Rute Araújo e Luis Leal Miranda
Filipe só sai de casa para ir à caixa do correio. Quando os contentores começaram a arder e as pistolas a disparar, foi para a rua. Os vizinhos dizem que não viram. Cego de nascença, Filipe viu tudo. As rixas, os insultos, as detenções. O problema, diz, não é a gente séria do bairro, mas sim os "vampiros". À noite, saem e instalam o medo.
A uma madrugada de confronto e detenções, seguiu-se um domingo de calma forçada. Os polícias ocuparam as ruas e a Bela Vista recolheu a casa. Por volta das 16h00, um novo incidente. Jovens do bairro azul apedrejaram um grupo de agentes que ia a passar. Foram imobilizados, identificados e revistos. Em meia hora, o caso ficou resolvido. Mas todos temem que a violência volte.
O ministro da Administração Interna, Rui Pereira, anunciou que a presença policial vai manter-se "durante o tempo necessário, com os meios necessários" e que "todos os criminosos vão ser punidos". O Grupo de Operações Especiais (GOE) e Corpo de Intervenção foram chamados a intervir, sempre que se justifique. "Nos Estados democráticos não se ataca a polícia", disse José Sócrates, garantindo que o governo tudo fará "para restabelecer a tranquilidade e segurança.
No café em frente à esquadra, os moradores só lamentam que a polícia não apareça mais. "Nos últimos tempos, os assaltos não param. Eu vivo nos prédios lá em baixo e já não trago o carro para aqui", diz uma residente. Ninguém quer falar. Mas ninguém está surpreendido.
A tensão andava a acumular-se, subterrânea, por todo o bairro. Sentia-se no ar, irrompia nas conversas de café. Alimentava-se do desemprego, da falta de dinheiro, do desleixo das casas, do cheiro a abandonado, da sujidade das ruelas, das oportunidades há anos prometidas para o mês que vem. Os habitantes cada vez mais fartos de esperar. Por um emprego, por uma reacção diferente de cada vez que dizem viver na Bela Vista. Quando a crise se instalou no país, o bairro já vivia em crise. Crise somada a crise, o resultado era fácil de prever. Um dia, a violência voltaria a explodir. "Isto vem por ciclos. Estes jovens não iam conseguir lidar com a pressão", diz Carla Marie Jeanne que dirige o Centro Cultural Africano na Bela Vista. "Vivo sentada em cima de um vulcão".
O vulcão está dentro de cada um dos jovens como J., de 22 anos, e quase entra em erupção sempre que profere a palavra "bófia". A "bófia" que ocupa a avenida central, em vez de acalmar, alimentava a revolta. Salta-lhe pelos olhos, pela voz arranhada com que fala do amigo que morreu às mãos da polícia. "Não sou contra nem a favor de roubar, não sabemos o que vai na casa de cada um e cada um se desenrasca como pode. Todos os dias ouço notícias de desfalques de milhões, esses não dão morte, nem sequer cadeia."
No carro onde J. passeia, há fotos dos três amigos mortos nos últimos anos pela polícia. Desempregado, de brinco na orelha, carrega no "u" para dizer que "é um abuso". "Até o Obama já fumou ganza e deram-lhe uma oportunidade. Aqui não". Num bairro onde as portas das casas alternam com prédios destruídos, as crianças jogam à bola entre entulho e as varandas se abrem para páteos de vidros partidos, não é fácil ver oportunidades.
"Sempre que cá venho, está mais degradado. Há sítios onde se conseguiu ter resultados, mas na Bela Vista a gestão do Estado e do poder local falhou", comenta a deputada do PS, Celeste Correia.
O rastilho está aceso e corre o perigo de alastrar para outros bairros sociais, provocando "vários focos" de violência em simultâneo. O aviso é de Jorge Malheiros, especialista em Geografia Social que defende a necessidade de as forças policiais actuarem de forma "invisível". De resto pouco se poderá fazer. A tensão não vai desaparecer "enquanto houver pobreza".
"Existe uma grande concentração de população desfavorecida." E que, por isso, volta-se para dentro, gerando tensões internas que se reflectem, mais tarde ou mais cedo, para fora: "O próprio desenho urbano potencia situações de conflito", explica o especialista. Corredores e vãos de escadas escuros ou quarteirões desertos: "É o teritório fértil para os encontros clandestinos."
E há ainda as gerações mais novas. Aquelas que não querem repetir a vida dos pais. Cobiçam telemóveis, ténis de marca ou carros topo de gama: "Há uma consciência da parte dos mais jovens de que o mercado de trabalho é precário e que será difícil ter acesso a salários altos." A alternativa passa então pelo delito que começa por ser pequeno e vai crescendo até se tornar violento. "O desemprego agrava as situações de desigualdade. Não nos esqueçamos que um dos sectores mais afectados com a crise é o da construção civil." com Kátia Catulo, Sílvia Caneco e Sónia Cerdeira
iOnline - 11.05.09
À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.
11/05/2009
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