarvis, «foram despedidos 1400 trabalhadores», recordou Mick Carty. «Eles tinham um dos melhores contratos colectivos no sector». A Jarvis foi segmentada. «As empresas que se apropriaram do sector contrataram os mesmos trabalhadores, obrigando-os a perder todos os direitos, incluindo os de antiguidade».
Por culpa da segmentação e delapidação do sector ferroviário, o sindicato RMT negoceia hoje com 150 companhias de transportes, estando constantemente confrontado com processos que visam a supressão de postos de trabalho, como está a tentar a British Rail, que procura eliminar bilheteiros e operadores de estação, recordou Mick Carty.
Na Escócia, uma empresa está tentar introduzir a possibilidade de haver apenas um maquinista por comboio quando actualmente são obrigatórios dois. Os trabalhadores cumpriram uma greve, «mas os custos da greve foram suportados pelo governo escocês», explicou Mick Carty, que vive e trabalha naquele território. «O contratos de franchising que salvaguardam a empresa privada sempre que ocorrem prejuízos, até quando ocorrem greves».
«Desde o início do processo de privatizações, mais de dez mil trabalhadores perderam o emprego no sector ferroviário», recordou, lembrando que «depois da privatização da manutenção das linhas, cumprindo-se a recomendação da União Europeia nesse sentido, começaram a ocorrer acidentes devido à má manutenção. Uma recente investigação oficial concluiu que «uma empresa detentora da manutenção de linhas desconhecia as verdadeiras condições em que se encontrava a rede que geria, e não eram respeitados os limites de velocidade».

Reivindicar um sindicalismo de classe

O RMT é um pequeno sindicato, com cerca de 80 mil associados. Já teve meio milhão de sindicalizados, explicou David Fletcher. «O sector ferroviário tem sido dizimado, nas últimas décadas, está cada vez mais pequeno, e talvez seja mais importante agora do que nunca os trabalhadores dos transportes se sindicalizarem para que possam ter alguma forma de protecção». «É muito importante que surjamos juntos numa grande onda de solidariedade, sob pena de os trabalhadores serem individualmente discriminados», considerou, salientando que, actualmente, naquele país, «não importa se se é bom ou mau trabalhador para se ser despedido, tenha-se 20 minutos ou 20 anos de serviço, não importa». Os primeiros prejudicados «são os activistas sindicais».
Também na Grã-Bretanha estão a desenvolver-se plataformas de unidade entre trabalhadores dos transportes e utentes, de que resultaram tomadas de posição por melhores transportes, e foi criado o grupo Passenger Focus, contra as privatizações e tudo o que prejudica a qualidade do serviço, explicou Mick Carty.
A Grã-Bretanha tem hoje aproximadamente sete milhões de trabalhadores sindicalizados, «metade do que era, há 20 anos, antes da destruição dos sectores produtivos como as minas, os estaleiros navais, a indústria automóvel ou o sector metalúrgico».
«Depois de anos ligado ao Partido Trabalhista, o movimento sindical começa agora a abandoná-lo e, do meu ponto de vista, o sindicalismo de classe é a única alternativa e por isso fizemos uma campanha por uma postura mais combativa por parte do movimento sindical», revelou. «Devemos criar uma organização genuinamente de classe, semelhante ao sindicato grego PAME, ou algo parecido com a CGTP-IN portuguesa, um sindicalismo com consciência de classe», concluiu Mick Carty.

http://www.avante.pt/noticia.asp?id=33875&area=19

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