1. "Os escravos de Lake Placid [EUA] eram invisíveis, peças da nossa economia que se desenvolve num universo paralelo". "Enquanto os membros da comunidade de reformados jogavam golfe, havia ali atrás um campo de escravos. Dois mundos, falando línguas diferentes", refere-se no importantíssimo artigo publicado no Geographic Magazine de Setembro de 2003, onde se denuncia a escravatura contemporânea. O autor, conhecedor da tendência humana para ignorar o que não quer conhecer, afirma categoricamente não se tratar de uma metáfora: "Falamos mesmo de escravos. Não de seres humanos que vivem como escravos, trabalhando por um salário miserável. Não são também os escravos de há 200 anos. Falamos dos 27 milhões de pessoas que, em todo o mundo, incluindo Portugal [e portuguesas], são compradas e vendidas, exploradas e brutalizadas para dar lucro".
Na apresentação recente dos primeiros resultados do Observatório do Tráfico de Seres Humanos em Portugal refere-se que foram sinalizados 231 casos, para além dos muitos casos que nem chegaram a dar sinais de existência. É possível que um dos traficantes seja alguém nosso conhecido, bem instalado na vida, muito afável e simpático, excelente contador de anedotas, e por quem nos afeiçoámos. Talvez a vítima que abdicou, "voluntária" ou forçadamente, de um órgão por uma centena de euros seja um nosso vizinho ou aquela moça contratada para uma festa de despedida de solteiro.
Dez por cento do volume de vendas das empresas a actuar em Portugal nunca chegam a ser registados como vendas da empresa. Esse montante astronómico é fraudulentamente desviado para os bolsos de alguns, para contas bancárias, de preferência em offshores, onde a sua identificação seja quase impossível e esteja livre de qualquer investigação e pagamento de impostos. Talvez todos os domingos, no fim da missa, nos cruzemos com um desses defraudadores, quiçá elemento do crime internacional organizado. A sua vida é modesta, a solidez da sua família garantida, os "elevados princípios éticos" incontestáveis.
Todos os dias circulam notas de euro falsas e poderá acontecer que tenha na sua carteira algum exemplar fabricado no mês passado numa tipografia cuidadosamente montada numa garagem. Adquiriu-a num qualquer processo de troco e colaborou, obviamente de forma inconsciente, no eficaz funcionamento da rede de falsificadores ao utilizar essa nota no caixa do supermercado.
2. Apesar destas, e muitas outras situações que se atravessam no nosso caminho, continuamos a pretender ignorar esta realidade, a não inscrever estas realidades nas nossas experiências, nas práticas sociais, nos comportamentos políticos.
Os princípios orientadores são de fuga à realidade, de não assunção das responsabilidades:
· "Portugal é um país de brandos costumes, estas desgraças são em países distantes".
· "Sabemos que há fraude nas empresas, mas não é na minha".
· "Se há alguma fraude contra a minha empresa a responsabilidade é dos clientes e fornecedores".
· "Se alguma fraude for cometida por um funcionário, certamente que não é pelo pessoal da minha confiança".
· "Por acaso aconteceu uma fraude na instituição que dirijo, mas é melhor resolver isto internamente, em segredo".
· "Detectamos uma grande fraude fiscal, mas desde que pague ao Estado o que deve é melhor não instaurar nenhum processo crime".
· "Parece haver indícios de crime, mas o senhor X é tão influente... Vamos esperar".
É esta "política de avestruz", de faz de conta, que explica algumas situações que vivemos no Portugal recente, quando a força dos factos era mais forte que a "bondade", exigindo uma intervenção. É também ela que justifica que grande parte da economia "sombra" continue a prosperar, que as fraudes prossigam e os defraudadores enriqueçam alegremente.
A única excepção a esta condescendência, talvez seja a postura face ao "tráfico de droga", tal é a devastação que gerou em muitos lares.
3. Algumas perguntas se impõem. Eis algumas, a título de exemplo:
· Se os defraudadores e os traficantes são menos de 1% da população, como se justifica que os restantes 99% andem tão distraídos?
· Se a grande maioria das empresas e outras instituições são vítimas de fraude e é um bom negócio evitar que elas aconteçam porque não tomam as medidas adequadas?
· Se a solidez de uma instituição é mais mensurável pela capacidade de detectar e prevenir fraudes que pela sua aparente ausência, porque se insiste em encobrir as situações verificadas, incluindo da polícia?
· Se a fuga intencional aos impostos prejudica todos os cidadãos e o Estado não se deveria ir mais além do que a mera exigência de pagamento?
· Se todos os dias recebemos correio electrónico que nos pretende burlar porque não promover iniciativas de uma mais regular e eficaz esclarecimento?
Há várias razões para este voltar de costas, este faz de conta:
· Pela sua própria natureza a economia "sombra" não é imediatamente visível e a fraude utiliza a simulação.
· As informações sobre estes assuntos são escassas, e há receio de se abordar publicamente estes temas.
· A nossa distracção, condescendência e "bondade" inscrevem-se em razões sociológicas profundas, visíveis nos indicadores de psicologia social, n o "Medo de Existir" (José Gil) ou nos inquéritos sobre a corrupção e as práticas políticas (vide os trabalhos dirigidos por Luís de Sousa).
· O brotar de um individualismo acompanhado de uma relativa degenerescência das relações éticas, enfraquecendo os referenciais de intervenção social.
Perante uma tal situação só há uma actuação civicamente responsável: Informar, formar, moralizar. Forjar uma sensibilidade colectiva, fornecer conhecimentos para uma prática de detecção e prevenção, educar moralmente os cidadãos. Estimular o funcionamento das instituições de forma que a responsabilidade social (efectiva) e a honestidade sejam estimuladas, ao mesmo tempo que as práticas perniciosas e a fraude sejam exemplarmente condenadas.
4. Um apontamento final. Frequentemente os investigadores de crimes, em geral, e de fraudes, em particular, são muito avessos à divulgação pública da informação, argumentando que aquela poderia fazer aumentar as práticas criminosas, poderia ensinar potenciais defraudadores.
Não negamos que há que ter alguns cuidados, a analisar em cada caso concreto, mas esse secretismo desinforma mais os que deveriam estar precavidos que os criminosos. Estes têm as suas fontes de informação e os seus meios de experimentação montados. Essa postura generalizada tem exactamente o efeito contrário ao pretendido: reforça a fuga à realidade dos cidadãos e das instituições cumpridores dos seus deveres; não funciona como aviso aos criminosos de que há vigilância. Enfim, reproduz-se o ambiente favorável para os traficantes e os defraudadores.
Visão - 22.10.09
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